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A casa das mulheres n’outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador

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Academic year: 2021

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9 7 8 8 5 2 3 2 1 1 2 7 1 ISBN978-85-232-1127-1

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A Casa das mulheres

n’outro terreiro

famílias matriarcais em Salvador

maria gabriela hita

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA REITORA

Dora Leal Rosa VICE-REITOR Luiz Rogério Bastos Leal

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA DIRETORA

Flávia Goulart Mota Garcia Rosa CONSELHO EDITORIAL Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Niño El-Hani Cleise Furtado Mendes

Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria Vidal de Negreiros Camargo

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A Casa das mulheres

n’outro terreiro

famílias matriarcais em Salvador

maria gabriela hita

Salvador EDUFBA 2014

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2014, Maria Gabriela Hita

Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA. Feito o Depósito Legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009

PROJETO GRÁFICO

Amanda Carrilho e Gabriela Nascimento EDITORAÇÃO E ARTE FINAL

Amanda Carrilho e Gabriela Nascimento REVISÃO E NORMALIZAÇÃO Maria das Graças Meirelles

Editora filiada à:

EDUFBA

Rua Barão de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina Salvador - Bahia CEP: 40170-115 Tel/Fax: (71) 3283-6164 www.edufba.ufba.br

edufba@ufba.br

SISTEMAS DE BIBLIOTECAS - UFBA Hita, Maria Gabriela.

A casa das mulheres n’outro terreiro : famílias matriarcais em Salvador / Maria Gabriela Hita ; prefácio, Claudia Fonseca. - Salvador : EDUFBA, 2014.

513 p.

Originalmente apresentada como tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, 2004.

ISBN 978-85-232-1127-1

1. Famílias negras - Salvador (BA). 2. Parentesco. 3. Parentesco - Aspectos sociais - Salvador (BA). 4. Etnologia. I. Fonseca, Claudia. II. Título.

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À minha mãe, Magda, e a Camila, minha filha, relações que expressam a

díade Mãe-Filhos tratada neste livro. E a meu pai Carlos (in memoriam),

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Agradecimentos

A Casa das mães n’outro terreiro: etnografia de famílias negras matriarcais

em Salvador é um estudo descritivo e longitudinal, parte de pesquisas rea-lizadas entre os anos de 1992 e 2003, em duas extensas redes de parentesco matriarcais chefiadas por duas avós. Resultados dessa pesquisa foram origi-nalmente apresentados, no formato de tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2004, orientada por Mariza Corrêa, a quem agradeço o apoio que fez a pesquisa amadurecer naquele momento. Também desejo agradecer as valiosas apreciações e estímulos recebidos de membros da banca de defesa e de outros colegas, em diferentes eventos ou situações profissionais, com quem tenho discutido, ao longo dos anos re-sultados desta pesquisa. Dentre os quais cabe mencionar Parry Scott, Maria Coletta de Oliveira e Antônio Sérgio Guimarães, na banca, Claudia Fonseca, Lívio Sansone, Elza Berquó, Aníbal Faúndes, Gabriel Cohn, Robert Slenes, Guita Grin Debert, Maria Filomena Gregori e Peter Wade.

Este livro não teria sido possível sem os diferentes apoios recebidos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) ao longo dos anos desde que se iniciou a pesquisa, no doutorado; e posterior-mente para estágios pós-doutorais, a partir dos quais tive tempo disponível para retomar e aprofundar algumas destas ideias. Agradeço ainda ao apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) sem o qual não teria logrado fazer esta obra chegar ao público com a quali-dade final alcançada.

Um emocionado e profundo agradecimentos dirijo-o aos integrantes das duas famílias sobre as quais versa este livro, pelo carinho e riqueza de infor-mações recebidas ao longo de tantos anos de contatos. E ainda pelo entu-siasmo com que abraçaram a ideia de publicar parte de suas vidas e fotos, esperando que o meu intento de devolução em forma de livro esteja à altura de tudo o que deles recebi. De modo mais especial, desejo agradecer a Mãe Dialunda, Dalva, D. Cida (in memoriam), Dina e Neneca.

Este livro é versão mais amadurecida da tese, que tanto se beneficiou e cresceu pelos ricos debates e possibilidade de testar algumas ideias com diversas turmas de alunos de graduação e pós-graduação e bolsistas na

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Universidade Federal da Bahia (UFBA), com os que discuti e refleti sobre as pesquisas presentes neste livro. Não sendo possível lembrar e nomear a todos, desejo que se sintam representados no agradecimento aos mais próximos como Murilo Souza Arruda; Orlando Almeida dos Santos; Cláudia Pons Cardoso; Sílvia Barbosa, Cremildes Alves, Suely Mêsseder, Adriana Prates, Ângelo Sampaio; Cláudio Roberto dos S. Almeida e Paula da Luz Galrão.

Aos amigos, companheiros de trajetória e demais membros do grupo de pesquisa em que atuo, o Grupo de Estudos em Ciências Sociais, Ambiente e Saúde (ECSAS), agradeço pela riqueza das discussões em fenomenologia que tive oportunidade de compartilhar durante meu trilhar nesta seleta comu-nidade que promove o livre pensar, e que tanto tem contribuído ao longo dos nossos 20 anos juntos no meu modo de refletir e produzir. Compartilhar ideias neste grupo tem sido privilégio, alegria e parte importante do meu tri-lhar: um espaço de trabalho rigoroso onde se compartilha muito mais do que risadas e bons momentos. No que concerne a esta pesquisa, parte das bases de dados utilizadas foram construídas em pesquisas conjuntas do ECSAS, em projetos dos quais participei com Miriam C. Rabelo, Paulo C. Alves e Iara Souza. Parte importante da minha reflexão neste livro é fruto daqueles anos de produção coletiva tanto na coleta quanto nas análises de muitos dos dados aqui reunidos, e que deixam marcas e rastros nesta obra.

Por fim, mas não por último, o meu agradecimento e toda admiração ao meu amigo e marido, Prof. John Gledhill, pelo papel que teve sua compe-tente e detalhada revisão da obra, com propostas de caminhos possíveis de editoração a desenvolver no intuito de clarear pontos cegos, mas cujas li-mitações e lacunas restantes são da minha única responsabilidade. Ele foi quem mais me encorajou e cobrou a publicá-lo. E seus valiosos conselhos, um dos meus principais estímulos. Também agradeço a Camila e Magda pelo lugar ocupado na minha vida e durante o processo desta produção, operando como um contraponto oculto relevante em algumas de minhas reflexões.

Por fim, desejo agradecer a cuidadosa revisão do texto realizada por Maria das Graças Meirelles e à EDUFBA, no nome de sua diretora, Flávia Goulart Garcia Rosa, pela produção do livro. A Emilly Mascarenhas e Umerú Bahia pelas fotos atualizadas das Famílias que integram este estudo.

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Prefácio

Não há dúvida quanto à atualidade do tema “mulheres chefes-de-família”, fenômeno que, segundo os dados do IBGE, aumentou ao longo da década de 1990 para, em 2000, alcançar entre um quarto e um terço dos domicílios brasileiros. Neste livro, a partir de pesquisa no bairro de Nordeste Amaralina (Salvador, Bahia), Maria Gabriela Hita propõe detalhar a existência de uma das múltiplas formas dessa categoria: a da família chefiada por mulheres ido-sas que demonstram surpreendente talento (apoiado em uma “força simbóli-ca circulante”) para cuidar e coordenar o cotidiano dos inúmeros parentes e agregados que passam por suas vidas.

A autora realiza seu propósito narrando a saga de duas senhoras afrodes-cendentes – Mãe Dialunda (vendedora de acarajé no largo da comunidade e líder de um terreiro de Candomblé) e Dona Cida (parteira tradicional e fre-quentadora – entre outras – de igreja evangélica). Tece a história dessas duas “casas” como se estivesse apresentando personagens em um drama de teatro, relatando os eventos em uma série de “atos”. Dessa maneira, convida-nos a adentrar as agruras e alegrias que acompanham a lenta ascensão socioeconô-mica dessas famílias que passam por obstáculos de viuvez, desemprego, vio-lência doméstica e – no caso das gerações mais jovens – as tentações do tráfico de drogas. No confronto a esses desafios, emerge uma vasta rede de solida-riedade – rede essa que passa a existir graças à capacidade das mulheres em animá-la. É através do trabalho destas mulheres que se constituem os valores básicos que guiam as manifestações de reciprocidade: os de “casa”, “consan-guinidade” e “consideração”. Atentando para as sucessivas gerações do ciclo doméstico e as modificações na própria arquitetura da casa, Hita nos leva a ver a diversificação dessas redes no tempo e a recomposição delas no espaço.

