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Não existe apenas uma definição para comunidade. O conceito da comunidade é polissêmico e tem sua origem na sociologia e na antropologia. Desde o início do século XX, os estudos sobre comunidade desempenharam um papel importante nas ciências sociais, tais como antropologia. Os estudos funcionalistas de Malinowski (1986) e Radcliffe Brown (1995) serviram de modelo para o estudo de comunidades no contexto de análise da cultura. Esses estudos dependiam de um conceito de comunidade caracterizado pelo isolamento, homogeneidade e valores partilhados. Redfield (1971, apud PASCAL-FERNÁNDEZ; FRANGOUDES; WILLIAMS, 1971, p. 153) identificou quatro características essenciais em comunidades: uma escala social pequena ou reduzida, homogeneidade das atividades e estado de espírito dos membros, uma consciência de distintividade e uma certa autossuficiência ao longo do tempo.

Segundo Gohn (2004) inicialmente a comunidade foi conceituada como um grupo permanente de pessoas que ocupa um espaço comum. Essas pessoas interagem de dentro para fora de seus papéis institucionais e criam laços de identidade a partir dessa interação. Contudo, esse conceito foi substituído por um novo, no qual a comunidade tornou-se um espaço de liberdade, de realimentação das utopias e a base de forças sociais organizadas.

A concepção de comunidade como base nas forças sociais organizadas surgiu no Brasil no fim da década de 70 e se fortaleceu na metade da década de 80 com as mudanças de conjuntura política do país a partir da redemocratização (GOHN, 2004). Com as crises econômicas e políticas no país, as comunidades tornaram-se espaços de movimentos sociais reivindicativos de direitos sociais. É possível considerar, a partir dessas definições, que as comunidades constituem um campo multifacetado composto de diferentes atores sociais interagindo entre si e formando redes sociais. O poder da comunidade passa a ser percebido como uma parcela da sociedade civil organizada. Segundo Gohn (2004), a comunidade não está mais de costas ou contra o Estado, ao contrário, ela é convocada a participar e a interagir com os poderes constituídos.

2.7.1 Comunidade Tradicional no contexto do manejo

As comunidades tradicionais são caracterizadas pela sua capacidade de transformação da natureza e exercem autonomia no manejo dos recursos. Estas comunidades mantêm certo grau de parentesco e conservam a memória de suas histórias, que orienta suas ações coletivas no presente. Para Brandão (2009, p. 360-361), pesquisador das comunidades rurais de Uberlândia em Minas Gerais, a comunidade tradicional constitui-se como um grupo social local que desenvolve:

a) dinâmicas temporais de vinculação a um espaço físico que se toma território coletivo pela transformação da natureza por meio do trabalho de seus fundadores que nele se instalaram;

b) um saber peculiar, resultante das múltiplas formas de relações integradas à natureza, constituído por conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição ou pela interface com as dinâmicas da sociedade envolvente;

c) uma relativa autonomia para a reprodução de seus membros e da coletividade como uma totalidade social articulada com o "mundo de fora", ainda que quase invisíveis;

d) o reconhecimento de si como uma comunidade presente herdeira de nomes, tradições, lugares socializados, direitos de posse e proveito de um território ancestral;

e) a atualização pela memória da historicidade de lutas e de resistências no passado e no presente para permanecerem no território ancestral; f) a experiência da vida em um território cercado e/ou ameaçado; g) estratégias atuais de acesso a direitos, a mercados de bens menos periféricos e à conservação ambiental.

Para Diegues (1999), as principais características da populações tradicionais não- indígenas da Amazônia são suas atividades extrativistas, de origem aquática ou florestal terrestre. Essa população, que inclui os seringueiros, castanheiros e ribeirinhos, é denominada de caboclos por Darcy Ribeiro (1997). Mas para Diegues (1999, p. 48) existem diferenças entre essa população, na medida em que os ribeirinhos, que vivem nas várzeas e beiras de rio, dependem fundamentalmente da pesca, enquanto os seringueiros e castanheiros que vivem à beira de rios, igapós, igarapés ou terra firme dependem menos das atividades pesqueiras.

