• Nenhum resultado encontrado

Novo Desafio: O Ato da Escrita não Solitário, mas Necessariamente Polifônico

2 A AVENTURA METODOLÓGICA: O UNIVERSO DA PESQUISA, OS

2.4. Novo Desafio: O Ato da Escrita não Solitário, mas Necessariamente Polifônico

Nesse processo de objetivar fatos, sentimentos, sensações, por mim vistos, percebidos e vivenciados em campo, gostaria de relativizar a colocação de alguns/mas autores/as que atestam que o ato da escrita implica em solidão. Entendo que, apesar de haver uma solidão física (o/a pesquisador/a está distante do campo), há um intenso povoar psíquico. Explico-me: ao rememorar atos, episódios, fatos, situações, esses eram constantemente revivenciados por mim, na medida em que dava novamente vida aos demais indivíduos que fizeram parte dos episódios. Todos/as, portanto, estão presentes em meu viver. É aí que trago Schutz (1979) à reflexão. Nesses momentos, não sou mais eu quem estou no mesmo fluxo de pensamento que meus informantes, quando das narrativas de suas vidas. Mas sim, são eles que são resgatados e são reavivados pela minha memória, ao ouvir suas falas na fita gravada e ao transcrevê-las. Este é o momento em que há certo reforço e certa fixação da entonação da voz, silêncios, rememoração de troca de olhares, sorrisos esboçados, meneios de cabeça, o premir dos lábios em sinal de descontentamento, e outros gestos corporais não captados na fita cassete e quase imperceptíveis aos incautos e novatos nas práticas das alteridades, os quais acentuam que muitos “não-ditos” poderiam ter vindo à tona.

Ao seguir o desenvolvimento da fala dos/as informantes, participa-se do presente imediato de seu pensar, visto que se entra na sua corrente de pensamento. Nestes momentos, está-se na subjetividade das/os informantes, em seu alter ego87, que é, segundo

85 Dá-se o nome de nerd às pessoas que são aficcionadas da área da informática/computação, a ponto

de mostrarem-se arredias e antissociais nos contextos por onde circula.

86 Para maiores informações sobre o “Consentimento Livre e Esclarecido ou Informado” e outras

questões éticas, dentre outros, ver: Leite (1998); e/ou Tornquist (2001); ou, ainda, Dupas (2000).

87 Segundo Catherine Riessman (1993, p. 11) “(…) in telling about an experience, I am also creating

Schutz “a corrente de pensamento subjetiva que pode ser vivenciada em seu presente vívido. (...) a corrente de consciência cujas atividades posso captar, no seu presente, através das minhas próprias atividades simultâneas” (RIESSMAN, 1993, p. 162-163). Portanto, essa corrente de pensamento das/os informantes é simultânea à própria corrente de consciência da pesquisadora, visto que se está compartilhando o mesmo presente vivido. Compreendo que há enormes desafios na (re)construção do passado dessas narrativas históricas, no esforço de eliminar os esquecimentos de fatos agora revigorados pelas memórias das pessoas. Fatos estes que estavam esperando para voltarem à luz, após talvez longos períodos – dias, meses, anos, décadas – de estadia nos porões da consciência; nesta tentativa de tecer fios que, aparentemente desconexos, vão dando sentido às situações da condição humana e às suas respectivas dimensões sociais, políticas, religiosas, pessoais, enfim, da teia que enlaça as interrelações na vida. Importante enfatizar que as memórias comportam esquecimentos tão significativos quanto ela própria, visto que a memória se faz também (e principalmente) a partir das significações.

Os/as informantes readquirem vida, com movimentos, cores, expressões, e certamente estão povoando meu pensar. Como haver solidão psíquica, como sustentam alguns/mas pesquisadores/as, a exemplo de Mariza Peirano, com tanta movimentação de seres habitando meu psiquê? Há de novo um vivenciar das mesmas situações, embora rememoradas. E isto não implica em solidão psíquica, mas sim em povoamento intenso do meu pensamento. Uma vez visto, ouvido, sentido e vivenciado determinado fato ou episódio, ele poderá ser rememorado e, portanto, revivido “n” vezes, haja vista que a memória é capaz de fazer com que estes fatos venham à tona de modo nítido, vibrante, intenso, corporificando, inclusive, personagens presentes naquele momento vivido.

