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1. GÊNERO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA: CONSTRUÇÕES SÓCIO-CULTURAIS

1.3. O Conceito de difração

É devido às colocações aqui expostas que Haraway se inspira nos trabalhos artísticos de Lynn Randolph62, para propor uma categoria de semântica à qual denomina “difração”.

62 Há diversos sites nos quais há informações sobre a artista feminista Lynn Randolph e sua obra.

FIGURA 1: Difração – Pintura de Lynn Randolph

Diffraction 1992 60" x 40" • oil on canvas

Haraway vale-se desta metáfora ótica para explicitar suas reflexões sobre “forte objetividade” e conhecimentos situados para compreender a produção do conhecimento tecnocientífico. Diz que é importante e necessário provocar difração de raios da tecnociência de modo a se obter maior padrão de interferências promissoras em nossas vidas e nos nossos corpos (HARAWAY, 1997, p. 34) “que podem fazer a diferença sobre como os significados são produzidos e vividos” e, portanto, fazendo a diferença no mundo. O conceito e o entendimento de difração propostos por Haraway estão próximos do entendimento da feminista filósofa da ciência Sandra Harding sobre reflexividade no que diz respeito ao fazer ciência como resultado de práticas situadas. Só que reflexividade (recomendada como prática crítica) somente desloca o mesmo conhecimento para um outro lugar; não é considerada, portanto, uma boa metáfora para o que Haraway propõe sobre conhecimento situado (Opus cit, p. 16). Em síntese, para Haraway (1997, p. 268), “a ‘forte objetividade’ e o ‘realismo de agenciamento’ demandam uma prática de difração,

não apenas reflexão”. Então, a “difração é a produção de diferentes padrões no mundo, não somente do mesmo refletido – deslocado – em/para algum outro local”.

Ao meu ver, entendo que há um composê de conceitos que, uma vez aceito e incorporado, funciona como ferramenta para a compreensão sobre a construção do conhecimento técnico e científico. Este composê poderia integrar “forte objetividade” em conjunto com “reflexividade crítica” (HARDING), “conhecimento situado histórica e socialmente63 (HARAWAY, 1997) e comunidades de prática64, e seu diversificado leque de “valores sociais”, os quais “modelam processos de pesquisa” (HARAWAY, 1997, p. 36).

Na questão específica das práticas, enfatizo a idéia de agency65 proposta por Sherry

B. Ortner66 (2006). Segundo esta pesquisadora, o conceito de agency67 implica em intencionalidade, inclui ações indistintas, desde que conscientes (em níveis diferenciados) e emocionalmente direcionadas a algum propósito. A agency atrela-se, portanto, à noção de projeto, enquanto sua dimensão mais fundamental. É essa intencionalidade que diferencia uma ação de práticas rotineiras, visto que estas requerem um mínimo de reflexão e planejamento por parte dos indivíduos para serem realizadas. A agency refere-se a ações pensadas e planejadas e executadas (inclusive com envolvimento da emoção – ou não necessariamente) visando a provocar intervenção no mundo. Na verdade, há um continuum

63 Para este conceito de conhecimento situado, Haraway inspira-se em teóricos como Latour, Shapin

e Schaffer, os quais relembram que a ciência trata de práticas sociotécnicas, como aparato cultural (considerado por Shapin e Schaffer o coração de uma forma de vida experimental, ao escreverem sobre o pai desta vida experimental: Robert Boyle e seu experimento: bomba de ar) e não como verdade desincorporada de ações situadas que constroem conhecimento localizado. Eles escrevem sobre a dimensão social da tecnologia (HARAWAY, 1997).

64 Comunidades de prática é um conceito proposto por pesquisadores pertencentes à área

antropológica. É aqui entendida por um conjunto integrado de relacionamento entre indivíduos e suas respectivas atividades, ao longo do tempo, que resulta na construção do conhecimento (WENGER, 1998; LAVE & WENGER, 1991).

65 A tradução para o português mais próxima pode ser: agência, agente ou agenciamento. O termo

remete a “ação” (como em francês, como informa a pesquisadora). Mas, ainda assim, esta tradução não daria conta da abrangência do termo em inglês. “Agency” é definida por Ortner como “(...) a capacity of all human being to act in order to intervene in the world intencionally; its form and as it were, its distribution, are always culturally constructed and maintained. It is a form of power. It is a form of intention and desire” ( ORTNER, 2006, pág. 16 e seguintes).