As descrições das personagens são formuladas ao longo do livro em diá-logo com outros antropódiá-logos que observaram formas semelhantes de or-ganização familiar entre grupos populares brasileiros – desde autores clás-sicos tais como Ruth Landes e Klaas Woortman até os mais recentes tais como Cynthia Sarti e Louis Marcelin. Ao mesmo tempo, a autora se investe contra teses evolucionistas ultrapassadas que, durante as últimas décadas do século XX, viam o “matriarcado” de famílias pobres como fonte de patologia

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social. Esforçando-se para ressaltar a especificidade histórica de certo pa-drão familiar sem incorrer em conotações negativas, desenvolve a noção de “matriarcalidade” com ênfase na centralidade da figura feminina idosa para a organização doméstica e para os cálculos de pertencimento, herança e des-cendência do grupo familiar.

Em suma, nessas páginas, o leitor encontrará uma densa etnografia da vida dos grupos populares do Nordeste brasileiro durante os anos 90. Hita, através de minuciosa descrição de sucessivas gerações das duas famílias, sus-cita um debate acadêmico sobre parentesco, gênero e territorialidade e, ao mesmo tempo, provoca reflexões sobre políticas públicas no bojo de matrizes coloniais e pós-coloniais. Sua convivência com os moradores de Amaralina lhe permite um estudo de caso longitudinal que fala não só das duras condi-ções estruturais enfrentadas por seus interlocutores – altos e baixos no mer-cado de emprego, discriminação racial, habitação precária –, mas também da intensidade de experiência – amor, raiva, luta, esperança – e a criatividade das estratégias forjadas para enfrentá-las. Desses ricos detalhes da vida co-tidiana, emergem os argumentos mais convincentes da autora, e sua con-tribuição mais duradoura para a reflexão antropológica sobre as múltiplas formas familiares no mundo contemporâneo.

Claudia Fonseca

Professora de Antropologia Social Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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Sumário

t

17 Introdução

Casa matriarcal, arranjo familiar extenso chefiado por mulher idosa

35 Capítulo I

Parentesco e Casa em Família(s) Negra(s) Afro-Americanas

Conceito de Casa e Família 39

Família(s), Representações e Práticas 44

Papel sexual e geracional no modelo nuclear hierárquico de classe trabalhadora 51

Consanguinidade, afinidade, consideração e corresidência 56

Matriarcado, matrifocalidade ou matriarcalidade? 60 77 Capitulo II

Organização doméstica em contexto de pobreza urbana: o Nordeste de Amaralina na cidade de Salvador-Bahia

Breve histórico da ocupação urbana em Salvador 81

Perfil socioespacial do Nordeste de Amaralina 85

Tipos de organização doméstica encontrados no Nordeste de Amaralina 93

O modo extenso de organização familiar 100

Famílias chefiadas por mulheres 102 115 Capítulo III

Identidades, Violência e Vida Cotidiana no Nordeste de Amaralina

Identidades, Diferenças e Sociabilidade no Nordeste de Amaralina 118

A Violência no Nordeste de Amaralina 127

Violência policial e do tráfico de drogas 127

Violência na vizinhança 134

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149 Capítulo IV

Mãe-vó-bisa na casa de Mãe Dialunda: chefia feminina em arranjo matriarcal extenso

Apresentação do cenário 153

Atos e principais personagens desta saga familiar 163

Primeiro ato: Vida de Mãe Dialunda no passado 163

Primeira personagem central: Mãe Dialunda 169

a) Antes do Candomblé 172

b) A Vida de Santo como modelo cultural de sua matriarcalidade 178

Segundo ato: vida de Mãe Dialunda e Dalva - passado recente 194

Segunda personagem central: Dalva 199

Terceiro ato: desfecho familiar no presente 217 223 Capítulo V

“Só eu que sou avó, mãe e pai” um outro modo de ser matriarca na casa de D. Cida parteira

Apresentação do cenário 230

Atos e principais personagens desta saga familiar 242

Primeira personagem central: Dona Cida 242

Primeiro ato: Neneca e Dina no passado 260

Segunda personagem central: Neneca 270

Segundo ato: Neneca e Dina em passado recente 285

A circulação de bens 294

Terceira personagem central: Dina 305

Terceiro ato: os netos de D. Cida: nova fase do conflito 329 345 Capítulo VI

A casa na reprodução da vida e do espaço: lugar e ethos de famílias matriarcais extensas

Descrição espacial de uma casa em meio popular na Bahia 351

Casa de Mãe Dialunda 365

Breve história da casa com suas principais transformações espaciais 365

Circulação de pessoas no uso da casa: idas e vindas de moradores 374

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Novas casas no tempo: estabelecidos e excluídos 379

Negociação Branca (B) – Etan (E) 395

Casa de Dona Cida Parteira 401

Breve história e descrição da planta original da casa 401

Circulação de pessoas no uso da casa: idas e vindas de moradores 408

Principais transformações espaciais e surgimento de novas casas 413 455 Conclusão

Lugar de homens e mulheres em famílias matriarcais

471 Referências 485 Apêndices

Apêndice A: Genograma Familiar Casa de Mãe Dialunda 487

Apêndice B: Moradores da Casa de Mãe Dialunda em 1997 488

Apêndice C: Genograma Familiar da Casa de D. Cida 489

Apêndice D: Genograma do Sub-grupo familiar de Carlão – Filho de Dialunda 490

Apêndice E: Genograma filhos de primeiras uniões de Mãe Dialunda 491

Apêndice F: Cronologias resumidas da Casa de Mãe Dialunda 493

Apêndice G: Cronologias resumidas da Casa de D. Cida 497 499 Anexos

Anexo A: Mapa da localização do Nordeste de Amaralina 501

Anexo B: Mãe Dialunda e Dalva trabalhando 502

Anexo C: Família de Mãe Dialunda 504

Anexo D: Família de D. Cida 506

Anexo E: Salas da casa de Dina 508

Anexo F: Família de Dialunda em 2013 510

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Introdução

casa maTrIarcal: arraNJO FamIlIar

eXTeNsO cheFIadO POr mulher IdOsa

p

Na América Latina, a significativa presença de lares extensos e pobres tem sido correlacionados à falta de políticas habitacionais adequadas e ao im-pacto do acelerado e desordenado crescimento das cidades. Tais processos – resultantes de ocupação e apropriação de terrenos vazios por amplos con-tingentes de migrantes rurais ou sem teto – são identificados no Brasil pelo nome de invasões ou favelas; os agentes desses processos têm colonizado as cidades usando práticas de auto construção de moradias. Incipientes progra-mas habitacionais com apoios do banco mundial foram iniciados no Brasil na década de 1990 e, desde então, foram ampliados processos de requalifica-ção e urbanizarequalifica-ção de favelas. Foi justamente entre 1992 e 2003 que analisei o modo de reprodução de um tipo de organização doméstica extensa matri-focal na cidade de Salvador: o matriarcal. Esse foi um estudo de tipo longi-tudinal realizado no Nordeste de Amaralina, resultante de várias pesquisas, especialmente o da minha tese de doutorado sobre famílias matriarcais.

Entendo esse tipo de organização doméstica como resultante tanto da au-sência de políticas habitacionais adequadas até um passado recente, como também, no contexto estudado, expressão de uma matriz cultural negra que se desenvolveu em Salvador e Recôncavo Baiano desde a época colo-nial. Entretanto, o modelo é recorrente em todo Nordeste brasileiro e muito se aproxima de experiências similares no Caribe e América do Norte, locais que também receberam contingentes expressivos de população negra escra-vizada proveniente do continente africano.

