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3 A HOMOSSEXUALIDADE E O ENSINO DE CIÊNCIAS

3.3 Homossexualidade e o currículo da Educação Básica

Silva (2009, p. 15), ao abordar diferentes teorias do currículo, nos diz que qualquer teoria curricular está baseada em quais conteúdos são escolhidos para serem ensinados e que a questão: ensinar “ ‘o que?’ nunca está separada de uma outra importante pergunta: ‘o que eles ou elas devem ser?’ ou, melhor, o que eles ou elas devem se tornar?’ ”. Segundo o autor citado, tais questionamentos em uma teoria do currículo permitem entender que os conhecimentos escolhidos seriam baseados a partir de um sujeito considerado ideal a ser formado:

Qual é o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de

sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada no ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado- nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas? A cada um desses “modelos” de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo (SILVA, 2009, p.15, grifos meus).

Assim, Silva (2009), ao considerar que o currículo está relacionado à formação de tipos de indivíduos, relaciona-o a “uma questão de ‘identidade’ ou de ‘subjetividade’ ” (SILVA, 2009, p. 15). A partir de uma perspectiva pós-estruturalista, a construção do currículo, o documento em si, está relacionado a questões de poder, já que, selecionar e privilegiar determinados conhecimentos (considerados ideais) em detrimento de outros para a formação de uma identidade ideal envolve questões de poder que operam para obtenção de hegemonia (SILVA, 2009). Por isso é importante criticá-lo. Contestá-lo. Se para construir o currículo são selecionados determinados conhecimentos (e outros, não); se o currículo está relacionado com a identidade; por que uma determinada identidade é privilegiada e não outra? (SILVA, 2009). Entendo o silenciamento do currículo, tanto pela proposta do Programa Escola sem Partido – que tenta calar os professores diante de determinados conteúdos – quanto pela situação da BNCC como tentativa de não formar a “pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes” (SILVA, 2009, p. 15).

Vejo a perspectiva dos Estudos Culturais em Educação como instrumento para contestar o currículo, além de alguns pressupostos da Teoria Queer14, numa perspectiva pós-

14 Queer: um termo usado pejorativamente (como “bicha”, “veado”, “sapatão”) e atribuído a homossexuais, assumido por uma vertente destes para caracterizar sua contestação com um significado de colocação contra normalização, mais imediatamente, contra a heteronormatividade compulsória. Representa a diferença (com relação ao movimento homossexual) por não querer ser incluída ou tolerada (LOURO, 2015). Também significa “estranho”, “excêntrico”, “fora do normal” (SILVA, 2009)

estruturalista. Segundo Silva (2009), a Teoria Queer quer questionar a norma da identidade sexual hegemônica, perturbando-a, contestando-a, defendendo que – assim como a identidade de gênero – a identidade sexual não é definida simplesmente pelas questões biológicas; não é dada pela natureza; ela é construída social e culturalmente; depende dos significados que lhe são atribuídos; não é definitiva e nem estável; a heterossexualidade não é uma identidade normal e positiva, enquanto a homossexualidade seria anormal e negativa.

Contestar o currículo também é importante, pois existem diferenças sexuais na sociedade e nas escolas, nas salas de aula. E, nesse ambiente, aqueles/as que são diferentes da sexualidade hegemônica são muitos. A vivência e permanência na escola estão envolvidas com o acolhimento dos mesmos. Se não há acolhimento dos/as considerados diferentes, há exclusão. Louro (2015), ao relatar algumas de suas experiências ao tratar o tema com outros educadores, descreve:

Quando acentuava que feminilidades e masculinidades são construções sociais, ou mesmo quando afirmava que essas “dimensões” são construídas discursivamente, eu percebia um movimento de escuta, e até mesmo uma disposição favorável a acolher tais ideias (ainda que houvesse resistências aqui e ali). No entanto, havia um claro limite para pensar nesse terreno – o limite estava na sexualidade ou, mais especificamente, esbarrava na homossexualidade. Isso não quer dizer que não me fossem feitas questões sobre sexualidade, pelo contrário, elas eram muitas; mas elas se dirigiam, fundamentalmente e na sua mais expressiva maioria, para descobrir a “causa” desse “problema” e para corrigi-lo (LOURO, 2015, p. 58, grifo meu). O acolhimento – inclusão – apesar de ser proposto, é interpretado de forma errônea, no sentido de corrigir o problema, de normalizar o que é anormal. Na escola, os/as alunos/as convivem nos mesmos espaços, mas isso não significa dizer que aqueles/as que são percebidos como problemáticos estejam incluídos/as nas relações sociais entre os colegas. Isso quer dizer que podem estar sendo excluídos. Para Lopes e Rech (2013), a exclusão que vem se mostrando nos séculos XX e XXI ocorre dentro do que se entende como inclusão. As autoras citam que, nessa situação, “o indivíduo mantido no grupo é submetido constantemente às técnicas de normalização – tanto [...] referente à normalidade populacional, quanto no sentido de correção do indivíduo” (LOPES; RECH, 2013, p. 212). Entende-se que a inclusão é muitas vezes interpretada como correção, ou ainda, normalização. Veiga-Neto e Lopes (2011) em uma análise crítica afirmam que, com frequência, a inclusão é encarada como um processo social de caráter natural – e não como produto de uma construção – o que o torna imperativo, incontestável e imune a críticas. A incontestabilidade da inclusão estaria ligada à consideração do mito, no qual o mundo é naturalmente isotrópico, ou seja, homogêneo e equilibrado e tudo

que altera esse equilíbrio é visto como desigual, anormal e não se enquadra na natureza do mundo. Essas anormalidades (denominadas pelos autores anisotropias, por alterarem o equilíbrio, a homogeneidade do espaço) seriam produzidas de forma artificial pelo homem. A inclusão ocorreria para restabelecer o equilíbrio, a ordem no mundo, trabalhando com os indivíduos considerados anormais, para que estes recuperem a ordem natural perdida. Os autores ainda consideram que essa natureza inclusiva dentro de um mundo isotrópico e equilibrado é resultado de construções sociais, culturais, históricas, políticas e, portanto, são modificáveis e torna-se importante desconstruí-las (VEIGA-NETO; LOPES, 2011).

Louro (2015, p. 68) parte do princípio de que o currículo seja “um texto ‘generificado’ e sexualizado” e que seu contorno se baseia na sequência sexo-gênero-sexualidade, em que o sexo é visto como o estado natural e estaria posicionado anteriormente à cultura, sendo pré- discursivo, assumindo um caráter imutável e impondo “limites à concepção de gênero e sexo” (LOURO, 2015, p. 68). Ao se relacionar o estado natural do sexo com a atração pelo sexo oposto, passa-se a considerar uma (hetero) sexualidade compulsória.

[...] os sujeitos que [...] escapam da norma [..] são colocados à margem das preocupações de um currículo ou de uma educação que se pretenda para a maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos “marginalizados” continuam necessários, já que servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam (LOURO, 2015, p. 68 - 69).

Portanto, em uma lógica binária heterossexual/homossexual, os últimos se tornam necessários para que os primeiros (que seguem a norma sexo-gênero-sexualidade) possam enxergá-los como uma minoria que não deve ser seguida. Esse grupo pode ser tolerado, mas pensar em formas múltiplas e variantes de sexualidades é inconcebível, inaceitável (LOURO, 2015). Miskolci (2015) ressalta dentro de uma perspectiva queer a consideração do binarismo hetero/homo – modelo adotado pela sociedade e que seria composta apenas por heterossexuais e homossexuais – como um desafio a ser superado, para que seja possível repensar a educação em busca da transformação social. É importante ir além do movimento LGBT (já que este não consegue enquadrar todos aqueles que não se encaixam no modelo heterossexual), questionar o que seria normal e ainda trazer ao discurso os estigmas, humilhações, violências, enfim, experiências de situações sofridas por aqueles que não se enquadram na heteronormatividade (MISKOLCI, 2015).