66 O conceito de agency foi desenvolvido pela autora Sherry B. Ortner e debatido em um workshop

ocorrido na 25.a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), em Goiânia-GP, em junho de 2006. O título do

paper é: Power and projects: Reflections on agency. A questão de agency emerge de movimentos políticos e sociais iniciados na década de 1970 e tem implicação, portanto, direta com situações de poder desde suas raízes, centrando nas idéias de resistência à dominação. Ver Ortner (2006). Devo a introdução a essa autora e ao seu conceito de agency à minha orientadora Carmen Rial, a quem agradeço.

67 Haraway (1997) também trata desse conceito, inspirando-se em Karen Barad, que o denomina

entre ambas estas ações, entendidas como pontos extremos de um espectro. Agency é tanto “universal, e é parte de humanidade fundamental” – conforme afirma o teórico William Sewell: “a capacity for agency... is inherent in all humans68” – quanto é, ao mesmo tempo, “sempre cultural e historicamente construído” (ORTNER, 2006). Um dos exemplos dados por Sewell e citado por Ortner em seu artigo, é a capacidade para a linguagem. Ele diz que “todos os humanos têm a capacidade para a linguagem, mas precisam aprender a falar uma linguagem particular”. Então, usando uma analogia, Sewell conclui que “todos os humanos têm a capacidade para agency, mas as formas específicas que ela toma variam em diferentes tempos e lugares”.69

Portanto, os diferentes domínios da vida social acabam sendo moldadores da

agency. Daí porque embora se centre opções direcionadas à capacidade de agency que cada

indivíduo enquanto agente social tem, este não é totalmente livre para executar suas ações e muito menos seu poder individual e respectiva força de vontade está acima dos (e triunfa sobre os) contextos sociais onde ele está imerso. Mas ele está sempre inserido nas estruturas mais amplas das múltiplas relações sociais (não há agency em um vácuo social), geradoras de imprevisibilidade entre intenções e resultados envolvidos em qualquer processo histórico. Em síntese, o que prevalece é uma “relação dinâmica, poderosa, e algumas vezes transformativa entre as práticas das pessoas e as estruturas da sociedade, da cultura e da história”. As questões de poder, desigualdade e assimetrias, então, são fundamentais para a conceituação de agency (ORTNER, 2006).

Neste caso, os valores contemplam as amplas crenças da cultura da comunidade, embora nem sempre sejam levados em conta nos processos investigativos da tecnociência.

68 “A capacidade para “agência” ... é inerente a todos os humanos” (tradução livre feita por mim). 69 Fiz contactos com a professora Sherry Ortner sobre o estranhamento que tive ao ler seu paper no

que se refere ao conceito de agency, especificamente sobre o aspecto universal (portanto, remetendo ao essencialismo) das práticas (não) rotineiras de uma ação, visto ser este um dos mais fortes tópicos de desconstrução por parte de alguns/mas pesquisadores/as de gênero, da mulher e de correntes feministas contemporâneos. Ela gentilmente me respondeu, reforçando: “I think you are right, that it is important to be careful about universals and essentialism. However I think it is important to recognize certain general existential qualities and experiences that all human beings share. If we did not share some fundamental qualities and experiences, then there would be no such thing as a common humanity. And I do believe in a common humanity. Otherwise everyone is an Other. (emails trocados em jul 2006. A resposta de Ortner: Email: assunto: doubts about "agency". Data: Mon, 10 Jul 2006 09:42:10 –0700). Tradução livre feita por mim: “Eu acho que você está correta, que é importante ser cuidadoso/a sobre universais e essencialismo. No entanto, eu acho que é importante reconhecer certas qualidades existenciais gerais que todos os seres humanos compartilham. Se nós não compartilharmos algumas qualidades e experiências fundamentais, então não haveria semelhante coisa como uma humanidade comum. E eu realmente acredito em uma humanidade comum. Senão, cada um é um Outro”.

