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Violência policial e do tráfico de drogas

O temor dos moradores frente aos diversos modos de manifestação da vio- lência na comunidade era constante. Eram forçados a presenciar e vivenciar cenas de elevados graus de violência, de todos os tipos. O abandono de ser- viços de segurança por parte do Estado dirigido a áreas periféricas era visível. Nessa época, no NE, não tinham sido implantadas as Bases Comunitárias de Segurança (BCS)6 que chegam a Salvador a partir de maio de 2011 e em 2013, 6 Nova política de Segurança Pública, inspirada no modelo adotado por autoridades do Rio de

Janeiro a partir de Novembro de 2008 nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Ela preten- de, em um primeiro momento, “pacificar” os bairros mais pobres e castigados pela violência por meio do uso massivo da força policial ou militar, que visa a expulsar traficantes de regiões alvo; para, em um segundo momento, estabelecer a presença permanente de policiais treinados para atuar em comunidades. Em Salvador, o nome oficial destas unidades é Bases Comunitárias de

o NE já contava com três delas. No período não existiam estes equipamentos supostamente mais eficazes e sensíveis à necessidades de controlar a crimina- lidade, menos ainda o de controlar abuso de policiais quando lá entravam na busca, supostamente, de algum marginal, sem distinguir moradores honrados e jovens trabalhadores de pessoas ligadas, verdadeiramente, ao trafico de drogas. Vívidos e indignados eram os relatos sobre a entrada de policiais no NE, barba- rizando e apavorando os moradores. Em geral, demonstravam mais medo da polícia do que dos próprios bandidos, alguns deles velhos conhecidos de pes- soas mais velhas que os viram crescer ou amigos de infância, com os quais se estabelecia maior ou menor grau de proximidade e empatia. Ao invés disso, em relação aos policiais, predominava a postura do medo e desconfiança.

Entre os exemplos de violência citados como mais visíveis e graves era geral o consenso em identificar aqueles praticados pelos marginais e pela polícia, uma presença tratada como nefasta e iniludível, que os afetava em maior ou menor grau, segundo o segmento de vizinhança que ocupavam, da presença de alguém envolvido no tráfico de drogas na própria família, ou vi- zinhança próxima, das relações e reciprocidades que existiam entre essas fa- mílias e/ou os envolvidos no tráfico, independentemente de não aprovarem seus atos. Enfim, em relação ao tráfico, posicionamentos e experiências vi- venciadas dependiam do segmento que cada pessoa ocupava na estrutura do bairro. Dele falavam com desinibição alguns dos homens, mulheres e criança; com maior cautela, outros, usando, por vezes, voz baixa indicando medos e receios frente a tais atividades.

Guerras entre traficantes eram tão comum naqueles anos, como o são até hoje. Não era raro encontrar relatos sobre cadáveres, especialmente de jo- vens do gênero masculino, nos terrenos baldios ou proximidades do Parque da Cidade. A guerra entre quadrilhas e gangs existia, até que algum deles se impunha e dominava o território. Aqueles que não pagavam dívidas po- diam ser retirados com violência de suas casas e eram violentamente assas- sinados por grupos rivais ou grupos de extermínio. Também era comum homens perderem a vida em brigas e desavenças com outros, esfaqueados ou por tiro, e pelas retaliações entre inimigos, ferindo ou matando aqueles que consideravam ser informantes da polícia ou inimigos pessoais. Um caso noticiado nos jornais, entre eles no A Tarde, aos 20/07/ 2011, foi o do Pai Segurança. A primeira de todas foi a BCS do Calabar, seguindo-lhe as instaladas no Nordeste de Amaralina e Subúrbio Ferroviário.

de Santo do Nordeste acusado, segundo informações da mídia, de apontar à polícia nomes de delinquentes quando ocorreu a instalação da primeira Base de segurança comunitária do Nordeste de Amaralina. A maioria dos moradores conhece muito bem quem são os bandidos da vizinhança, mas a grande maioria prefere não os denunciar buscando convivência pacífica com eles, evitando retaliações futuras a seu grupo familiar se os denun- ciarem. A crítica ao comportamento policial e dos traficantes do bairro era claramente identificada por todos como os principais e mais graves pro- blemas de violência, acusados de serem responsáveis pela imagem negativa do bairro frente a sociedade soteropolitana.