A vida dos caboclos ribeirinhos é regulada pela cheia causada pelas chuvas que inundam os rios lagos e pântanos. Para Diegues, (1999, p. 49) “esses caboclos são extrativistas e agricultores, que produzem em regime familiar, vendendo o excedente e, frequentemente, em períodos de maior demanda de força de trabalho lançam mão da troca de dias entre vizinhos”. Como as pequenas propriedades são situadas nas beiras dos rios, os ribeirinhos tiram proveito das várzeas, colhendo produtos alimentícios, principalmente a mandioca, mas também frutas e ervas medicinais.

A comunidade deve ser examinada no contexto do manejo dos recursos naturais, focando em múltiplos interesses e atores que formam essas comunidades (AGRAWAL; GIBSON, 1999, p. 130). Também, é necessário analisar como esses atores influenciam a tomada de decisões, e as instituições internas e externas que moldam o processo de tomada dessas decisões. Segundo Agrawal e Gibson (1999, p. 131), iniciativas de manejo comunitário deve basear-se em imagens da comunidade que reconhecem suas diferenças internas e processam suas relações com os atores externos e as instituições.

Para a maioria dos cientistas sociais, a participação comunitária é considerada fundamental para conservação e manejo dos recursos (AGRAWAL; ARMITAGE, 2005; BERKES, 2009; GIBSON, 1999; JENTOFT et al., 2005; MCGRATH et al., 1996; POMEROY, 1994). O estudo feito por Molnar, Scherr e Khare (2003), indicava que 370 milhões de hectares das florestas globais, estão legalmente sob propriedade ou administração de comunidades em 22% dos países em desenvolvimento.

Nas últimas duas décadas, o manejo comunitário dos recursos naturais evoluiu como sistema alternativo ao manejo centralizado pelo Estado (AGRAVAL, 2002; ARMITAGE, 2005). Esse tipo de manejo tenta enfrentar problemas relacionados ao acesso e controle sobre recursos comuns como pasto, floresta, caça, peixe etc. Segundo Armitage (2005, p.704), o manejo comunitário presume que as comunidades e as organizações comunitárias estão bem próximas aos recursos naturais; ambas viabilizam o uso sustentável dos recursos e possuem

conhecimento suficiente para fazê-lo. O sucesso do manejo comunitário depende da capacidade adaptativa (adaptive capacity) das instituições comunitárias (ARMITAGE, 2005). Esse autor sustenta também que os diferentes atores sociais que compõem o processo comunitário do manejo devem ter capacidades variáveis para adaptação às situações de perturbação do sistema e para tirar proveito positivo dessas perturbações.

Na análise dos recursos pesqueiros, Jentoft (2007) observa que as comunidades que se desintegram socialmente são uma ameaça para os estoques desses recursos. Nessa situação, os usuários não se preocupam com os recursos, nem com a própria comunidade. A análise desse autor é significante na gestão dos RC da várzea onde a maioria da população vive em comunidade. Segundo Jentoft, (2007), o sucesso da cogestão dos recursos depende da capacidade dos membros de uma comunidade de se comunicar entre si, de serem capazes de criar regras, de chegarem a um acordo com relação a essas regras, de fiscalizá-las e de agirem coletivamente.

As comunidades não são homogêneas e nem podem ser consideradas como um grupo uniforme de interesses. Existem tensões de gênero, étnicas, religiosa, políticas e sociais dentro delas. Também nelas podem existir indivíduos com interesses e motivações diferentes. Essas diversidades influenciam a gestão dos recursos de uma determinada comunidade ou área.

