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O termo Casa, neste livro, tem duplo significado e o utilizo, em geral, como sinônimo de grupo doméstico ou família. Por isso, ao falar de Casas matriar- cais, refiro-me a famílias ou arranjos domésticos de tipo matriarcal. A defini- ção de família, pois, é próxima à noção de grupo doméstico, podendo formar uma “unidade de produção”, ou não, mas sempre como sendo um âmbito de reprodução social e de consumo, onde se estabelecem complexas e dinâ- micas relações sociais entre os seus integrantes. O domicílio onde as famí- lias costumam se reunir indica ser esse um espaço de convivência de pessoas ligadas por laços de parentesco ou dependência, estabelecendo relações de afeto, solidariedade, tensão e conflito. Por isso é um espaço físico e social de divisão social – sexual e geracional3 – do trabalho, no qual a vivência do jogo

de poder se cristaliza na distribuição de direitos e deveres de cada indivíduo. Nessa concepção de família estão combinadas definições de sociólogas como Bruschini (1990) e Jelin (1994), associadas ainda ao conceito de curso de vida, desenvolvido por pesquisas sociodemográficas e sociológicas sobre família. (GOLDANI, 1989; HAREVEN, 1978; OJEDA, 1989)

Desta perspectiva, parto do pressuposto da existência de uma variedade de arranjos familiares que extrapolam o modelo nuclear tradicional (ou ele- mentar). E cada arranjo doméstico transversal o entendo, por sua vez, como resultado de uma variedade de combinações e possibilidades de arranjos que o antecede. Assim, um mesmo grupo familiar, ao longo da sua história, passa por etapas diferentes de organização domésticas, que variam entre ex- tensas, nucleares, incompletas ou compostas. Essa é, em suma, a ideia cen- tral do conceito “curso de vida” (HAREVEN, 1978; OJEDA, 1989; GOLDANI, 1989) que se distingue do de “ciclo de desenvolvimento vital” desenvolvido nos estudos de Meyer Fortes (1958), tão usado na demografia e estudos de família. O esquema analítico proposto pelo conceito curso de vida acres- centaria ao de ciclos de desenvolvimentos da(s) família(s) a possibilidade de

captar processos e informações de dinâmicas de unidades de análise tanto familiares quanto pessoais, simultaneamente, ao poder captar dados sobre o processo em curso ao longo do tempo dos diferentes momentos ou ciclos domésticos (isto é, diferentes coortes transversais de grupos domésticos em determinado momento do seu ciclo vital). Por isso a noção de curso de vida é mais ampla e flexível que a anterior, ao incorporar ao modelo teó- rico anterior novas dimensões analíticas, tais como as de: a) temporalidade, b) a variação na sequência de eventos que o caracterizam e c) informações sobre as transições vitais essenciais pelas quais cada domicílio atravessa. Ao adotar a perspectiva de estudo de cursos de vida, busco poder tratar das trajetórias tanto individuais quanto coletivas no ciclo vital familiar de um grupo ou rede, entendidos como processo, e não como momento estanque ou congelado de um momento específico de suas trajetórias. Interessou-me captar, nessa concepção, tanto a sincronia quanto diacronia dos domicílios, e dos sujeitos que os compõem. Estas são as principais concepções sobre família nas quais me apoio, e que, no curso deste livro, denominarei Casa. Entretanto, cabe observar que esta relação sinonímica realizada entre fa- mília e Casa não visa a confundir as diferenças que também existem entre ambos os conceitos.

Enquanto diversos autores usam o termo “família” para se referir a esse conjunto de laços de consanguinidade (ascendência e descendência genea- lógicas, famílias de origem, etc. que tendem a viver em diferentes domicílios e em geral estão unidos pelo vínculo do parentesco), eu prefiro identificar essa ideia por terminologia mais ampla da antropologia social, a de “redes de parentesco”, ou o que por momentos também identifico ou chamo de “redes sociais” de diferentes grupos domésticos (aos que sim tento identificar com a noção de casa ou “família” nesse sentido mais restrito, onde o critério da corresidência tem papel central). Trata-se obviamente de terminologias bem diferentes entre si, mas que se cruzam e interpenetram, e por momentos até se confundem ou sobrepõem, como se verá na etnografia adiante.