Tal conjuntura requer uma noção de objetividade mais forte e, portanto, mais adequada, visando a trabalhar com a diversidade dos valores sociais mencionados, extrapolando-os, inclusive, os dos membros de uma comunidade científica. Estas atividades de trabalho acontecem em diversificados sentidos de transversalidades, interseccionado por relacionamentos aos quais se integram categorias como gênero, raça, etnia, nação, geração, espécies, e classes em diferenciados modos e nem sempre previsíveis.

A filósofa da ciência, feminista Sandra Harding, apresenta abordagens aproximativas das de Haraway, a exemplo da colocação de que “a ciência é o resultado de práticas situadas em todos os níveis”; ou de que forte objetividade é uma “virtude” necessária para ser cultivada por quem produz conhecimento tecnocientífico. Haraway (1998, p. 18) enfatiza que “gostaria de uma doutrina da objetividade corporificada que acomodasse os projetos científicos feministas críticos e paradoxais: objetividade feminista significa, simplesmente, saberes localizados”. Para ela, tão apenas uma perspectiva parcial é garantidora de visão objetiva. É deste modo que o conhecimento se descolaria de qualquer aspecto transcendental e da dicotomia entre sujeito e objeto. Portanto, suas duas mais importantes proposições estão centradas em uma localização limitada e um conhecimento situado que resultariam em uma corporificação da visão (transformada esta em uma ferramenta útil para o feminismo) e em uma objetividade democrática que faça sentido.

Haraway critica Bruno Latour, ao afirmar que ele coloca o fazer científico no âmbito do masculino. Em nenhum momento, ele dá abertura para abranger cientistas mulheres em suas análises da tecnociência e respectivas e diversificadas redes de relações. Ou seja, ele está a reproduzir o establishment científico hegemonicamente masculino e a dar continuidade às ineqüidades de gênero. Na visão androcêntrica, descontextualizada dos processos já havidos e dos em andamento no que diz respeito ao “fazer tecnociência”, a invisibilidade das mulheres é real e, quando elas aparecem, são tão simplesmente consideradas como “observadoras” de uma demonstração de caráter científico, mas jamais como “testemunhas” do experimento. Experimentos estes feitos geralmente em laboratórios que aos poucos foram se tornando públicos quando da execução do “fazer ciência”, o que lhes dava legitimidade científica. A produção e a construção destes conhecimentos científicos realizados em laboratório eram, assim, conhecimentos situados,

e realizados sob a perspectiva e nos contextos entendidos como “modo experimental de vida”.

Ressalto que talvez a contribuição maior de Bruno Latour para esta pesquisa seja a desconstrução que ele faz sobre quem elabora ciência e tecnologia nas sociedades e nas culturas na contemporaneidade. Isto porque durante o desenrolar da pesquisa, trabalho com a constatação de Latour de que é uma minoria que faz ciência e tecnologia na atualidade. A partir desta perspectiva “latouriana”, ao pensar na mulher nestes contextos, sua participação pode ser considerada inexpressiva em termos gerais. No entanto, esta constatação é minimizada conforme avanço na análise dos resultados dos dados e da observação, adquiridos em campo de investigação, distanciando-me, claro, de análises globais, atendo-me aos locais investigados. Ao se levar em conta o referencial teórico- metodológico de Latour (2000)70 há a conscientização de que, para responder ao questionamento sobre quem faz ciência e tecnologia71, é necessário se levar em conta, também, quem trabalha fora dos contextos laboratoriais tradicionais. São os/as que conquistam a adesão dos pares às suas descobertas, mesmo aquelas consideradas em fase preliminar; “negociando” os resultados de investigações com órgãos financiadores e de fomento à pesquisa, com instituições várias voltadas ao ensino e à extensão de estudos, além de órgãos governamentais que injetam recursos para o desenvolvimento do país. Conforme se vai angariando mais adeptos aos desenvolvimentos de pesquisas em andamento, maiores recursos e subsídios são obtidos, mais pessoas especializadas são introduzidas no ambiente de trabalho laboratorial e, ad continuum, esse ciclo vai se constituindo e se renovando ao longo do tempo. Esta conceituação, ao que a história evidencia, já estava incorporada nas práticas da cientista Bertha Lutz72 que, juntamente

70 Para maiores informações sobre a desconstrução que Latour elabora sobre quem produz ciência e

tecnologia na contemporaneidade, inclusive sobre sua proposta de ciclo da nova anatomia da tecnociência e seus diversos elementos, desde verbas, força de trabalho, instrumentos, objetos, argumentos e inovações, ver Latour (2000).