Várias são as identidades que não se enquadram na sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros). Mas mesmo estas representam o que pode ser chamado de

diferenças diante da identidade heterossexual. Vejamos como se dá a produção de identidades e diferenças, segundo Silva (2014): identidade é o que se é (sou heterossexual) e o fato de se afirmar (sou) se torna uma positividade. A diferença é o que não se é (ele é homossexual) e o fato de não o ser (não é heterossexual) se torna uma negatividade. A relação entre identidade e diferença é interdependente, por exemplo, o fato de ser heterossexual significa não ser homossexual, nem transexual e nem travesti. Além de serem interdependentes, são criações linguísticas, portanto, não são elementos naturais; não estão no ambiente para serem descobertas e toleradas. Elas são produzidas por nós, em um processo simbólico e discursivo. São criações culturais e sociais. Se tornam formas de classificação e estabelecem padrões de normatividade e hierarquias, como já foi abordado aqui anteriormente pelo mesmo autor. A identidade precisa ser representada e é através da representação que ela se liga aos sistemas de poder. Identidades e diferenças são performáticas, ou seja, construídas através de repetições que determinam o que elas representam de fato e sua relação com sistemas de poder. Porém, da mesma maneira como as identidades hegemônicas se estabelecem, as repetições podem ser interrompidas e contestadas e, nesse momento, podem ser estabelecidas novas identidades.

Segundo Silva (2014), a pedagogia e o currículo deveriam dar oportunidade para que crianças e adolescentes desenvolvessem a capacidade de crítica e questionamento perante aos sistemas de representação de identidades e diferenças, ao trata-las como questões de política, questioná-las quanto a sua produção e quanto aos mecanismos e instituições que as criam e as fixam. Uma pedagogia queer, além de incluir as informações sobre sexualidades no currículo, “quer questionar os processos institucionais e discursivos, as estruturas de significação que definem, antes de mais nada, o que é correto e o que é incorreto, o que é moral e o que é imoral, o que é normal e o que é anormal” (SILVA, 2009, p. 108).

Para Miskolci (2015), dentro de uma proposta queer, seria interessante uma educação não com base em normas compulsórias, em modelos pré-estabelecidos, mas sim na experiência. Colocar como fundamental aquilo que não era trazido ao discurso – como as experiências de humilhação e injúria. Nessa perspectiva não normativa, “ao invés de permitir que o processo educacional continue a usar essas ferramentas para forçar as pessoas a ‘entrarem nos eixos’, pode-se pensar na possibilidade de usá-las para modificar o processo educacional” (MISKOLCI, 2015, p. 51).

Louro (2015), ao confrontar os termos “conhecimento” e “ignorância”, caracteriza a construção do conhecimento como a formulação de problemas em que, durante o processo, outros problemas e questionamentos são deixados de lado, ou seja, existe uma parte do conhecimento que se torna o objeto a ser reconhecido e outra que se torna a que não será

reconhecida. Essa última se converte em conhecimentos “aos quais se nega acesso, aos quais se resiste” (LOURO, 2015, p. 71). Essa resistência aos conhecimentos negados caracteriza a ignorância. Resulta em uma linha de pensamento em que não se gosta daquilo que não se entende. Em termos de educação e pedagogia, seria interessante que fosse dada à ignorância algum valor, uma grande importância, para que se possa ter interesse por ela e querer explorar o conhecimento que ela detém, o que ela “tem a nos dizer” (LOURO, 2015, p. 72).

Vê-se que é importante trabalhar a educação para a formação de crianças e adolescentes que não aceitem, de forma passiva, os conteúdos e valores a eles transmitidos. É importante que lhes seja dada a oportunidade para questionar, criticar e posicionar-se de forma respeitosa. Uma educação para as diferenças contribui para a formação de crianças e adolescentes que serão capazes de exercer a cidadania e a alteridade. E o ensino de Ciências crítico e problematizador é um bom começo para repensarmos essa questão.