A escravidão no Brasil – e seu prolongamento até finais do século XIX (1888) – teve um efeito profundo em todas as relações sociais do país, dei-xando como legado uma tradição e cultura negra, assim como uma perversa correlação entre racismo e pobreza. A discriminação racial se manifesta de

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diversos modos, mas o reconhecimento da herança cultural africana se inicia ao redor dos anos trinta e quarenta do século XX, era do Estado Novo de Getúlio Vargas e da hegemonia de teorias sobre democracia racial brasileira, quando, então, ocorre importante virada no pensamento científico racialista dominante do século XIX. Nesse momento, a presença do elemento negro na conformação da identidade nacional começou a ser valorizada e reconhe-cida. (Freyre, 1992 [1933])

As identidades raciais são vistas hoje de um modo bastante similar ao das étnicas: como construções sociais, contextuais, situacionais e multívocas. Alguns antropólogos optam pelo uso do conceito de etnicidade, já que o de raça tem um peso histórico e moral de discriminação do qual desejaram se distanciar. Outros sociólogos, como Antônio Sérgio Guimarães (2003), res-gatam o conceito de raça como categoria analítica e classificatória impor-tante que o senso comum continua usando. Para Peter Wade (1997) a “raça” está associada em maior medida ao sangue, enquanto a etnicidade se vincula a um origem cultural geográfico, onde a cultura de um lugar é incorporada pelas pessoas. Esses dois conceitos, apesar de serem diferentes, confluem entre si. A partir destas colocações, considero ser a Bahia um estado Negro, associado à grande presença de afrodescendentes na sua composição popu-lacional, por um lado, como à representatividade que uma matriz cultural associada a populações negras tem na formação da identidade local e na-cional. A noção de negritude tem sido muito utilizada no Brasil das últimas décadas, e tem sido influenciada por posturas multiculturalistas antiracia-listas e de reafricanização que lutam por maior reconhecimento. (SANTOS, 2005; PARES, 2012) Por sua vez, o ser negro, ou se reconhecer como parte da cultura negra, como colocado por Lívio Sansone (2004), antes do que nos re-meter à cor da pele, sugere uma pertença, política e afirmativa, a um grupo racializado que se encontra em processo de emancipação.

Ao privilegiar na minha análise a emergência destes processos e movi-mentos de reconhecimento, não nego a importância que a reprodução de variados modos de discriminação racial (direta e institucionalizada) exercem na realidade estudada, incluso dentro das relações familiares e de gênero ob-servadas. São abundantes os estudos no Brasil que analisam a inegável cor-relação entre pobreza e negritude no país, entre outros, Hasenbalg (1998) e Maggie, (1998), pois a integração do negro na sociedade brasileira tem sido sempre perversa e assimétrica: os afrodescendentes ocupam os piores lugares

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na estrutura social, com mais baixos salários, piores índices de educação, ocupações menos reconhecidas, com menor acesso aos serviços de Saúde, etc. Por outro lado, e apesar da crescente importância que se tem dado à cul-tura negra na formação de uma nação distinta, em si mesma e por meio da mestiçagem biológica e cultural, pouco se tem escrito no Brasil sobre o tema da família negra até o momento, especialmente antes de 1970, quando um novo olhar sobre a história destaca o papel do negro como agente criativo e sujeito da história.

Estudos sobre forma de habitar casas e sobre a importância do passado escravo no Brasil contemporâneo explicam algumas das principais caracte-rísticas dessa matriz cultural da pobreza brasileira em regiões de Recôncavo Baiano, onde a cultura afro-brasileira é hegemônica e marcante. (AGIER, 1990; FREYRE, 1992; HARDING, 2000; LANDES, 1967; LIMA, 2003; MARCELIN, 1996; WOORTMANN, 1987; 1990). Neste contexto, lares matriarcais (e/ou ma-trifocais) são comuns e mais reconhecidos em suas respectivas comunidades do que se costuma supor e não discriminados ou de menor valor social do que outros considerados hegemônicos, adquirindo visível legitimidade e convi-vendo como mais um modo de organização familiar ao lado de outros modos de organização doméstica com os que também socializam e convivem, sem sofrerem preconceitos dos vizinhos. A partir da observação das formas de ha-bitar em meio popular é possível afirmar que os indivíduos vivendo em condi-ções de pobreza não se distribuem nestas estruturas com a mesma constância no decorrer da vida. A circulação de pessoas entre distintas casas de uma rede de parentesco é intensa e marcada principalmente no período da infância por práticas como a da circulação de crianças, quer sejam filhos biológicos ou não.

A circulação de crianças difere da prática da de criar o filho de outrem, embora ambas possam acontecer simultaneamente em um mesmo lar e pe-ríodo, conforme exemplos analisados neste livro. A circulação da criança (associada à elevada mobilidade de pessoas entre diferentes casas) não re-nega a paternidade biológica e, em geral, ocorre entre consanguíneos. Neste caso, a criança tende a manter a identidade dos pais biológicos, e aquela dos que a recebem pode ser adicionada à anterior. Desta perspectiva é possível considerar que uma criança pode ter mais de uma mãe ou responsável(is) por sua criação; indicando que a relação entre a mãe adotiva e genética não é, necessariamente, excludente. Por sua vez, a prática da criação de filhos alheios costuma ocorrer nos casos daquelas crianças sem laços de

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paren-tesco, a priori, ou os que não são reconhecidas como descendentes consan-guíneos do lar que os recebe: estas crianças tendem a ser incorporadas ao novo lar como um tipo de adoção. Como bem o apontam estudos de Claudia Fonseca sobre estas duas práticas – ao contrário do que se pensa em errônea representação ocidentalizada sobre maternidade – a circulação e criação de crianças ocorrem muitas vezes porque elas são desejadas e queridas e repre-sentam um valor para estas famílias. (FONSECA, 1995, 2000)

Nestas modalidades, Fonseca distingue dois tipos de situação nas quais os indivíduos são integrados nestes lares: a primeira considera a criança como dádiva, desejada e até disputada com respectivos pais biológicos ou outros membros da parentela ou rede; na segunda é vista como fardo, recebida pelas circunstâncias, sendo identificada com discriminação e mais associadas a fonte de problemas. Estas situações poderão permanecer ou variar ao longo de trajetórias e experiências dos sujeitos e curso de vida destes lares que não são constantes ou fixos. Tais processos indicam dinamicidade e mobilidade das posições que diferentes indivíduos ocupam e podem ocupar na rede de relações das casas onde foram inseridos ou pelas quais circularam.

Devido à elevada mobilidade, ilustrada nos capítulos etnográficos adiante, uma característica marcante da forma de residir em setores populares é a difi-culdade em circunscrever certos agentes familiares em uma unidade domés-tica específica, já que alguns deles circulam entre várias outras unidades de uma mesma rede de parentesco, vizinhança ou configuração de casas. Por este motivo, a casa precisa ser pensada e analisada a partir das inter-relações que as pessoas estabelecem entre si e com outras casas que também participam de sua construção e rede de parentesco, tal como sugerido nos estudos de Marcelin (1996). Os elementos que expressam a mobilidade das pessoas nas casas, asso-ciados também ao exercício de práticas de consideração, discutidas adiante, são elementos centrais e constitutivos do que denomino por matriarcalidade.

A noção de matriarcalidade – diferenciada a seguir da de matrifocalidade e matriarcado negro – refere-se a um conjunto de relações domésticas e de parentesco centralizado na figura de uma mãe-avó (matriarca), centro das in-terações da rede consanguínea, e lócus de descendência e herança da família. Esta figura feminina idosa, ou de mulher madura, é a da chefe da casa e da família, aquela que exerce poder sobre a casa e sua parentela e que é impor-tante foco-difusor a partir do qual se multiplicam relações entre todos os de-mais membros da rede, extrapolando, por vezes, os limites físicos dessa casa

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enquanto local específico de residência (uma só casa), podendo operar na conjunção e coparticipação de várias casas em uma mesma rede de paren-tesco. Neste tipo de configuração familiar e de organização doméstica, o papel das mulheres é imprescindível para a sobrevivência grupal. Diferencia-se do modo de ser e estar no mundo1 de outras disposições e papéis desempenhados

por mulheres em modelos patriarcais tradicionais ou nucleares de tipo mais igualitários. Ser proprietária da casa é outro requisito indispensável para o de-sempenho do que denomino matriarcalidade, pois é principalmente através desse recurso que elas a exercem e manifestam poder.

