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A problemática da questão em estudo inicia-se com a imprecisão do conceito de população tradicional apresentada pela Lei do SNUC. A expressão é utilizada direta e indiretamente em vários artigos da mencionada Lei81. Para

possibilitar a efetiva aplicação desses dispositivos, a referida Lei definiu no artigo 2º, inciso XV, como populações tradicionais:

grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para a sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável.

Entretanto, tal dispositivo foi vetado pelo Presidente da República com fundamento na contrariedade do interesse público, uma vez que o considerava de conteúdo amplo, fato que dificultava sua delimitação e que possibilitaria abusos82.

Paulo de Bessa Antunes entende que populações tradicionais “podem ser definidas como aquelas que, em princípio, encontram seus habitats em florestas nacionais, reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, ou seja, os grupos que são conhecidos como povos das florestas, caiçaras ou outros que, reconhecidamente, tenham uma forma de vida peculiar e característica, distinguindo-os na comunidade nacional”83.

Acrescenta o autor que as populações, tradicionalmente ocupantes de tais regiões, devem se referir àquelas que se utilizam de “um modelo de economia não monetarizada, sustentada em formas não diretamente vinculadas ao modelo de mercado e que, não raras vezes, é desenvolvida de forma comunitária”84.

81 Como exemplo, há os artigos: 4°, inciso XIII; 5°, inciso X; 17, §§ 2º e 5º; 18, §§ 1º e 2°; 20, §§ 1°, 3° e 4°; 23; 27, § 2°; 28, parágrafo único; 29; 32; e 42.

82 Mensagem nº 967, de 18 de julho de 2000, enviada pelo Presidente da República ao Presidente do Senado Federal.

83 ANTUNES, op. cit., p. 509. 84 ANTUNES, op. cit., p. 642.

A Lei do SNUC, ao definir as Reservas Extrativistas (artigo 18) e de Desenvolvimento Sustentável (artigo 20), estabeleceu indiretamente o conceito de populações tradicionais, sendo comunidades “cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte”, no caso das que habitarem a Reserva Extrativista, ou “cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração de recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e com um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica”, quando se tratar de comunidade estabelecida em Reserva de Desenvolvimento Sustentável.

Dessa tentativa de conceituação, fica a característica de sustentabilidade das comunidades tradicionais, as quais produzem baixo impacto sobre os recursos naturais, configurando práticas culturais não predatórias. É nesse sentido que Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. Almeida escreveram85:

[...] as populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando para conquistar (por meio de meios práticos e simbólicos) uma identidade pública que inclui algumas e não necessariamente todas as seguintes características: o uso de técnicas ambientais de baixo impacto, formas eqüitativas de organização social, a presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados.

Essa é a idéia proposta no glossário do site do IBAMA. Segundo ele, população tradicional seria aquela que, vivendo há pelo menos duas gerações em um determinado ecossistema, em estreita relação com o ambiente natural, depende de seus recursos naturais para a sua reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo impacto ambiental86.

85 CUNHA, Manuela Carneiro da; ALMEIDA, Mauro W. B. Populações tradicionais e conservação ambiental. In: CAPOBIANCO, João Paulo Ribeiro et al. (orgs.). Biodiversidade

na Amazônia brasileira: avaliação e ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e

repartição de benefícios. São Paulo: Estação Liberdade – Instituto Socioambiental, 2001, p. 192.

86 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Glossário do IBAMA. 2007. Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/siucweb/guiadechefe/guia/z-1corpo.htm>. Acesso em: 09 de outubro de 2007.

A Portaria n° 22/92 do IBAMA, que criou o Centro Nacional do Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais, delimita o campo de atuação das comunidades tradicionais ao defini-las como “comunidades que tradicionalmente e culturalmente têm sua subsistência baseada no extrativismo de bens naturais renováveis”.

O recente Decreto n° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), pôs fim à discussão, porquanto definiu no artigo 3°, inciso I, para os fins do referido Decreto, como povos e comunidades tradicionais:

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Como pode ser observada, a definição proposta pelo Decreto segue a Convenção 169, de 7 de junho de 1989, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Congresso Nacional e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro como lei ordinária. O artigo 1°, inciso II, da Convenção utilizou o critério de auto-identificação ou auto-atribuição, ao considerar a consciência de sua identidade como critério fundamental para determinar os grupos indígena ou tribal.

Verifica-se, ainda, que o conceito apresentado pelo Decreto não adotou mais o critério temporal para definir as populações tradicionais. Também, não se utilizou apenas do critério de residência dentro dos limites da UC, em razão de existirem esses povos localizados fora dos limites formais da área protegida, como atesta Juliana Santilli87.

Assim, observa-se que é relevante, entre outros aspectos dispostos no dispositivo em exame, para a compreensão do termo, o regime de exploração dos recursos naturais que deve ser tradicional e ecologicamente adaptado. Deve-se pautar no desenvolvimento sustentável, o qual, de acordo com o artigo 3°, inciso III, do referido Decreto, é entendido como “o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras”.

87 SANTILLI, Juliana. Unidades de conservação da natureza, territórios indígenas e de quilombolas: aspectos jurídicos. In: RIOS, Aurélio Virgílio Veiga; IRIGARY, Carlos Teodoro Hugueney (orgs.). O direito e o desenvolvimento sustentável. Curso de direito ambiental. São Paulo: Peirópoles; Brasília: IEB – Instituto Internacional de Educação do Brasil, p. 167-203, 2005, p. 194.

Não obstante essa Política Nacional ter sido instituída por decreto, de modo a deixá-la vulnerável, pelo fato de não gozar da estabilidade propiciada pela lei, o Decreto em exame é merecedor de crédito, porquanto se propôs a suprir ausência do ordenamento jurídico e tornou claro o conceito de populações tradicionais mister para uma efetiva compreensão dos vários dispositivos que utilizam a expressão.

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