É isto que entendo quando Cardoso de Oliveira (2000, p. 66), inspirando-se em Geertz, nos instrui que o trabalho de campo e o do gabinete referem-se a duas instâncias de um “processo [de busca e construção do conhecimento] como duas faces de uma mesma moeda”. Para este pesquisador, estas duas esferas se imbricam perdendo a nitidez, visto que, inseridos nesse processo, estamos continuamente não apenas a levar o gabinete para o campo de pesquisa – através de conhecimentos teórico-metodológicos adquiridos em livros, por exemplo – mas também quando se traz o campo para o gabinete, quando da experiência, eu também estou criando um self – como eu quero ser conhecido/a por eles”. Desta maneira, Riessmann recorre a Goffman, para reforçar que “(…) my narrative is inevitably a self representation”. De acordo com tradução livre feita por mim: “(...) minha narrativa é inevitavelmente uma auto-representação.”

volta, tendo por meta final a escrita do trabalho. Em pleno exercício da pesquisa de campo, há momentos que extrapolam cuidados metodológicos, que podem culminar em sábias compreensões dos fatos estudados. De acordo com Cardoso de Oliveira (Idem, p. 106), esses momentos seriam identificados “como tendo seu início verdadeiramente criativo na e

durante a pesquisa de campo”. Ele pontua que o/a pesquisador/a deve assim agir

especialmente se ele recorrer à observação participante. Cardoso, no entanto, toma o cuidado de alertar que esse processo deve ter continuidade quando da elaboração da narrativa escrita, isto é, quando da “textualização da cultura.” Mais do que simplesmente explicar “o outro”, dá-se um passo além e se está na instância do “compreender o outro” (Idem, p. 115).

Além disso, há constantemente a necessidade de atender atividades acadêmicas, vinculadas à nossa pesquisa. Há convites para expormos o que estamos pesquisando, explicitando quais estágios foram cumpridos e quais faltam a cumprir. Que dificuldades e facilidades foram encontradas nas diferentes fases da pesquisa. Há resultados preliminares que podem e precisam ser apresentados e submetidos às críticas, na tentativa também de se obter sugestões de aprimoramento do trabalho. Deste modo, durante a escrita, em um suposto isolamento e solidão, o/a pesquisador/a está ad continuum dialogando sobre sua própria pesquisa ou sobre a investigação de terceiros/as, ocasiões em que pontos em comum surgem, reflexões divergem, problemas e dificuldades se assemelham ou destoam sobremaneira. Há encontros marcados ou casuais com colegas e com nossos pares e mesmo com orientadores/as, que acontecem até mesmo em um simples “momento do cafezinho”, em que frases despretensiosas ou diálogos amenos acabam influindo na mudança de rumos ou reforço de caminhos previamente escolhidos. Com estas colocações quero mesmo reafirmar que estamos vivenciando constantemente diversas e diferenciadas temporalidades, mas que os resultados dessas vivências mescladas, interligadas ou intercaladas, influem no realinhamento de nossas opções teórico-metodológicas, permeando todo o processo de pesquisa, até mesmo e inclusive em sua escrita final.

Esse conjunto de situações e elementos converge e influi nos momentos da escrita, a qual, portanto, dificilmente poderia ser entendida como advinda de momentos de total isolamento e de solidão. A escrita acaba sendo denunciadora de muitas mentes que a compõem. São mentes de todos indivíduos que, de uma forma ou outra, direta ou indiretamente, interagem conosco em diversos momentos deste caminhar pelas veredas do

conhecimento. Neste sentido, entendo que minha escrita é, de fato, incontestavelmente, um texto polifônico e agrega multiplicidade de cronotopos, além de denunciar certa heteroglossia88.

A polifonia proposta por Bakhtin nos remete a Cardoso de Oliveira, quando este diz que: “(...) o autor não deve se esconder sistematicamente sob a capa de um observador impessoal, coletivo, onipresente e onisciente (...) [deve reconhecer] a pluralidade de vozes que compõem a cena da investigação etnográfica; essas vozes têm de ser distinguidas e jamais caladas pelo tom imperial e muitas vezes autoritário de um autor esquivo”. Daí porque este pesquisador defender o que chama de “antropologia polifônica” (Idem, 2000, p. 30).

Quando se associam as mentes e o respectivo ato de pensar, com o de escrever, Cardoso de Oliveira (2000) alerta que estes dois atos compõem o que ele denomina de “ato cognitivo”, visto a solidariedade que os caracteriza na ação. É a partir desse entendimento que ele recomenda a repetição da escrita, muitas vezes, se necessário, visando tanto o seu aperfeiçoamento formal quanto o das narrativas e descrições. Tais cuidados confluem para esmerilhar análises e reflexões na consolidação de argumentos. É por isso que ele recomenda um rigor mais apurado quando do ato de escrever.