Com a ideia de Casa (família) que aqui defendo, busco traduzir e expressar nela tanto a ideia da(s) unidade(s) domiciliar(es) envolvida(s) (e que Marcelin (1996) identifica por configurações de casas) como pelo de sua rede mais am- pliada de relações, motivos pelo que nem sempre uma Casa, como se verá adiante, pode ser reduzida ou entendida como sendo a de um único domicílio. Muitas vezes o termo Casa também é neste estudo usado para identificar todo

o grupo matriarcal que o compõe e que é também o que aqui estou aproxi- mando aos das noções de rede de parentesco ou rede social.4

Dos dois significados do termo casa mencionados, o primeiro (casa)5 re-

firo-o à ideia concreta de espaço físico e geográfico onde habitam diferentes pessoas. No segundo, assim como em Gilberto Freyre (1992 [1933]), DaMatta (1985) e Lévi-Strauss (1991, 1992) – (Casa)6 – designo a ideia de grupo do-

méstico ou familiar, a vida de seus membros e as interações que os com- põem; aproximando-o de noções como estirpe, clã e até mesmo da de fa- mília. Nesta direção, o uso do conceito Casa que propõem estudos de Janet Carsten & Stephen Hugh-Jones (1995) e em contexto do Recôncavo baiano, o de Louis-Herns Marcelin (1996; 1999), atualizam criticamente o conceito de Casa lévi-straussiano, ao articulá-lo às dimensões como prática e pro-

cesso, inspiradas em teorias de Pierre Bourdieu. Vale ressalvar que o uso do

signo Casa neste livro representa, de modo unitário e simultâneo, tanto a ideia de casa – espaço físico – quanto o aspecto social – grupo doméstico, pertença, família. Já o termo casa, refiro-o unicamente à noção de domi- cílio/ o espaço material e físico.

Na definição de Lévi-Strauss (2007 [1991]), a Casa (Maison) designa uni- dades que não se deixam definir nem como famílias, nem como clãs ou linhagens,7 pois, através da ideia de Casa, propõe articular noções debatidas

nas Ciências Sociais e nos estudos de parentesco. Para ele, que em alguns de seus escritos se refere a Sociedades de casas:

A casa é: 1) uma pessoa moral, 2) detentora de um domínio, 3) com- posta de bens materiais e imateriais, e que, 4) se perpetua pela trans- missão de seu nome, de sua fortuna e de seus títulos em linha real ou fictícia, 5) tida como legítima, com a única condição que essa conti- nuidade possa se exprimir na linguagem do parentesco ou da aliança

4 Valiosas contribuições sobre terminologias e dimensões de Redes Sociais em cidades africanas e

de outros contextos, constam em Mitchell (1969, 1987), Van Velsen (1987), Bott (1976) e Hannerz (1980).

5 Em minúsculo e sem itálico. 6 Em itálico e com C maiúsculo.

7 Em suas palavras ele diz: “On ne peut ramener à aucune des catégories classiques de la théorie

ethnologique que: ce ne sont ni des clans, ni des steps, ni des gens, ni des lignages ou lignées, ni exactement des familles” (LEVI-STRAUSS, 2007 [1991], p. 434)

ou 6) dos dois juntos. (LÉVI-STRAUSS, 1984, apud MARCELIN, 1996, p. 77).8 (LÉVI-STRAUSS, 2007 [1991], p. 435),

Lévi-Strauss recoloca assim a Casa no centro das discussões enquanto realidade física e instituição social, combinando princípios contraditórios e transcendendo-os. Por sua vez, Louis-Herns Marcelin (1996) recupera o con- ceito lévi-straussiano e o enriquece em estudo etnográfico sobre o Recôncavo baiano ao investir em um conjunto novo de questões, para as quais faz uso do esquema analítico de Bourdieu, lançando mão do seu rico e complexo sistema de opostos nas suas descrições sobre o espaço. Em direção muito próxima às perspectivas apresentadas no livro organizado por Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones (1995): About the House, que discutem e reatualizam a ideia de Casa Levy-Straussiana, Marcelin (1996) utiliza novas dimensões como a noção de prática e processo próprios da teoria de Bourdieu,9 que as

define como sendo um novo e peculiar modo de olhar e entender as relações de parentesco em setores populares de uma perspectiva bem mais dinâmica do que aquela que Lévi-Strauss conseguira de fato imprimir a este conceito.

