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Comunidade Quilombola Manoel Ciriaco – Guaíra Estado do Paraná

processo de titulação do território qui- lombola.

Com o objetivo de impedir que a comunidade tivesse êxito no seu pleito pela titulação do território os proprietá- rios rurais da região ameaçaram de morte a atual liderança da comunidade; impedi- ram que funcionários do incra fizessem estudos de campo; roubaram materiais e mantiveram funcionários do incra em cár- cere privado; impediram que o incra entregasse cestas básicas na comunidade, entre outras tantas ações65.

Frise-se que os opositores dos qui- lombolas também buscaram sufocar eco- nomicamente a comunidade, para que, assim, desistissem do pleito pela titulação do território, vendessem suas terras e se retirassem da região. Para tanto os pro- prietários rurais deixaram de contratar integrantes da comunidade para trabalhar na roça por diárias, como era de costume. Da mesma forma, passaram a coagir comerciantes da região a não empregar membros da comunidade e a dificultar qualquer atividade econômica da comu- nidade na região66. Também com esse objetivo, diziam inverdades aos quilom- bolas quanto ao direito de titulação.

Dado esse breve contexto, é possível afirmar que a situação de conflito está ali- cerçada na ação violenta e racista que proprietários rurais engendraram no momento em que observaram que a comunidade quilombola poderia vir a ter algum êxito no pleito pela titulação de seu território. o conflito, que, desde a década de 1950, era mascarado e colocava os qui- lombolas sempre em posição desfavorá-

vel, intensificou-se e tornou-se expresso quando os quilombolas passaram a se mobilizar por direitos e tiveram alguma resposta positiva por parte do Estado.

2.

Natureza dos direitos

reivindicados

os direitos reivindicados pela comu- nidade quilombola Manuel Ciriaco dos santos têm natureza fundamental, são direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. a comunidade luta por políti- cas públicas para a produção no campo, luta para manter sua cultura viva e respei- tada na região, luta para ter acesso a ser- viços básicos de educação, entre outros direitos humanos.

Contudo, para fins deste trabalho, merece especial relevo a luta da comuni- dade pela titulação de seu território qui- lombola. após quase meio século da chegada dos primeiros integrantes da comunidade à região, os atuais integran- tes do grupo têm dificuldades de se man- terem no campo em razão da pouca terra que possuem. apesar de nunca terem tido acesso a uma porção de terra que fosse necessária para manter o grupo sem que fossem necessários trabalhos exter- nos, hoje a comunidade ocupa uma área que tem cerca da metade da área original. se acaso a comunidade não obtiver êxito na sua luta pela titulação do território, há uma grande possibilidade de desagrega- ção do grupo como comunidade rural.

assim, os direitos reivindicados têm natureza fundamental e são essenciais para a continuidade da existência do

65 Fonte: parecer Incra SR(09) F4/nº 003/2010 e termo de declarações de Joaquim dos Santos, Adir Rodrigues dos

Santos ao Ministério Público Federal em 19 de outubro de 2009.

66 Termo de declarações de Joaquim dos Santos, Adir Rodrigues dos Santos ao Ministério Público Federal em 19 de

outubro de 2009, termo de declarações de Adir Rodrigues dos Santos à Polícia Federal em 24 de novembro de 2009 e parecer Incra SR (09) F4/nº 003/2010.

grupo como tal, nos termos do art. 68 do aDCT e da Convenção 169 da organi- zação internacional do Trabalho (oiT), sendo diretamente referidas a políticas públicas de titulação dos territórios qui- lombolas, vinculadas ao incra e sEPPiR.

3.

Agentes sociais

o principal agente social envolvido no conflito, na qualidade de sujeito cole- tivo de direitos, é a própria comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos santos. Também atua no conflito a Federação das Comunidades Quilombolas do Paraná (FECoQUi) e a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilom- bolas (CoNaQ).

a Terra de Direitos é uma organiza- ção da sociedade que atua assessorando juridicamente a comunidade, principal- mente no monitoramento do processo administrativo de titulação e nas situa- ções de conflito explícito, tendo realizado, por exemplo, o pedido de ingresso da comunidade e o acompanhamento do caso no Programa Nacional de Defen- sores de Direitos humanos.