71 De acordo com Latour (2000), nos EUA, em média, 2,5% do Produto Nacional Bruto (PNB) são

destinados a projetos em P&D, nos países desenvolvidos, paga pelas indústrias, pelo governo federal e outras instituições, em parceria contínua, a exemplo de universidades (9% de quem faz P&D) e de laboratórios federais (11%), sendo 55% em pesquisa aplicada e 2% em pesquisa básica. A indústria é responsável por 70% da feitura de produtos e serviços da tecnociência. As atividades vão desde defesa militar, saúde, fomento à educação, energia e infra-estrutura, até agricultura e crescimento industrial.

72 Bertha Lutz liderou no Brasil, entre 1919 e 1937. movimento “que assegurou às mulheres o

reconhecimento de seus direitos”. Dentre eles, menciono “uma educação qualificada, comum aos dois sexos, permitindo o amplo acesso às atividades profissionais, direito de voto e de elegibilidade e igualdade”.

com as outras mulheres do movimento feminista sob sua responsabilidade, “buscam o apoio de lideranças nos diversos campos, constituindo grupos de pressão visando garantir apoio de parlamentares e de outras autoridades da imprensa, da opinião pública”. Para obterem tal apoio, e com essa abrangência, elas se organizaram “em associações”, fizeram “pronunciamentos públicos”, além de utilizaram-se “fartamente da imprensa” (SOIHET, 2002).

Os limites fronteiriços entre as diversas dimensões que integram a tecnociência são difusos neste trabalho de pesquisa. A abordagem dos limites fronteiriços “borrados” é proposital, visto que dificilmente se encontra um objeto e/ou sujeito do conhecimento com fronteiras limítrofes nítidas. É próprio da contemporaneidade (ou pós-modernidade73) que seja assim. O objeto de estudo é complexo por sua própria natureza, também por estar inserido neste momento sócio-histórico atual, o que requer, por sua vez, uma visão necessariamente interdisciplinar para dar conta do estudo, em sua maior abrangência possível. As categorias propostas também mesclam-se nas atividades desenvolvidas nos atuais contextos das comunidades de prática da tecnociência.

Concluindo este capítulo, entendo que o tema deste estudo é complexo e, devido a isso, requer amplo leque de teóricas/os para colaborarem no enriquecimento das reflexões advindas de suas inúmeras possibilidades de abordagens, enfoques, pontos de vista. Também considero importante a contribuição de Bruno Latour e sua desconstrução do que é o “fazer ciência”, na constatação da existência de extensa rede sociotécnica a compor tal área do saber/fazer. Além de Silveira e sua perspectiva dos diferentes níveis do fazer ciência e tecnologia.

Após esta síntese das contribuições de Haraway, Ortner, Harding, Malcom, Huyer, Bonder, Alice Abreu, dentre outras e respectivas abordagens e conceitos, gostaria de pontuar que na presente pesquisa, utilizarei as categorias de análise e conceitos de gênero, difração e agency.

Algumas militantes da época ousaram ir um pouco mais além destas reivindicações e “questionavam a questão do divórcio, da sexualidade e da dupla moral vigente” (Rachel SOIHET, 2002).

73 Apego-me a “conversas” imaginárias tidas com Haraway (1997, p. 306) para dizer que as

definições de modernidade, pós-modernidade, contemporaneidade ou, ainda, atualidade, usadas neste trabalho de pesquisa não estão reféns de implicações de um mais expressivo – ou não – progresso dos indivíduos ao longo linear do tempo, mas sim, no sentido de ressaltar os feitos e as narrativas de trabalhos realizados e situados no tempo histórico pelas “redes da tecnociência, práticas e poderosas, que têm mudado a vida e a morte no planeta”.

No próximo capítulo, situo o/a leitor/a sobre como fui obtendo as informações e os dados e os contactos que caracterizam o presente processo de pesquisa, que resultou na construção do conhecimento sobre o objeto deste estudo, caracterizado como uma autêntica “aventura metodológica”.

2 A AVENTURA METODOLÓGICA: O UNIVERSO DA PESQUISA, OS