Pensar na matriarcalidade como forma de chefia feminina particular, sus-tentada pelas posses da casa, recursos e Força Simbólica Circulante (FSC) aponta para a diferença e menor vulnerabilidade deste tipo de arranjo quando comparado a lares chefiados por mulheres que se viram simplesmente aban-donadas pelos companheiros (ou que nunca os tiveram) e parecem dispor de menos recursos para enfrentar adversidades da condição de chefia, em si-tuação de maior desamparo. A chefia matriarcal, ao contrário, tem o poder de criar os próprios filhos e os de outras mulheres, o que lhe outorga prestígio e maior força, elevando o papel de mãe ao de mãe-de-todos, com um paralelo si-milar ao de família de santo, no Candomblé. A família de santo (ou dos orixás) refere a um modo de organização religiosa altamente hierarquizado nesta re-ligião afro-brasileira (LIMA, 2003). Como nos estudos de Landes (1967), Lima (2003), Woortmann (1987) e Marcelin (1996), parto do suposto da existência de forte correlação entre a matriz cultural afro-americana pós-colonial2 descrita

em pesquisas de religião e estudiosos do Candomblé, com uma série de va-lores, crenças, sentimentos e princípios organizacionais também encontrados no estudo destas Casas extensas matriarcais.

Os estudos de terreiros de Candomblé liderados por mães de santo revelam que nestes locais é onde melhor se evidencia a presença do que denomino princípio relacional de matrifocalidade, baseado na força e centralidade dessas sacerdotisas e matriarcas que são mães-de-todos. Toda mãe de santo, afirma Silverstein (1979), é representante e símbolo da religião na Bahia e da figura materna, que é a Mãe Preta, considerada a mãe-de-todo-mundo, a principal

1 Conceito da fenomenologia, ver ao respeito Merleau Ponty (1994).

2 Sobre os efeitos desta matriz cultural negra americana pós-colonial na formação de famílias

ex-tensas e matrifocais no Caribe e Estados Unidos, ver também Smith (1956; 1973; 1996); Clarke, (1972); Stack, (1974); Gonzalez, (1979).

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responsável pela produção e reprodução do seu terreiro – casa de Candomblé. Assim como na estrutura hierárquica dos terreiros de Candomblé, no mundo do parentesco consanguíneo, os membros destas Casas ocupam posições de-terminadas. Na Bahia, ser mãe de santo significa ser uma mulher escolhida pelos Orixás (deuses), permitindo-lhes, pois, se erguerem como autoridade máxima em seu terreiro (ou o pai de santo nos terreiros liderados por homens). Ela é uma herdeira inata dessa posição porque desenvolveu certas caracterís-ticas de personalidade – carisma, determinação, inteligência aguda, autori-dade, sensibiliautori-dade, capacidade de mando – para dirigir o terreiro e manter relações com os Orixás.

Este livro se inspira em reflexões de estudos sobre matrifocalidade na Bahia inaugurados por Ruth Landes, em pesquisa dos anos 40, expresso na conhecida obra: A cidade das Mulheres. Alguns pressupostos de Landes foram retomados quarenta e sete anos depois na obra de Klass Woortmann, também em Salvador, na região do antigo Alagados: A Família das mulheres. Dois clássicos dos estudos sobre matrifocalidade na Bahia que são fundantes na argumentação desenvolvida aqui e, desde logo, aludido no título: A Casa

das mulheres n’outro terreiro. O termo Casa é sinônimo do que entendo por

fa-mília. Por isto A Casa (família) das mulheres n’outro terreiro, é uma recriação e alusão ao objeto de estudo das obras citadas, fazendo nesse título uma dupla alusão: à noção de terreiros de Candomblé e também ao do parentesco con-sanguíneo. Ao mencionar que estas Casas ocorrem n’outro terreiro, remeto o leitor ao objeto de estudo tratado nesta pesquisa: o de um outro domínio de parentesco, o doméstico; o do parentesco e domínio da consanguinidade que não alude, necessariamente, ao parentesco religioso ou espiritual alu-dido na noção de terreiro de Candomblé, isto é, aquele que corresponderia a uma família de santo.

Com isto procuro conectar o modo de vida e organização doméstico de grupos matriarcais estudados ao campo simbólico e valores mais amplos de uma matriz cultural afro-americana fortemente compartilhada neste con-texto. Das duas casas analisadas, uma delas era chefiada por uma mãe de santo. Mas não é preciso ser do Candomblé para compartilhar este modo de ser e viver, como demonstrarei no curso do livro. Cabe esclarecer que não era ob-jeto desta pesquisa tratar questões mais específicas sobre o Candomblé, usei estudos sobre o tema para sustentar que este modo de organização doméstica não pode ser compreendido, neste contexto de estudo, sem uma referência

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ao campo simbólico e de pertença histórico-racial que o constitui. Desta ma-neira, compreendo que o Candomblé espraia a configuração de um modo de viver e habitar de afrodescendentes pobres que foram sendo forjados e cons-truídos em complexos processos de sincretismos e recriação de mitos e tradi-ções ao longo dos séculos. Processos que deixaram marcas e experiências dife-renciadas ao de outros grupos populacionais manifestos em distintos modos de ser e viver, em outros contextos, no caso específico, na cidade de Salvador, capital da Bahia. Por isto, cabe assinalar, que a matriarcalidade não ocorre ex-clusivamente em grupos ou pessoas atreladas ao culto do Candomblé, mas que os princípios de organização de casas de santo são uma expressão dessa ma-triz cultural de destacado valor simbólico, sem os quais não se consegue com-preender satisfatoriamente a matriz na qual se insere o modo de organização doméstico matriarcal analisado.

A Casa das mulheres n’outro terreiro é um estudo etnográfico longitudinal

– realizado entre os anos de 1992 e 2003 – em duas extensas redes de paren-tesco matriarcal chefiadas por duas avós, vivendo em contexto de pobreza urbana. Esta etnografia familiar foi desenvolvida pela interpretação herme-nêutica das múltiplas narrativas elaboradas pelos distintos membros de duas redes matriarcais, pela justaposição de trechos de entrevistas coletadas, de observações das relações intra-grupais e das transformações impressas no próprio espaço das respectivas casas. Casa, como em Levi-Strauss (1991),3 é

entendida aqui como espaço físico e geográfico (casa), mas também como categoria social, isto é, como identidade grupal (Casa), pois a casa (e/ou Casa) é o lugar por excelência onde se constroem e posicionam os distintos corpos que a ocupam e fundam. Com e através da Casa os indivíduos constroem representações de si e do mundo, mediante a relação que estabelecem com outros, dentro e fora dela. Neste livro, sugiro abordar casa (espaço físico) e

Casa (grupo doméstico) não como realidades distintas mesmo que

inter-re-lacionadas – uma, matéria inerte, a outra, os significados sobrepostos a ela pelas pessoas, suas relações e/ou práticas – mas como uma só e mesma coisa expressas na noção de Casa (Família e domicílio). Ainda que para efeitos ana-líticos, as definições são distinguidas para explicitar quando se trata apenas

3 O uso do termo casa (em minúsculas) refere ao espaço físico do domicilio, o termo Casa (em

maiúsculas e itálico) abarca ambos os sentidos, tanto o de casa em sentido físico-domicílio, como o de sinônimo da ideia de família ou identidade grupal. Para fins mais analíticos em geral estarei usando este segundo termo com um substituto da ideia de “Família”.

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do lar como espaço físico geográfico/ edificação (casa) daquele mais amplo que engloba o primeiro e nos remete à ideia de Família associada a um domi-cílio ou Rede de parentesco (Casa).

Uma Casa matriarcal pode funcionar em um único domicílio (casa) ou em vários distintos (configuração de casas). E uma mesma casa (domicílio) pode agrupar mais de um subgrupo familiar distribuído em distintos espaços da casa, mas em relações de dependência com o núcleo matriarcal. A noção de

Casa adotada se aproxima muito da noção de rede de parentesco, à qual por

vezes, também se sobrepõe.