O processo da escrita, a meu ver, no sentido em que está sendo ora exposto, acaba sendo um projeto de vida do/a acadêmico/a e/ou do/a pesquisador/a. Acredito mesmo que muitos de nós, ao elaborarmos um texto de uma pesquisa específica do momento atual, algumas vezes nos lembramos de situações já vivenciadas em outras pesquisas realizadas no passado (recente ou não). E pensamos: “Ah, eu poderia ter dado um outro enfoque, uma interpretação diferenciada, optado por outro/a teórico/a para inspiração desta investigação...” Neste ponto, rememoro Malinowski (1997) quando se questiona sobre qual seria o ponto de vista a se privilegiar ao se isolar, classificar e descrever elementos essenciais e secundários que fluem nas vivências diárias dos/as informantes. Nesse encontro de subjetividades no campo etnográfico, o que e como se privilegiar os momentos exatos no intercalamento das (re)ações destas subjetividades? A variedade e a complexidade resultantes dessas indagações geram dificuldades sobre não apenas o que se escrever em um diário, que acaba se caracterizando como uma “história” de eventos que

88 A polifonia contempla (e faz audível) muitas vozes, nas quais estão implícitos processos de multi-

entonações, que enriquecem a linguagem e a interação humanas; cronotopos referem-se a locais e momentos por onde passei e interações sociais que vivenciei; e heteroglossia diz respeito aos/às vários/as autores/as e pesquisadores/as com quem dialoguei e interagi (BAKHTIN, 1997).

(des) (en)cadeia significados, como também, decorrentes reflexões retrospectivas. De preferência, estas reflexões requerem profundo conhecimento e prática, visto que este conjunto pode levar a mudanças teóricas e a reordenações metodológicas. A “experiência em escrever leva a resultados inteiramente diferentes mesmo que o observador permaneça o mesmo” (MALINOWSKI, 1997, p. 145 e 269).

Sintetizando, considero que no caso da escrita, trata-se, sempre, de um processo inacabado, na medida em que se pode retomá-lo a qualquer momento futuro, e dar-lhe nova abrangência, novas abordagens, novas correlações.

É, enfim, a trajetória de minha própria subjetividade que também tem um caminhar, não estando estagnada no tempo e no espaço. É ela crescendo e se sofisticando (ou, por que não?) se simplificando nas reflexões e interpretações. Igualmente importante se pontuar que o conceito de “trajetória” implica em se levar em consideração que nem as/os informantes, nem a pesquisadora e nem o mundo estão parados no tempo. Esta é a dialética da duração (ROCHA; ECKERT, 2001). Em um primeiro momento, as/os informantes estão no tempo presente, porém falando, recordando, buscando em sua memória, informações sobre o passado (AMADO, 2002). A pesquisadora está no fluxo da memória das/dos informantes. Já em um segundo momento, é o/a pesquisador/a que está no tempo presente, mas rememorando o tempo da dádiva do encontro com os/as informantes.

É minha subjetividade no encontro com as alteridades com quem vai se deparando e interagindo, que acaba dando um mote diferenciado à pesquisa. Ainda que, vez ou outra, eu tenha me apercebido, tardiamente em relação ao momento em que o fato se deu, que, quanto à questão pesquisadora x pesquisado/a e respectivas relações de poder, embora seja “(...) encontro de subjetividades, a pesquisa antropológica, na linha teórica dos sujeitos não coloca um e outro sujeitos na mesma posição, ou seja, as duas subjetividades não têm o mesmo estatuto” (ZALUAR, 2004, p. 109). Reforçando, isto acontece porque, como bem nos lembra Guita Debert (2004, p. 156) “(...) em qualquer relação amistosa, há jogos de poder e núcleos de conflito...”.

Retomando o explicitado na Introdução, o objetivo geral desta tese é analisar as relações entre gênero e tecnociência, refletindo tanto sobre os avanços no sentido da superação das desigualdades, quanto sobre a continuidade de padrões tradicionais de comportamento. A pesquisa foi feita em empresas nascentes de base tecnológica. Para

atingir este objetivo estabeleci a seguinte trajetória, seguindo a ordem dos próximos capítulos: primeiro, elaborar uma etnografia de incubadora que integra 39 empresas nascentes de base tecnológica (campo 1); e de empresas similares não-incubadas (campo 2); ambos os campos localizados em Florianópolis-SC; simultaneamente, foi feita uma caracterização do perfil das mulheres (principalmente) e de alguns homens que trabalham nessas empresas. Segundo, avaliar até que ponto as mulheres teriam ultrapassado o “teto de vidro” no mercado de trabalho da tecnociência e da academia, analisando e comparando os dados mais gerais obtidos em outras pesquisas nacionais e internacionais, com aqueles obtidos em campo, junto às empresas e às entrevistadas. Terceiro, verificar em que medida as mulheres têm engendrado tecnociência, analisando a complexidade das funções que têm exercido nas empresas investigadas. Quarto, analisar as interseções entre as dimensões pública e privada que são engenhosamente articuladas pelas mulheres, verificando em que medida explicam tanto os avanços quanto a reprodução das desigualdades de gênero.