4.

Instituições públicas

envolvidas

incra: órgão responsável pelo pro- cesso de titulação do território quilom- bola. é ao mesmo tempo violador e garantidor dos direitos da comunidade. De um lado, tem buscado garantir os direitos da comunidade dando andamento ao pro- cesso de titulação e possibilitando o

acesso a outros serviços (como a entrega de sextas básicas) e, de outro, tem violado direitos da comunidade, seja pela grande lentidão do processo de titulação67, seja pelo erro cometido com a contratação da oNioEsTE para realização do Laudo antropológico68. Também atuou reali- zando reuniões com proprietários rurais não quilombolas para informar sobre os procedimentos que seria adotados no processo administrativo de titulação.

Polícia Federal: atuou nas situações em que o conflito físico envolveu proprie- tários rurais e os funcionários do incra. De forma geral, atuou para garantir que o incra pudesse realizar suas atividades ante às ameaças advindas de proprietá- rios rurais.

Ministério Público Federal: atuou nas situações de conflito, ajuizando ações penais contra os proprietários rurais que teriam praticado crimes contra os inte- grantes do incra69. Também monitora o processo de titulação do território qui- lombola no incra. ajuizou ação civil pú- blica para coagir o incra a realizar a titulação do território em doze meses70.

Justiça Federal: processou ações penais contra os proprietários rurais não quilombolas e processa a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal.

sEPPiR: a sEPPiR teve uma atuação relevante para assegurar direitos da comunidade, seja através da realização de reuniões informativas com proprietários rurais não quilombolas, seja através do monitoramento do processo administra- tivo de titulação junto ao incra

67 Processos administrativos MEMO SR (09) F 519/2008. 68 Parecer Incra SR (09) F4/nº 003/2010.

69 Ação Penal nº 5000888-10.2012.404.70, Ação Penal nº 5000919-64.2011.404.70, Ação Penal nº 5000920-

49.2011.404.7017.

UNioEsTE: teve uma atuação fla- grante contra as comunidades quilombo- las na medida em que dois professores desta instituição foram indicados para realizar o laudo antropológico da comu- nidade. ao elaborarem o laudo, negaram à comunidade, explicitamente, a condição de quilombola e o direito ao território. o laudo não foi recebido oficialmente pelo incra e os professores sofreram represen- tação ante à associação Brasileira de antropologia71.

supremo Tribunal Federal: pode ser considerado um violador dos direitos da comunidade na medida em que deixa de declarar a constitucionalidade formal de material do Decreto Federal 4887/03 nos autos da ação Declaratória de inconstitu- cionalidade 4887/03. Essa situação gera insegurança para órgãos públicos, a exemplo do incra, e é utilizada por grupos contrários ao interesse da comunidade para deslegitimar o direito constitucional de acesso ao território da comunidade quilombola.

Polícia Civil: teve uma atuação pou- co eficaz na investigação dos crimes cometidos contra os integrantes da co- munidade quilombola, não contribuindo para refrear as ações ilegais contra a comunidade.

Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos humanos: teve uma atuação positiva na medida em que incluiu uma das lideranças da comunidade no programa72. a inclusão no programa e as visitas e monitoramentos à distância feitos pela equipe técnica do programa

ajudaram a fortalecer a comunidade, ao tempo em que demonstrou aos opositores dos direitos dos quilombolas que o estado também atua em defesa da comunidade.

grupo de trabalho Clóvis Moura: órgão do Estado do Paraná que realizou um levantamento sobre as comunidades quilombolas do Estado. Foi um dos pri- meiros órgãos públicos a dialogar com a comunidade sobre a questão dos quilom- bolas. a iniciativa de contato com a comunidade foi muito importante para que esta pudesse se reconhecer como remanescente das comunidades dos qui- lombos. Contudo, ao dialogar com a comunidade sobre as políticas públicas que teriam direito, não os alertou sobre os conflitos que poderiam advir com a busca por essas políticas, inclusive a territorial. Tal fato colocou a comunidade em uma situação de extrema vulnerabilidade.