Neste estudo do modo de organização familiar e doméstico do tipo de do-micílio extenso e matriarcal me interessou especialmente compreender a mo-dalidade da chefia feminina aí presente. Tal propósito o direcionei a reatua-lizar o conceito de matriarcado negro através da ideia de matriarcalidade, que entendo como uma das formas adotadas pela matrifocalidade. A nova ideia de matriarcalidade que proponho se refere a um conjunto de relações domésticas e de parentesco centralizadas na figura de uma mãe-avó (matriarca), o centro das interações da sua rede consanguínea, e lócus de descendência e herança da família. Ela é quem exerce o poder sobre a casa e sua parentela, e é um im-portante foco-difusor a partir do qual se multiplicam relações entre demais membros da rede, extrapolando, por vezes, os limites físicos da casa enquanto local específico de residência (uma só casa). Neste tipo de configuração fami-liar, o papel destas mulheres é imprescindível para a sobrevivência grupal, e a centralidade do seu papel diferencia este modo de ser e estar no mundo do daquelas outras disposições e papéis desempenhados por mulheres em mo-delos patriarcais tradicionais ou nucleares de tipo mais igualitários. No corpo deste livro, realizo dois tipos de análise etnográfica, o das famílias e suas his-tórias, e o do próprio espaço ocupado por distintos grupos familiares ao longo dos anos. Através deles, demonstro a interconexão profunda entre essas duas esferas que se definem atravessando-se mutuamente, de modo indissociável. Para autores como Woortmann (1987) e Marcelin (1996), e entre grupos populares como o estudado, o parentesco entre dois indivíduos passa, prin-cipalmente, pelas mulheres, pelo ventre materno. O cordão umbilical é para estes grupos símbolo que une os iguais e constrói o outro como irmão, através da mãe. É por intermédio da mãe, afirma Marcelin, que o parentesco entra no mundo e configura o novo indivíduo. A mãe é nesta matriz cultural uma junção entre a casa e as redes de parentesco que ao redor dela vão se

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construindo. No arranjo estudado, a mãe é vista como aquela que ocupa esse lugar privilegiado, e a principal pessoa através da qual se ingressa a um grupo de parentesco. A mãe é para o indivíduo, diz Marcelin (1996), o que a casa é

para a família. Assim, o que caracteriza o arranjo matriarcal é essa força

cen-trípeta assentada na centralidade do lugar ocupado pela Mãe. A essência da Matriarcalidade é definida nesta pesquisa, basicamente, pela centralidade da relação Mãe-filhos. Reconhecer a centralidade da mãe e das redes de paren-tesco produzidas através dela não significa, entretanto, afirmar que nas fa-mílias como as estudadas exista ausência de homens e abundância de mães. Os homens existem e ocupam posição privilegiada neste modelo: a de filhos, como parte desse outro lado que explica o outro elemento da díade. Esta dis-cussão será retomada adiante nos exemplos empíricos dos capítulos etno-gráficos das duas redes de parentesco e na conclusão do livro.

Nestes termos, a análise deste estudo se concentrou especialmente em compreender e descrever as relações dessa díade; suas respectivas varia-ções de gênero e geracionais, em que o foco central da análise recaiu sobre o papel de mães e avós e nas relações destas com filhos, netos e bisnetos. Para isso, foi preciso observar como estas relações se traduziram na circulação constante de pessoas pelas distintas casas das redes de parentesco e como os distintos movimentos estruturais e físicos das próprias casas imprimiram e marcaram a presença do princípio que atua sobre a vida dos membros destas casas. Esse principio, que o denomino princípio relacional de matrifocali-dade é fundamental na constituição da identimatrifocali-dade e no curso de vida de cada uma das duas redes de parentesco descritas neste livro. Noções como ma-triarcalidade, matrifocalidade ou princípios organizacionais da matrifoca-lidade irão se aclarando à medida que a etnografia de ambas as Casas são ilustradas através de análises de experiências e exemplos concretos. O modo de organização familiar matriarcal é apenas um dentre outros dos arranjos empíricos que se encontraram na realidade estudada. Ele é o locus por ex-celência onde se atualiza, ou melhor, se visualiza a presença e atuação do princípio relacional da matrifocalidade, o qual é compreendido, a partir de Woortmann (1987), como um princípio ideológico mais amplo e que poderá estar subjacente – ou não – a um conjunto variado de arranjos familiares, entre os quais, conforme aqui destacado, os matriarcais.

A definição de matrifocalidade adotada remete à ideia de um sistema onde as mulheres, e mães em particular, são os pontos focais do sistema de

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paren-tesco. Portanto, considero a matrifocalidade como princípio de organização de relações de parentesco amplamente compartilhado e interiorizado no ima-ginário popular baiano e de outras regiões do país e do mundo, mas um que não é exclusivo unicamente de arranjos matriarcais. Busco explicar e ilustrar a especificidade de significados e modo de operar deste sistema em um con-texto e matriz cultural de grupos de afrodescendentes, em um país marcado por longa tradição escravocrata. Se há elementos similares aos modos de or-ganização doméstica de muitos outros grupos em diversos contextos cul-turais, há também diferenças e características que lhe são próprias, as quais podem ser compreendidas dentro dos significados e valores da matriz cul-tural da qual fazem parte. Nesta direção, é preciso usar com maior rigor este conjunto de conceitos, sempre precisando e identificando os elementos con-textuais que lhes imprimem diferentes sentido em contextos específicos.

Para identificar e explicar as principais características do princípio rela-cional da matrifocalidade, entender como opera, que tipo de pessoas produz e como se reproduz no cotidiano dos membros das redes domésticas na qual está inserido, escolhi dois grupos (redes) de parentesco extenso matriarcal para estudá-los em profundidade. Estas famílias são tomadas como exem-plares para a análise da matriarcalidade, e que, por suas características e pre-sença explícita da figura matriarcal, eram idôneas para compreender como opera o princípio relacional da matrifocalidade. Como já dito, identifico por princípio relacional de matrifocalidade o conjunto de valores, representa-ções simbólicas (ou ideologia subjacente) de arranjos e práticas familiares que existem no contexto de estudo, princípios que podem também estar pre-sentes em arranjos familiares não matriarcais da sociedade baiana. Não ter como mensurar a representatividade estatística deste princípio não signi-fica desconhecer sua importância, nem assumir que seja impossível tentar explorar como opera; apesar de se tratar de um conceito difuso e de difícil operacionalização. Assim, busquei esclarecer como ele opera nas redes estu-dadas: esse foi um dos principais desafios e objetivos deste estudo.

Além da centralidade da díade Mãe-filhos, três outros elementos são fun-damentais para entender os arranjos familiares matriarcais: a primazia do princípio da consanguinidade sobre o da afinidade; segundo, associado ao anterior, a elevada instabilidade conjugal de relações de afinidade; terceiro, como já mencionado, a centralidade do papel da figura feminina desempe-nhada pela mãe-avó (matriarca) nesta configuração. A força e autonomia das

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mulheres, por um lado e a instabilidade conjugal ou procriação (de filhos) de distintos parceiros(as) por outro são características marcantes na história dos membros de ambas as redes matriarcais estudadas. A relação monogâmica, como observado, tende a ocorrer de maneira temporária e circunstancial. Homens abandonam companheiras e filhos, mulheres expulsam parceiros de suas casas, mas os filhos, mesmo quando deixam a casa materna, sempre voltam a ela, seja em fases mais críticas de suas vidas ou não. Adultos ou ca-sados estarão sempre perto de sua rede de parentesco, pela dívida eterna que os une às mães ou famílias de origem. Assim, a família se origina e pareceria permanecer bastante estável ao longo do tempo, neste tipo de arranjo, pelos dois elementos constitutivos e o desenvolvimento da relação desses dois ele-mentos da díade Mãe-filhos: a Mãe, por um lado, e os/as filhos/as pelo outro. Nestas Casas (no sentido de família), o pai pode ou não participar, pois a pa-ternidade, fundamental para a procriação e modo igualmente privilegiado de entrar no parentesco, não tem lugar tão ativo, nesta díade.