O livro mencionado organizado por Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones (1995) reúne resultados de pesquisas etnográficas no Sudeste asiático e entre grupos indígenas sul americanos, no que se retoma, ora se apropriando, ora criticando e propondo novas direções, conceitos de Casa e Sociedade de Casas em Lévi-Strauss.10 De modo inovador, propõe-se a investir em uma 8 No Dicionário de Etnologia e Antropologia, organizado por Pierre Bonte e Michel Izard (2007

[1991]), onde Lévi-Strauss também define o conceito Maison, ele diz: “Par rapport au clan ou au lignage, la maison possède don des caractères distintifs qu’on peut énumérer comme suit. La maison est 1) une personne morale 2) détentrice d’un domaine 3) composé a la fois de biens ma- tériels et immatériels, et qui 4) se perétue par la transmission de son nom, de sa fortune et de ses titres en ligne réale ou fictive, 5) tenue pour légitime à la condition que cette continuité puisse se traduire dans le langage de la parenté ou de l’alliance, ou 6) les plus souvent les deux ensamble”. (LÉVI-STRAUSS, 2007 [1991], p. 435).

9 Certamente a ideia de habitus da visão bourdiana é essencial e catalisadora, pois combina dia-

cronia e sincronia, ação e estrutura.

10 O conceito de “Sociedade de Casas” Lévi-Straussiano, dizem Carsten e Hugh-Jones (1995), “é

marcado pela tensão do peso morto de velhas categorias de parentesco e o esforço de as trans- cender pela integridade de formas sociais resistentes” (CARSTEN & HUGH-JONES, 1995, p. 20). Lévi-Strauss teria prestado atenção para o fato de que, como uma instituição, a casa combina um conjunto de séries de princípios opostos ou formas sociais como a filiação/residência, des- cendência patri-/matri-linear, hipergamia/hipogamia, casamento próximo/distante, onde a teo- ria tradicional do parentesco as trata com frequência como sendo mutuamente excludentes.

abordagem mais culturalista e holista da casa, em que sejam melhor inte- gradas perspectivas de análise tanto arquitetônicas, como simbólica e sociais, visando a construir uma antropologia da arquitetura que esteja também arti- culada a outra antropologia do corpo. Desta perspectiva, o conceito de casa é frutiferamente redirecionado para a relação existente entre edificações, grupos de pessoas e categorias, com novos insights analíticos sobre o tempo e processo, casa e suas principais associações, sobre a reprodução biológica e a social, etc. A casa é tratada nesta perspectiva como idioma simbólico, esse “locus de densas teias de significados, e modelo cognitivo para estruturar, pensar e experimentar o mundo”. (CARSTEN; HUGH-JONES, 1995, p. 3)

Vários artigos dessa coletânea exploram modos de conexão entre casas e pessoas que as ocupam, combinando áreas da vida social que a Antropologia tendeu a separar, ao enlaçar essa antropologia da casa com a do corpo. Deste ponto é possível afirmar que a casa é uma extensão da pessoa, como se ela fosse uma pele adicional, e portanto, associada à própria noção de pertenci- mento social. Nas palavras dos organizadores do livro:

E por isso as casas podem ser pensadas também como corpos, com- partindo com eles uma anatomia comum e uma história de vida co- mum. Se as pessoas constroem casas e as fazem a sua imagem, é por- que eles também usam suas casas e imagens delas para construir a si mesmos como pessoas e grupos... A casa é uma extensão da pessoa e de seu self. (CARSTEN; HUGH-JONES, 1995, p. 3)

Tal como as pessoas, pode-se dizer que as casas também nascem, vivem, desenvolvem-se, morrem ou declinam. E renascem. É por seu duplo signifi- cado como uma estrutura física e representação do grupo social ou família, que é fundamental que se considerem suas características arquitetônicas, e como um aspecto importante de sua importância como unidades sociais, tanto na vida como no pensamento. Entender assim a casa é o mesmo que vê-la como processo dinâmico.

Inspirada nesta perspectiva, penso que ir para além das formulações de Lévi-Strauss sobre a casa implica considerar as casas e seus habitantes como parte de um processo do próprio viver e experiência de seus agentes. Aspecto inovador desta perspectiva que também me aproprio é o tratamento das

A casa logo, toma a aparência de unidade de princípios opostos que os torna mutuamente equi- valentes” (CARSTEN; HUGH-JONES, 1995, p. 8)

relações de parentesco como algo processual e articulado à ideia de mobi- lidade em análise arquitetônicas e de espaço, metafórica ou literalmente falando. A mobilidade espacial pode ser apreendida através da captura de distintas imagens de um mesmo lugar ao longo do tempo, identificando transformações espaciais ocorridas, como o faço ao analisar diferentes