Essa imagem negativa que a sociedade tem de bairros periféricos e, de modo massivo, é acriticamente divulgada na mídia, era alvo das principais queixas dos moradores do NE que se queixavam, porque os estigmatizava em conjunto, independente das diferenciadas experiências pessoais e familiares ao interior do NE no que se refere a temas de violência, criminalidade e de- mais outros da vida cotidiana. Deste tipo de raciocínio se depreende implí- cita acusação de serem os pobres de espaços sociosegregados das periferias os próprios culpados dos problemas de violência. A seguir são destacados tre- chos de percepções de moradores do NE sobre a violência em geral, e a poli- cial e marginal em particular que visam a recuperar um olhar mais complexo e matizado da experiência de viver em pobreza.

Para Nide, mulher jovem, moradora da invasão do Boqueirão, o problema da violência ocorria tanto na área nova de invasão quanto na zona antiga:

Conheço o Vale das Pedrinhas, a Sta. Cruz, que agora tá um lugar peri- goso, não se pode andar nem de noite nem de dia, tá fazendo medo de você andar porque é morte toda hora, é estupro, é assalto. Aliás todo

canto tá perigoso agora, é tudo igual, 3 bairros que eu nunca devia ter chegado - Nordeste, Sta. Cruz, Vale das Pedrinhas, pode ver até

nos jornais, no rádio, quando fala de qualquer crime, foi assalto, foi no Nordeste de Amaralina. Porque é aqui que está a gang todinha, que está as pessoas que não gosta de si mesma, gosta de se maltratar a si mesmo e aí difama todo mundo. Porque o Nordeste é imenso, mora muita gente boa aqui; mas no meio de 10, se tirar 5 tira muito. (Nide, 21 anos, mo-

Eliene avaliava a vizinhança da Nova República (área de invasão) com res- trições, mas com um tom menos acusador e mais cuidadoso do que Nide, ao falar dos vizinhos:

Não tô desfazendo de ninguém, mas prá mim isso é favela e vai ficar

pior ainda, porque é o bairro mais falado; quando acontece qualquer coisa aí na Amaralina, Pituba, a polícia corre prá cá. Não gosto de ver, ouço falar. [...] Outro dia mataram um ali. (Eliene, 37 anos, moradora

de invasão)

Neto, rapaz jovem que brincava e cresceu junto a muitos dos marginais mais temidos do pedaço, constatava os efeitos da violência sobre a questão do emprego para a nova geração e culpava a força policial de boa parte do pro- blema, em atitude mais crítica:

A polícia reprime muito, a família também se você for envolvido em dro- gas, porque vai se preocupar com a sua conduta perante os vizinhos. A área do trabalho também fica prejudicada, ainda mais se souberem que você mora no Nordeste: Vale, Santa Cruz, Chapada. Na cabeça do em- pregador é tóxico, vagabundagem, dá uma impressão ruim, já aconteceu comigo [Isso de ser confundido com marginal]. (Neto, 24 anos, área antiga)

Nas áreas mais estabilizadas, a demanda por proteção policial fazia sentido para um setor da população. Alguns dos moradores mais antigos acreditavam que o policiamento poderia resolver a violência sem um envolvimento direto com os setores marginalizados. Para outros, principalmente os da invasão, a solução ao problema não se reduzia à entrada da polícia, a qual, via de regra, deixava marcas de mortes de inocentes que eram desaprovadas pela maior parte dos moradores. Seu Mileno, pessoa idosa do bairro, reivindicava o poli- ciamento para conter os “vagabundos” (que, aliás, para ele não eram de sua rua) muitos dos quais queimavam fumo (ainda que reconhecia, por outro lado, que eles não incomodavam), para seu Mileno: violência [mesmo é a que] tinha ali,

só no futebol e no jogo de baralho. D. Detinha afirmava que a polícia conhecia

o ponto dos marginais e que suas netas só frequentavam apenas um dos sam- bões do bairro – o Elite – porque os outros era bocada, muita briga, tiro, quando

juntava polícia civil com militar. Considerava, entretanto, que o Vale (das

Pedrinhas), onde ela morava, era mais calmo que o Areal e a Sta. Cruz, onde os marginais se escondiam. O pai de Santo Xisfredo falava do fim de linha do

Nordeste, onde morava, como local menos violento e o contrapunha ao da in- vasão: (lá) é tudo beco e tem o matagal e o Parque, longe da polícia, para o esconde-

rijo dos malandros. D. Anete dizia haver presenciado cadáveres pela vizinhança,

e afirmava contundentemente que não reconhecera nenhum morador da sua rua. D. Cica não gostava de sair à noite para ir ao Candomblé, como fazia an- tigamente, porque agora tinha medo: Eles não respeitam nem criança... quanto

mais, velho. Sobre a questão do policiamento, Nide, que morava na invasão e

tinha pretensões de ascender para outro status social, demonstrava insatis- fação e medo com a violência da vizinhança:

[aqui] ninguém gosta de ninguém porque se todo mundo juntasse e fi- zesse um abaixo-assinado prá ter policiamento direto, até acabar com a gang toda... Mas se fizer isso, a mesma pessoa que assina vai pro mar- ginal e diz: tal pessoa tá fazendo assim, assim, prá polícia vir aqui, e aí o marginal vem e te mata. (Nide, 21 anos, moradora de invasão)

Sobre a identificação dos marginais, Neto relatava, em um comentário que buscava afirmar seu distanciamento desse modelo de marginalidade, descrevendo e criticando o processo de iniciação ao tráfico:

Sei como começa, passa o dia todo no bairro, jogando bola, baralho, quando você passa, ele cola junto e pede um trocado. A noite você che- gando em casa, vê eles metendo mão em tóxico, com os próprios homens (polícia). (Neto, 24 anos, morador antigo)

Nide observava que antigamente os delinquentes assaltavam rico porque

tinham, mas que agora estavam assaltando pobre com uma grande vantagem: Os fracos não faz nada, só fica assustado, chora porque perdeu uma coisa de valor; o rico vai prá polícia. Por isso é que o assalto aqui tá mais peri- goso do que lá fora. (Nide, 21 anos, moradora invasão)

D. Tilde, médium espírita, ex-frequentadora de Candomblé, tinha para os delitos dos marginais uma explicação sobrenatural: são as sombras negativas

daqueles que morrem assassinados e que não tendo descanso atrapalham a vida das pessoas, levando-as a ter vontade de brigar, sem conseguir se conter. Dizia

que os crentes interromperam muitas seitas, sessões de caboclo e espiritismo que limpavam a vida das pessoas: Aí começou a surgir essa agonia desses assalto,

Contava o caso de um vizinho morto como vigia de um colégio, por um adoles- cente; contando que na área onde morava já havia morrido muitos marginais, mas que apareciam outros no seu lugar. Para esta moradora, eram os espíritos se manifestando e encarnando nos bandidos; a religião, marcada pelo sincre- tismo, era o modo pelo qual explicava a violência atual e do mundo.

Nina, que lamentava muito o fuxico e a inimizade na área, sustentava, en- tretanto, que a violência tinha maior procedência externa, do que a suposta violência interna ou entre vizinhos da invasão onde morava:

Só tem briga quando gente de outro bairro provoca, mas, briga entre os daqui mesmo não acontece. Só se envolver a morte de um policial ou se tiver algum problema lá na Pituba ou no Rio Vermelho. A polícia vem bater aqui com a arma na mão, na frente das crianças. Quando mata- ram um policial morador daqui, o ano passado, eles fizeram um rebuli- ço, mataram dois. Então o povo aqui fica revoltado, por qualquer coisa. Aqui se discutir, quer logo matar. É muito fuxico. (Nina, 21 anos, mora-

dora invasão)

Com respeito à atuação policial, Neto comentava a parcialidade e cor- rupção desta corporação envolvendo alguns dos membros que moravam no próprio bairro, o que reforçava o estigma ao que todos os moradores do NE estavam sujeitos, remarcando a situação de desvantagem quando entravam em ação julgamentos discriminatórios entre classes sociais, em que o cul- pado é sempre o negro e o pobre:

Antigamente a polícia chegava e procurava saber o porquê do aconte- cimento para punir os culpados. Hoje é diferente, eles andam revoltados com o próprio salário. Se tiver um barulho entre um cara da Chapada e um cara da Pituba, só citar esses dois nomes já influencia muito, ele vai ouvir o cara da Pituba, mas o cara da Chapada ele vai baixar o pau logo, chamar de vagabundo, porque o cara é lenhado. Apareceu agora esse Rambo, que tem fama de arregaçar, mora no bairro, antes era motorista de ônibus e entrou prá polícia; é violento, mata, foi até suspenso por 90 dias. (Neto, 24 anos, morador antigo)

Cláudio, por sua vez, que também enfatizava a violência policial, mais do que a da vizinhança, dizia:

Quando tem comando da polícia é demais, não respeita as crianças, espanca gente que não é vagabundo, sai dando tiro, assustando todo

mundo de madrugada, até por brincadeira. As vezes entra no colégio abandonado e dá tiro. A casa do pai de santo já foi invadida, há uns 6 meses, teve umas mortes na minha porta. Tem um tal policial que cha- ma Rambo, que faz barbaridades. (Cláudio, 27 anos, morador invasão)

A perspectiva de Cláudio e Neto era semelhante à de D. Tiza, para quem violência há pouca na invasão, e a polícia é que entra acabando com tudo. Quando D. Tiza recorreu à polícia devido à briga com uma vizinha no Areal, foi mal entendida, por isso testificou que os policiais são todos descarados. Sobre a ilegitimidade da ação policial, por sua vez, Eliene comentava:

Criança eles batem também. Se ele pegar uma criança no meio de um adulto, ele pega, eles bate, eles faz malvadeza, algema, certo? Acha que uma criança de 8/9 anos é pra sair algemada da polícia? Não é! É pra eles pegar pelo braço e levar, né? Eles algemam, eles dão pontapé, eles bate. (Eliene, 36 anos, moradora da invasão)

A oposição à polícia por parte de parcela significativa dos moradores, jus- tamente os mais vulneráveis à ação, ou os mais críticos e esclarecidos, po- deria questionar se alguns dos casos, podiam se tratar de certa proteção ou cumplicidade com alguns dos bandidos do pedaço7. Contudo, na maioria das

narrativas coletadas, predominou clara manifestação de extremo descon- forto e indignação com a violência da polícia, quando comparada à dos mar- ginais, com frequência aparecendo posturas com forte teor crítico sobre a violação de direitos humanos.

As duas formas de manifestação de violência apareciam, na maioria dos depoimentos, como projeções do comportamento dos outros, os vaga-

bundos e policiais. Tais depoimentos contrapunham a visão do trabalhador

honesto com a daqueles que não se respeitam, numa operação que pareceria negar a proximidade com esse tipo violência. Mas se falava também de ou- tros tipos de violência e conflitos nas próprias casas e vizinhança; este tipo

7 A noção de pedaço, segundo Magnani, (2002, p. 20 e 21): “[...] supõe uma referência espacial,

a presença de seus membros e um código de reconhecimento e comunicação entre eles. É o espaço demarcado que se torna ponto de referência para distinguir determinado grupo de fre- quentadores e sua pertença a uma rede de relações. Este é um espaço intermediário (lugar dos colegas) entre o público (lugar dos estranhos) e o privado (lugar da família) que desenvolve uma sociabilidade básica. Mas pedaço também passou a designar um território que funciona como ponto de referência, para além do de um tipo particular de sociabilidade e apropriação do espa- ço urbano.” Ver também Magnani (1998).

de comportamento era considerado menos grave que os descritos e muito mais tolerados, apesar de serem, igualmente intensos, resultantes, muitas vezes, de situações de perda de reciprocidade entre amigos, vizinhos ou pa- rentes. Todavia, em outros momentos desse mesmo discurso havia amplas referências aos fortes laços e consórcios entre a rede de vizinhança que dava suporte em situações e casos específicos como os da ajuda recebida em mo- mentos críticos, de problemas de saúde, tragédias familiares, etc.

Contudo, essa perda de reciprocidade da que falavam muitos e é discutida demasiadamente pela teoria social contemporânea pode ser resultado dos mais variados processos: ela pode ser resultante da crise e falta de recursos cada vez mais absoluta que mina e debilita redes de sociabilidades urbanas; ou de posicionamentos situados e subjetivos que, ao comparar momentos mais re- cente a outros vividos anteriormente, a pessoa tenderia a construir um tipo de discurso mítico sobre um passado e tempos melhores que de fato nunca exis- tiram como tais, em qualquer contexto urbano referido. Nesse sentido, con- sidero fator preponderante na produção de tensões e falta de reciprocidades o crescente e veloz aumento de densidade populacional do bairro, associado à precariedade econômica, e diferentes estilos de vida entre vizinhos e mem- bros de grupos domésticos, dentre outros, a serem exemplificados em capí- tulos subsequentes.

Considero também, por outro lado, que esses discursos aparentemente contraditórios (de maior solidariedade e de perdas de reciprocidades, simul- taneamente) expressam o tipo de tensões que existem nas relações entre pes- soas no cotidiano e que continuamente estão negociando os indefinidos li- mites na vida social entre as esferas do público e do privado. E que dentro das casas ou com vizinhos segue estratégias diferentes no seu enfrentamento, inclusive o do ocultamento ou não reconhecimento frente aos demais.