Entretanto, a possibilidade de uma mulher vir a se tornar matriarca em seu grupo de parentesco dependerá da força e importância simbólica que sua Casa (sinônimo de grupo familiar e domicílio) logre conquistar entre a parentela e comunidade. Além disso, depende também dos bens materiais e simbólicos que ela (mais que outros membros da sua rede) conseguir acu-mular em sua trajetória de vida. Isto está diretamente relacionado com a au-tonomia e força que estas mulheres desenvolvem na lida com adversidades da vida. Tais características são resultantes do temperamento e da precoce exposição e disposição para o trabalho que pode destacá-las em relação a ou-tras mulheres da mesma rede de parentesco ou contexto.

A força que estas matriarcas têm sobre filhos, netos e outros membros de seus domicílios depende também do poder simbólico da Casa e da autori-dade que exercem sobre os outros. A esta força (um tipo de axé) da matriarca denominei Força Simbólica Circulante (FSC), como metáfora analítica da ideia de mãe-de-todos baseado em ideias afro-brasileiras, aludindo à noção de hau, de Mauss (1988). Por isso, para analisar o princípio de matrifocali-dade, parti do suposto que seria necessário estudar a trajetória de Casas ma-triarcais, pois sustentam a matriarcalidade no contexto de pobreza urbana

observado. As Casas matriarcais descritas neste livro se caracterizaram por serem as de domicílios extensos chefiados por mulheres maduras.

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Vejo estas Casas como produto de certas trajetórias de vida e experiências específicas (não como característica a priori, étnica ou de classe deste tipo de lares). Apenas quando compreendida em sua complexidade e dinamici-dade, expressam a alteridade e reconhecimento deste tipo de composição familiar em contextos de pobreza, quando comparado a outros modelos e àquele considerado padrão (o nuclear ocidental ou elementar). Mas, acima de tudo, os lares matriarcais, entendo-os como produto do contexto histó-rico regional pós-escravidão que caracteriza esta área do Nordeste brasileiro. Nestes lares se desenvolvem práticas coloniais e pós-coloniais de parentesco, onde a presença das redes de parentesco e centralidade da díade Mãe-filhos tem sido constante. Muitas mulheres se ergueram como pilar de seus grupos familiares, apoiadas pelas redes de parentesco, enfrentando adversidades, ao longo da vida, o que pode ser melhor visualizado em fatos como: a impor-tância dos recursos conquistados (salários, pensões, posse de uma ou mais casas para herdeiros), a possibilidade de criar filhos próprios e de outras mu-lheres (criação de filhos e circulação de crianças) e que, em contexto de po-breza, tenderam a se converter em uma configuração de arranjo familiar extenso chefiado por avós. Para uma mulher tornar-se matriarca neste con-texto, é necessário: 1) ser a chefe da família; 2) ter propriedade da casa (enten-dida como bem material ou o domicílio); 3) recursos materiais para prover ampla rede de parentesco; e 4) força, autonomia e determinação que se elu-cida e aparece como elemento chave nas respectivas trajetórias.

Nas duas Casas extensas chefiadas por mães-avós analisadas em Hita (2004),4 as matriarcas tiveram relação precoce com o mundo do trabalho e

passaram por transformações profissionais marcantes em um momento de suas vidas; ambas desenvolvendo atividades profissionais consideradas mais prestigiosas no contexto de sua comunidade quando comparado ao de ou-tras mulheres: uma como mãe de santo e baiana de acarajé, a outra como parteira empírica associada a rede de hospitais da cidade.

Prestígio, poder e posses alcançadas por estas mulheres não as excluem de serem classificadas como pertencentes aos estratos mais baixos e carentes da sociedade baiana. Muito pelo contrário, suas trajetórias e o modo de vida dos distintos membros do seu grupo doméstico são forte indicativo das graves restrições econômicas e sociais por elas sofridas na infância e principalmente

4 Algumas das ideias desta obra já foram publicadas em artigos ou apresentadas em diversos

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na velhice, quando foi realizado o estudo. Elas pertencem ao conjunto de fa-mílias nordestinas de baixa renda que se encontram em condições de exis-tência bem abaixo das faixas normais de pobreza. Mas, no contexto de estudo, distam de ser os lares mais fracos e vulneráveis. Pois é também o prestígio que alcançam dentro da comunidade e a condição de certa autonomia econômica por elas conquistada o que lhes concede posição de destaque entre os seus e a vizinhança. Esta posição é o que denomino neste estudo por Força Simbólica Circulante (FSC).

As duas matriarcas estudadas são as principais depositárias dessa FSC que pode ser traduzida em vários elementos como o bem e posse da casa, o nome da casa ou grupo familiar, o prestígio e status como membros desta estirpe, etc. Mas esta FSC é uma riqueza, individual e coletiva da qual todo seu grupo de parentesco se beneficia, mesmo quando pode estar concen-trada nas mãos destas matriarcas, quando vivas, e seja em boa medida con-trolada e distribuída por elas, dado terem sido elas, por meio de esforço in-dividual e trabalho, nas suas bem-sucedidas trajetórias de vida (apoiadas por alguns de seus respectivos maridos ou companheiros) as principais criadoras desse bem. A FSC é, portanto, um bem coletivo e um legado que sua descen-dência se ocupará em reproduzir e manter (e como o dom em Mauss, algo que também circula, o axé da Casa). A FSC de um grupo doméstico ou de parentesco é aquilo que identifica o grupo e indica o pertencimento de seus membros a ele: é o próprio nome de cada Casa. Ser filho, neto ou alguém da família de tal ou qual Casa (i.e. estirpe, mãe, ou determinado nome de fa-mília). Este conjunto de elementos identificadores é manifestação do que chamo de força simbólica circulante, que é desigualmente distribuída por estas matriarcas entre seus descendentes, disputada por eles nas relações co-tidianas e negociada com as respectivas matriarcas, ainda em vida, mediante o sentido dado a suas trajetórias e pelas interações estabelecidas com elas, se aproximando ou afastando de suas expectativas, ganhando ou perdendo o direito à parte maior ou menor do legado matriarcal.

A pesquisa em amostra reduzida (duas redes de parentesco) permitiu apro-fundar a observação e tratamento de questões que, em uma amostragem mais extensa, poderiam não ser detectadas. Somente pelo estudo intenso das prá-ticas familiares destes grupos foi possível apreender, a partir dos discursos dos agentes sobre suas experiências e pela observação participante da coti-dianidade dos processos de construção, transmissão e reprodução de hábitos

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destes dois arranjos familiares matriarcais. Isto é, o estudo apurado de ambas as redes permitiu perceber como operam as relações de poder e de desigual-dade no domínio familiar, a construção de gêneros e gerações que lhes é parti-cular; assim como a importância das redes sociais centradas ao redor de certas figuras femininas.

No período de aproximadamente uma década,5 em que foi estabelecido

contato com estas Casas, foi possível apreender e acompanhar parte da his-tória, dos projetos, discursos e expectativas de vários dos seus integrantes identificados como parte de um contínuo temporal que auxiliou na extensa organização da base de dados criada. Alguns destes dados – após cuidadoso trabalho de seleção, organização, sistematização – estão aqui apresentados e mostram como ambos os lares, e os lares matrizes (de ego, ou matriarcas nestas redes) de modo especial, transitaram por distintos estágios e tipos de configuração, passando por momentos de arranjos nucleares, nucleares in-completos, compostos, até chegarem aos dos arranjos extensos descritos. Mostram ainda como se desfizeram para, a seguir, voltarem a adotar configu-ração extensa em fases novas e mais maduras dessa rede, já em novos ciclos de reprodução destas redes, buscando iluminar por meio das analises apre-sentadas, como ocorrem processos de reprodução destas famílias especifica-mente e da sociedade, de modo mais geral. Como parti do pressuposto de que é no tipo extenso matriarcal onde o princípio relacional de matrifocalidade pode ser mais visível e operante, este foi o escolhido para este estudo, já que este princípio dificilmente seria captado sem a adoção uma estratégia meto-dológica qualitativa, longitudinal e etnográfica, como a que privilegiei neste livro: o tipo de descrição densa e detalhada inspirada em metodologias de es-tudos situacionais e de eses-tudos de caso detalhados (ou extendidos) da escola de Manchester, especialmente os desenvolvidos em contextos africanos.