Partido Democratas: partido político que ajuizou a aDi 3239 no sTF, gerando instabilidade no direito de titulação dos territórios quilombolas, inclusive no caso em apreço.

Deputado Estadual élio Rusch: visi- tou a área de conflito em atuação expressa contra o direito da comunidade quilombola, chegando mesmo a afirmar que a comunidade não era quilombola73.

5.

Agentes privados

Proprietários Rurais: grupo de pro- prietários rurais da região do conflito, que se opõe à titulação do território quilom- bola. o grupo é formado tanto por pro-

71 Representação realizadas pela Terra de Direitos à Associação Brasileira de Antropologia, fevereiro de 2011. 72 Fonte: <http://novoportal.sdh.gov.br/importacao/noticias/ultimas_noticias/2010/06/24-jun-2010-programa-de-

protecao-aos-defensores-de-direitos-humanos-vai-em-missao-a-comunidade-quilombola-em-guaira-pr>. Acesso em: 31 jul. 2013.

73 Fonte: <http://www.aquiagora.net/noticias/ver/4221/Para-Rusch-caso-de-Maracaju-dos-Gauchos-e-agressao-ao-

prietários rurais, que podem vir a ser afe- tados em uma situação de desapropria- ção, como por pessoas que não serão atingidas diretamente pelas desapropria- ções ou outras medidas do estado. atuam de forma a impedir que a comunidade tenha acesso a políticas públicas, princi- palmente a de titulação do território, agindo muitas das vezes de forma ilegal. há fundada suspeita de que estão envol- vidos nas ameaças a integrantes da comunidade e funcionários do incra.

6.

Quadro de agentes e

instituições envolvidas

no conflito

o Quadro 7 é ilustrativo da comple- xidade social e institucional que envolve o conflito fundiário na Comunidade Quilombola Manoel siriaco, revelando uma teia de agentes e instituições que sugere também o sentido e o caráter da complexidade que uma adequada solu- ção do referido conflito reivindica.

Quadro 7 - Agentes e Instituições Envolvidas no Conflito

SOCIEDADE CIVIL ESTADO

sujeitos Entidades

agentes sistema de Justiça Poder Poder Coletivos de sociedade

Privados Poder Ministério Defensoria Executivo Legislativo Direitos Civil Judiciário Público Pública

Comunidade Terra de Proprietários supremo Ministério sEPPiR Dep. quilombola Direitos Rurais Tribunal Público Estadual

Manuel Federal Federal élio Rusch

Ciriaco dos santos

Federação incra Partido

quilombola Democrata do Estado do Paraná CoNaQ Programa Nacional de Defensores e Defensoras de Direitos humanos Polícia Federal grupo de trabalho Clóvis Moura - do Estado do PR Polícia Civil Universidade do oeste do Paraná

7.

Quadro da Judicialização

do Conflito

Como foi possível observar, à com- plexidade social e institucional corres-

ponde, também, uma intensa prática liti- gante envolvendo os respectivos sujeitos, agentes e instituições, conforme o Quadro 8 demonstra:

8.

Panorama atual do conflito

No atual momento, a situação de conflito permanece, principalmente ante às incertezas quanto ao desfecho final do processo administrativo de titulação do território quilombola. a fragilidade da política pública de titulação de territórios quilombolas é o principal entrave para a solução do conflito.