No processo de comanejo4 é necessário considerar diversas variáveis institucionais que

estão relacionadas com a comunidade (JENTOFT et al., 1998, p. 429). Em primeiro lugar, saber como a comunidade é compreendida. Em segundo lugar, estar ciente do locus e a escala que a comunidade representa no sistema. Em terceiro lugar, considerar como são representados os vários grupos dentro da comunidade afetada. Também nesse processo, é fundamental saber o direito de propriedade que a comunidade exerce. Estas questões não são simplesmente técnicas, mas altamente políticas que afetam a distribuição do poder entre aqueles que estão envolvidos na gestão e as relações sociais que moldam os diversos grupos inseridos na comunidade.

Jentoft et al. (1998, p. 429) afirma que devemos considerar as duas noções de comunidade na gestão dos recursos naturais, a noção tradicional da comunidade como redes de interação social, ligada ao lugar; história e identidade, indicada pela expressão "comunidade local" e a noção funcional de comunidade que, por sua vez, é baseada em atividades compartilhadas em maiores escalas geográficas. No caso da várzea amazônica, a primeira noção de comunidade é mais apropriada.

4 Nessa pesquisa, os termos gestão compartilhada, gestão participativa, comanejo e cogestão são utilizados como

O tipo de mobilidade dos recursos que as comunidades usam é essencial na gestão. Segundo Jentoft et al. (1998, p. 431) cogestão é baseado na comunidade local é mais apropriada para os recursos que tem pouca mobilidade. Esse tipo de manejo dos recursos significa amplo planejamento colaborativo entre os usuários, governo e cientistas em todos os níveis de tomada de decisão. Os usuários têm que ser representados no nível local, regional e nacional para que possam participar na regulamentação relacionada ao recurso. Na várzea, há lideranças comunitárias, presidente da associação, representantes de instituições religiosas, sindicatos, colônia da pesca, conselheiros do Projeto de Assentamento Agroextrativista, ONG, instituições governamentais, etc. O manejo do recurso envolve a interação desses representantes.

Para Jentoft et al. (1998), uma questão que deve sempre ser pensada é como essas lideranças que representam as comunidades são eleitas ou nomeadas para representar um ou outro grupo dentro da comunidade. É imprescindível averiguar a legitimidade da representação, isto é, é necessário verificar se essa representação decorre de um processo democrático de eleição ou se essa liderança apenas se afirma enquanto tal (JENTOFT et al., 1998). Há lideranças que estão presentes em organizações comunitárias, mas não representam legitimamente as comunidades.

O comanejo pressupõe a existência de um conjunto de opções de uso da propriedade para a gestão dos recursos naturais por seus usuários, com base em arranjos criados pelas próprias comunidades. Embora, no comanejo não necessariamente os usuários dos recursos tenham a sua posse, os diferentes sistemas de direitos de propriedade podem ter implicações diversas para seu funcionamento.

O fracasso da comunidade pode resultar, em alguns casos, na destruição dos recursos comuns (JENTOFT et al., 1995). Esse fracasso pode acontecer por não se estimular o autocontrole, a responsabilidade e coesão entre os membros da comunidade. Uma comunidade que se tenha desintegrado socialmente também perderá sua capacidade de punir comportamentos inaceitáveis com relação à pesca. A ação coletiva realiza-se por meio da participação efetiva das comunidades no manejo dos RC.

Um estudo realizado na Ilha de São Salvador (BERKES et al., 2006) onde foi criado o comanejo de recursos pesqueiros mostra que o sucesso do projeto de gestão compartilhada depende da participação dos atores e de um sentido de propriedade no planejamento e na implementação do projeto, clareza de objetivos, apoio dos líderes, parceria entre os pescadores e o governo, a especificação e legitimidade dos direitos dos usuários e da fiscalização, capacitação, e benefícios tangíveis como a redefinição do acesso aos recursos, mudança para

métodos de pesca não-destrutivos, melhor fiscalização e mudança biológicas, econômicas e sociais observáveis.