O estudo que apresento a seguir associa o olhar diacrônico ao sincrônico na observação das vidas e trajetórias destes dois grupos de parentesco ou Casas. Assim, para entender o processo constitutivo de cada Casa, detectar alguns valores que conformaram a identidade dos distintos integrantes e identificar a forma específica de ser de cada grupo doméstico foi preciso combinar dis-tintas técnicas metodológicas bem como alguns anos de pesquisa. O ponto

5 Esse foi o período da pesquisa até a defesa da tese. Como a publicação durou quase outros 10

anos, quando voltei a visitar ambas as Casas e alguns dados atualizados se pode considerar um lapso de 20 anos de contatos e histórias de vidas.

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de partida da reflexão proposta sobre famílias e unidades domésticas em se-tores populares urbanos foi a elaboração, em 1992, de um extenso survey so-ciodemográfico aplicado a 120 domicílios em um bairro popular da cidade de Salvador (entre os quais os das duas famílias aqui selecionadas) e estudos et-nográficos desse bairro. Contudo, a principal fonte de informação deste livro foi resultado do processo de observação etnográfica mais minuciosa e siste-mática e, em alguns dos momentos, de modo quase cotidiano na observação das interações entre os distintos membros que compunham cada um destes dois grupos domésticos e suas respectivas configurações de casas. Estas ob-servações foram realizadas mediante inúmeras visitas aos domicílios em pe-ríodos distintos, quer sejam em marcação anual, mensal, semanal ou mesmo de turnos distintos de um mesmo dia. Desde o primeiro contato em 1992, e de forma mais sistemática ou constante após 1997, quando passaram a ser regis-tradas em distintos cadernos de campo.

O caráter socioantropológico (e interdisciplinar) deste livro é, pois, resultado de vários anos de pesquisa e interesses anteriores ao doutorado que resultou em tese defendida em 2004. Os temas propostos na tese continuam sendo de-senvolvidos e reatualizados em novas pesquisas sobre a Pobreza em Salvador posteriores a esta, assim como pude debatê-los junto às diversas turmas de graduação e pós-graduação sistematicamente oferecidas no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal da Bahia, desde 2005, sob distintas nomenclaturas de disciplinas.

Neste livro me aproximo e discuto categorias como as de cultura da po-breza, matrifocalidade e matriarcado negro, propondo uma nova termino-logia, a de matriarcalidade, buscando contribuir, no campo de estudos da fa-mília, para uma classificação mais precisa de fenômenos próximos e distintos que muitas vezes se confundem. Acredito que a noção de matriarcalidade ilumina com maior precisão fenômenos invisíveis ao campo da sociologia da família, ainda que remeta a uma realidade tão conhecida na experiência de afrodescendentes pobres ao longo de alguns séculos desde a colonização europeia. As experiências apresentadas apontam, pois, para um conjunto de especificidades históricas, regionais, econômicas e culturais no que refere a um modo de organização familiar e divisão de trabalho entre sexos: o tipo de arranjo familiar que denomino de matriarcal, em famílias negras no Brasil, especialmente as localizadas em Salvador e Recôncavo Baiano. Numa época onde políticas afirmativas são tão enfaticamente promovidas e debatidas, o

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conteúdo desta obra pode oferecer insumos para se continuar avançando na reflexão sobre desigualdades sociais, de gênero, classe e raciais.

No estudo dos dois arranjos matriarcais extensos, analiso não apenas o modo como os mais pobres vivem e colonizam as cidades, tratando de pro-blemas habitacionais e do uso do espaço urbano, mas, sobretudo, mostro como se relacionam distintas casas entre si e como se constroem estas redes de sociabilidade, apoios mútuos, assim como muitos conflitos que carac-terizam microespaços densamente povoados. Nesta obra, são exploradas ainda especificidades que certas matrizes culturais africanas e pós-coloniais adotam nesta região do mundo, destacando a necessidade de investir mais em análises comparativas com outros contextos, resgatando semelhanças e diferenças com as experiências de pobreza desta e de outras matrizes cul-turais, em diversos contextos sociais das Américas, África e no mundo, em torno ao tema da chefia feminina e de famílias extensas matriarcais, espe-cialmente entre populações de afrodescendentes.

A descrição densa e detalhada das duas etnografias familiares e das res-pectivas casas lançam novo olhar e compreensão sobre famílias matrifocais e pobres e que ainda tendem a ser vistas, por muitos, como modos de de-sorganização familiar, visão que, infelizmente, ainda subjaz na concepção de legisladores que formulam políticas de combate à pobreza, à violência do-mestica e também de algumas políticas habitacionais vigentes no Brasil con-temporâneo. De modo mais concreto, o estudo etnográfico realizado lança um conjunto de indagações de pesquisa sobre o fenômeno da pobreza ou-trora conhecido ou qualificado como característica do matriarcado negro. Ao problematizar nesta obra alguns dos fundamentos teóricos e empíricos de ultrapassados pressupostos evolucionistas em estudos de família, termino por evidenciar possíveis motivos dos fracassos de tantas políticas e ações para combater a pobreza, apesar dos esforços e capital gastos para revertê-las. Acredito que algumas ações de políticas públicas fracassam devido a visões etnocêntricas e errôneas do que seja e significa ser pobre e viver na pobreza em um contexto urbano. Considero, portanto que acessar outra visão do que seja esta realidade é uma necessidade premente, para o que esta obra busca, modestamente, contribuir.

Em esforço articulado de triangulação metodológica para compor quadro mais completo do contexto e tipo de famílias estudadas, utilizei técnicas quantitativas e qualitativas de pesquisa. Por meio das densas narrativas da

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et-nografia familiar selecionadas, visei a apresentar diferentes vozes sobre um mesmo fato para melhor iluminar a construção processual e multivocal de certos problemas, resgatando, através das narrativas de conflitos, alianças e distintos lugares ocupados pelos membros do grupo do lugar onde eles se po-sicionam. Associado à observação etnográfica, apliquei a técnica de reconstru-ções de histórias de vida, com entrevistas em profundidade, gravadas e crite-riosamente transcritas, assim como a realização de entrevistas focalizadas em temas específicos, quando emergiam do contato com membros de cada casa.

Se alguns dados apresentados adiante com longas falas de entrevistados podem parecer repetidos a um leitor desinteressado, o sentido de os apre-sentar foi o de poder trazer diferentes vozes sobre um mesmo fato ou evento, e com isso o de justamente iluminar essa construção múltipla e multivocal, resgatando os distintos pontos de vistas e lugares onde os membros de cada rede falam. Um estudo assim desenhado ganha em profundidade de in-formação. Se tivesse optado por trabalhar com vários grupos familiares, o resultado e objetivos seriam outros, e com essa outra estratégia teria sido impossível, pelo tempo exigido e diversidade de perspectivas e sujeitos a acompanhar, o aprofundamento e detalhamento de informação sobre inti-midade e práticas desses grupos aqui logrado. Para tornar mais ágil a apre-sentação e organização da informação recolhida nos dois capítulos etnográ-ficos, usei o formato de peça teatral, intercalando cenas (descritas seguindo o critério temporal das histórias: passado, presente e/ou futuro), às quais se intercalam descrição mais detalhada de algumas das personagens principais em cada grupo familiar.

Assim, a partir desse esforço articulado de triangulação metodológica su-cintamente descrita, o Capítulo 1 apresenta alguns dos principais pressu-postos da pesquisa e debates em torno de teorias do parentesco e da família, especialmente a de classe trabalhadora no Brasil, que melhor situam o re-corte do objeto de estudo escolhido e maior fundamentação da definição de matriarcalidade adotada.

Os capítulos 2 e 3 trazem uma visão do contexto em que estão inseridos os dois grupos de parentesco estudados e apresentam dados quantitativos e qualitativos sobre a cidade, o bairro, a vida cotidiana e social de famílias do bairro e as respectivas visões sobre violência em contexto de pobreza, dando especial destaque à temática da chefia feminina na sociedade brasileira.

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Nos capítulos 4 e 5, configurados propriamente como etnografias fami-liares, o modelo matriarcal é demonstrado na descrição das distintas per-sonagens e suas interações com a chefa do lar nas duas redes de parentesco escolhidas para este fim. Descrevem-se os personagens centrais da trama e suas relações para resgatar o curso de vida de cada grupo familiar, a fim de caracterizar cada grupo e a forma de manifestação da matriarcalidade que é específica a cada um deles ao longo do tempo.