No atual momento, a situação não está exacerbada quanto à dimensões vio- lentas do conflito. isso, porque a comuni- dade consegue, ainda que de forma precária, sobreviver com políticas públicas como o Bolsa Família, entrega esporádica de cestas básicas e programas como o Compra Direta. Por outro lado, a ausência de capacidade do incra em dar andamento ao processo administrativo de titulação faz com que os opositores da comunidade não adotem medidas mais enérgicas para tentar inviabilizar a titulação do território.

a atuação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal nas questões relacionadas aos crimes cometidos pelos fazendeiros também contribuiu para que as intimidações e violências praticadas contra a comunidade arrefecessem. Contudo, a absolvição de todos os proprietários rurais nos processos criminais abre caminhos para novas ações truculentas. Estima-se que, se o incra efetivamente voltar a traba- lhar pela titulação do território, as situações de conflito podem se acirrar.

acredita-se que só há possibilidade real de resolução do conflito se for garantido o direito de acesso à terra para a comunidade quilombola Manoel Ciriaco dos santos. sem a garantia desse direito a comunidade per- manecerá em situação de vulnerabilidade social e econômica. a continuidade da luta da comunidade pelo acesso à terra não dei- xará de gerar reações por parte de grupos opositores e o conflito dificilmente cessará.

Quadro 8 - Judicialização do Conflito

CASO COMUNIDADE QUILOMBOLA MANOEL SIRIACO Categorias de Litigantes Classe Processual Manejada

Justiça Cível Tipo Penal observação advocacia Popular

agentes do Estado Ministério Público ação Civil Pública Busca-se a titulação do

Federal território em 12 meses

Ministério Público injúria em razão de agentes privados

Federal raça, cor, etnia, processados por ato contra religião funcionários do iNCRa

e contra a comunidade. absolvidos

Ministério Público ameaça agentes privados

Federal processados por ato contra

funcionários do incra e contra a comunidade. absolvidos

Ministério Público sequestro e Cárcere agentes privados Federal Privado; auxílio à processados por ato contra

fuga de autoridade; funcionários do incra e contra a comunidade. absolvidos

agentes Privados

1.

Histórico do caso

a Terra indígena Maró compreende as etnias Borari e arapium e está locali- zada na margem esquerda do rio Maró, município de santarém, oeste do Pará. Com uma população de 239 habitantes, distribuídos em 43 famílias, a Ti Maró é constituída pelas aldeias Novo Lugar, Cachoeira do Maró e são José iii, em uma área aproximada de 42.373 ha74.

a Terra indígena Maró está encra- vada numa vasta extensão de terras públi- cas devolutas75sob a jurisdição do Estado do Pará76denominadas gleba Nova olinda i, gleba Nova olinda ii, gleba Nova olinda iii, gleba Mamuru e gleba Curumucuri, sudoeste do Município de santarém e sul do município de Juruti, numa região mar- cada por um alto potencial de recursos naturais e pela multiplicidade cultural e territorialidades tradicionais, sendo resi- dentes comunidades indígenas, extrativis- tas, pescadores e ribeirinhos77.

a gleba Nova olinda i é a área na qual a Ti Maró está sobreposta e onde tem sido palco de conflitos que perdu- ram ao longo dos últimos anos, moti- vados pela disputa por terras, pela exploração e uso de seus recursos natu- rais e pela indefinição fundiária. a luta do povo indígena Borari-arapiun na conso- lidação e defesa de sua identidade e de seu território se identifica com a história recente da Nova olinda i.

Em 2000, o instituto de Terras do Pará (iTERPa) iniciou os trabalhos para a destinação e a delimitação da área para a população tradicional local. Durante as reu- niões, “ficava claro que o governo do Pará pretendia destinar o restante que sobraria para outras atividades econômicas, como os Planos de Manejo Florestais e planta- ções de soja78”. Nesse ínterim, “já se identi- ficava a presença e a movimentação de pessoas estranhas” requerendo protocolos de posse na gleba79, alguns até em áreas

Caso nº 4

Conflito Tradicional – Caso da Terra