O Capítulo 6, também de teor etnográfico, sintetiza uma série de questões desta pesquisa. Desenvolve o argumento de que o exercício da matriarcalidade está diretamente atrelado aos usos e transformações do próprio espaço físico, a casa, ao longo do tempo, ilustrado através de distintos mapas das diversas es-truturas e modos de ocupações espaciais. Aqui se retomam, em parte, as histó-rias descritas nos capítulos anteriores desde o olhar da trajetória espacial e são introduzidos novos personagens secundários de ambos os grupos, revelando multifacetadas relações pela posse de um lugar na casa e na família.

A Conclusão retoma elementos centrais abordados ao longo dos capítulos etnográficos sobre a especificidade e particularidade deste tipo de modelo matriarcal descrito, voltando a explicitar elementos para sua definição; são lançadas algumas indagações que emergiram a partir do estudo sobre o lugar que nele ocupariam homens e mulheres, especialmente no papel de filhos/ filhas da matriarca.

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m

Capítulo I

PareNTescO

e

casa

em

FamílIa

(

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Negra

(

s

)

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O estudo da cultura, sistemas simbólicos e sentidos que preocupam à antro-pologia passa pelo estudo de termos fundamentais através dos quais as socie-dades se veem, pensam e se situam no mundo. Por isso conceitos como famí-lia, parentesco, casa, grupo doméstico, por citar alguns deles, só fazem sentido ao darem conta das significações que carregam nas relações sociais dos seus portadores. E é deste postulado mais amplo que partiu minha pesquisa.

Família e relações de parentesco são considerados importantes princípios

organizadores em quase todas as sociedades. Na brasileira, em particular, os termos são comumente associados à noção de casa (DAMATTA, 1978, 1985, 1987b; FREYRE, 1992 [1933]; MARCELIN, 1996, 1999; WOORTMANN, 1987), dado que uma família ou rede de parentesco se define muitas vezes pela cor-relação com a residência. No Ocidente, as palavras casa (maison), grupo do-méstico (maisonnée ou household),1 lar (demeure ou home), família, entre

ou-tras, têm sido frequentemente tratadas como sinônimos, para dar conta da diversidade de experiências sociais referentes ao tipo de interações íntimas e domésticas que ocorrem em variadas sociedades humanas. Além do critério da corresidência, também aqueles de consanguinidade, afinidade e o de conside-ração são utilizados para definir parentesco. Todos esses termos são categorias culturais e analíticas e como tais são polissêmicos, portanto as respectivas sig-nificações e modos de mensurá-los variam dependendo da utilização e formas

1 O termo household consagrou estudos associados às ideias de grupos de pertença, ciclo de

de-senvolvimento, consumo e produção de grupos domésticos e é muito utilizado em abordagens demográficas. Tende a associar estudos de parentesco e famílias ao critério de corresidência. Para Bender (1967), é inconveniente confundir ou tratar como sinônimos, noções de família, grupo doméstico e household/maisonnée, úteis para fazer distinções de ordem analítica entre si-tuações muito próximas. Para ele “Enquanto a noção de família remete aos laços de parentesco estabelecidos entre seus membros, os de casa – household/maisonnée – (foco do Ancien Regime: o governo da casa nas estatísticas modernas) remete ao reparto do lar e da residência em geral, enquanto a noção de grupo doméstico designa todo o conjunto de indivíduos que cumprem de modo comum e diariamente as tarefas de produção que são necessárias para sua sobrevivência e que consomem juntos os produtos desse trabalho. Se trata de princípios de organização logi-camente distintos que acabam, em numerosas sociedades estudadas por etnólogos, na consti-tuição de diferentes unidades sociais em sua composição”. (BENDER, 1967 apud BENDER, 1991, p. 313, tradução nossa)

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de interpretar dados pelas mais distintas disciplinas, autores ou vertentes teó-ricas, dificultando esforços de comparações equivalentes válidas.

Mas o que são exatamente relações de parentesco? Como se relacionam com a noção de família e a de grupo doméstico? Podem ser tratadas como campos próximos? Haverá alguma característica universal que identifique o que seja a família no Ocidente e em culturas não ocidentais como o in-tentaram fazer, por exemplo, algumas das perspectivas estruturo-funcio-nalistas? Como definir objetivamente o que seja de fato “a” família no pas-sado e na atualidade, se, muitas pesquisas socioantropológicas se deparam com diversas composições e organizações domésticas, ao longo da história, em todas as sociedades passadas e atuais? Perspectivas contemporâneas de estudos sobre família e parentesco, como a apresentada neste livro, consi-deram útil falar de famílias no plural para evitar associação automática ou inconscientemente ao de um arranjo particular, o de família nuclear mo-derna. Esta noção mais genérica de família é, por vezes, tratada ou confun-dida em estudos da área como modelo ou instituição universal.

Estas, entre outras, são preocupações que mobilizam estudos de paren-tesco desde a Antropologia Clássica ao observar estilos de vida de outras cul-turas, até os de disciplinas como Sociologia, História, Demografia ou áreas correlatas.2 Não é objetivo neste livro buscar responder em maior

profundi-dade cada uma das questões levantadas. Pretendo, apenas situar a complexi-dade de debates nos quais se insere o estudo em foco, reconhecendo algumas das confusões e imprecisões que o uso variado de muitos destes termos pro-duzem tanto em visões de senso comum quanto em estudos sobre o tema em que são destacadas as perspectivas de sociedades contemporâneas.

2 Lasch (1991), Schneider (1984), Woortmann (1987) e Marcelin (1996) fazem um detalhado

levan-tamento analítico sobre os estudos de parentesco aos que me associo, tratando algumas das suas interfaces com estudos de família(s). Esforço similar com foco nos estudos de família ver na com-pilação de artigos de Ana Vera Estrada (2003), La familia y las ciencias Sociales, que reúne artigos sobre diferentes abordagens de família no campo do Direito, Sociologia, História, Demografia e Antropologia e também nos debates sobre famílias contemporâneas de Pierpaolo Donati (2011), Família no Século XXI, especialmente o destaque sobre a dimensão relacional das famílias.

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cONceITO de casa e FamílIa

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O termo Casa, neste livro, tem duplo significado e o utilizo, em geral, como sinônimo de grupo doméstico ou família. Por isso, ao falar de Casas matriar-cais, refiro-me a famílias ou arranjos domésticos de tipo matriarcal. A defini-ção de família, pois, é próxima à nodefini-ção de grupo doméstico, podendo formar uma “unidade de produção”, ou não, mas sempre como sendo um âmbito de reprodução social e de consumo, onde se estabelecem complexas e dinâ-micas relações sociais entre os seus integrantes. O domicílio onde as famí-lias costumam se reunir indica ser esse um espaço de convivência de pessoas ligadas por laços de parentesco ou dependência, estabelecendo relações de afeto, solidariedade, tensão e conflito. Por isso é um espaço físico e social de divisão social – sexual e geracional3 – do trabalho, no qual a vivência do jogo

de poder se cristaliza na distribuição de direitos e deveres de cada indivíduo. Nessa concepção de família estão combinadas definições de sociólogas como Bruschini (1990) e Jelin (1994), associadas ainda ao conceito de curso de vida, desenvolvido por pesquisas sociodemográficas e sociológicas sobre família. (GOLDANI, 1989; HAREVEN, 1978; OJEDA, 1989)

Desta perspectiva, parto do pressuposto da existência de uma variedade de arranjos familiares que extrapolam o modelo nuclear tradicional (ou ele-mentar). E cada arranjo doméstico transversal o entendo, por sua vez, como resultado de uma variedade de combinações e possibilidades de arranjos que o antecede. Assim, um mesmo grupo familiar, ao longo da sua história, passa por etapas diferentes de organização domésticas, que variam entre ex-tensas, nucleares, incompletas ou compostas. Essa é, em suma, a ideia cen-tral do conceito “curso de vida” (HAREVEN, 1978; OJEDA, 1989; GOLDANI, 1989) que se distingue do de “ciclo de desenvolvimento vital” desenvolvido nos estudos de Meyer Fortes (1958), tão usado na demografia e estudos de família. O esquema analítico proposto pelo conceito curso de vida acres-centaria ao de ciclos de desenvolvimentos da(s) família(s) a possibilidade de

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