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CONCEITOS BÁSICOS: UM EXEMPLO

HIPOTÉTICO

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A pesquisa sobre estratifi cação social é central na sociologia, sendo mui-tas vezes considerada como o principal tema da disciplina. Uma distinção co-mum nesta área é feita entre desigualdade de oportunidades e desigualdade de condições. A primeira tem origens no credo liberal de que as chances de ascensão social das pessoas (seja educacional seja ocupacional) não deveriam estar relacionadas a características herdadas, tais como raça, sexo ou origem de classe. A segunda diz respeito à distribuição de condições de vida, seja na forma de bens escassos (como renda, serviços ou bens de consumo) seja de direitos (como cidadania, educação e emprego). Obviamente essa distinção não é abso-luta, uma vez que algumas características, como educação, poderiam ser clas-sifi cadas das duas maneiras. De qualquer forma, ao tratar de oportunidades a literatura se refere a processos tais como transições educacionais ou transições entre diferentes estágios do ciclo de vida. Um tema privilegiado para o estudo das desigualdades de oportunidades consiste na mobilidade intergeracional, enquanto a pesquisa sobre desigualdade de condições concentra-se em geral em temas como distribuição de renda e riqueza.

Com o objetivo de estudar esses dois tipos de desigualdades sociais, pes-quisadores utilizam descrições e modelos estatísticos que, pelo menos na so-ciologia, estão entre os mais sofi sticados e complexos disponíveis. Neste livro emprego essa metodologia quantitativa para descrever e analisar a estrutura

8. Nesta seção, correndo o risco de imprecisões matemáticas, apresento de forma simplifi cada conceitos complexos da análise estatística de tabelas de mobilidade. Leitores que queiram aprofundar o conhecimento destas técnicas devem consultar os textos de Hout (1983), Sobel (1983), Sobel et alii (1985), Luijkx (1994), Powers e Xie (2000) e Goodman (1984).

de classes e os padrões de mobilidade social no Brasil a fi m de discutir e dialo-gar com as principais teorias de estratifi cação social. Os modelos de que sirvo, principalmente os log-lineares, foram desenvolvidos por estatísticos e mate-máticos em conjunto com sociólogos, o que signifi ca que foram inventados justamente para tratar de problemas sociológicos e permitiram o avanço de novas interpretações teóricas. Ao longo do livro apresentarei esses modelos es-tatísticos (bem como diversos índices descritivos) procurando ser o mais claro possível sobre o seu signifi cado; aqui limito-me a apresentar, por meio de um exemplo hipotético, os principais conceitos subjacentes aos modelos.

Supondo uma sociedade extremamente simples, composta apenas por duas classes: proletários e burgueses, um questionário com perguntas sobre mobilidade social e condições de vida foi respondido em dois momentos (t1 e t2) pelos membros dessa sociedade. Com base nos dois questionários tor-nou-se possível observar mudanças e continuidades não apenas no agregado de condições de vida (1) e de oportunidades de mobilidade social (2), mas também no grau de desigualdades de condições de vida (3) e de oportunidades de mobilidade social (4).

Para entender a diferença entre agregado e desigualdade de condições de vida, recorre-se ao seguinte cenário possível: em t1, proletários tinham acesso a escolas quase tão boas quanto as burguesas, viviam em casas quase tão confortáveis quanto as burguesas e tinham renda apenas um pouquinho menor do que a dos burgueses. Isto é, em t1 há muito pouca desigualdade em termos de condições de vida entre proletários e burgueses. Em t2, todos passam a ter melhores condições de vida, mas, em relação a t1, as condições dos proletários mudaram apenas um pouco, enquanto as dos burgueses mo-difi caram-se muito. A renda média dos proletários aumentou, permitindo que consumissem um pouco mais, porém o conforto das casas e a qualidade das escolas não mudaram. Já a renda dos burgueses aumentou tremendamente en-tre t1 e t2, permitindo que consumissem muitíssimo mais, em vez de morar em casas, os burgueses passaram a morar em mansões e as escolas de seus fi lhos tornaram-se tão boas que garantiam aprendizado de qualidade para todas as crianças, mesmo as mais rebeldes. O que ocorreu nessa sociedade entre t1 e t2 em termos de condições de vida? O agregado de condições de vida melhorou tanto para burgueses quanto para proletários, entretanto, em termos relativos as condições de vida daqueles melhoraram muito mais do que as destes. Em

outras palavras, embora tanto proletários quanto burgueses tenham melhora-do suas condições de vida entre t1 e t2, a desigualdade de condições entre os

dois grupos aumentou tremendamente no período.9 A relação entre agregado

e desigualdade de condições pode ser entendida de forma mais completa, uma vez que exibe causalidade.

Segundo alguns especialistas (BARROS et al., 2000), em casos em que não há escassez de renda (que pode ser vista como um aspecto fundamental das condições de vida), a desigualdade é um dos principais determinantes da pobreza (defi nida como situação de falta de recursos fi nanceiros). Ou seja, nes-ses casos, como por exemplo no Brasil, o aumento agregado das condições de vida via desenvolvimento econômico não é sufi ciente para eliminar a pobreza. Nesse caso, políticas de redistribuição de renda seriam mais efi cientes do que as desenvolvimentistas. Obviamente quando há ao mesmo tempo acréscimo agregado das condições de vida por causa do desenvolvimento econômico e diminuição das desigualdades por meio de políticas de redistribuição, as chan-ces de redução da pobreza mostram-se ainda maiores. Entretanto, desenvolvi-mento não é sinônimo de redistribuição e, portanto, não constitui condição sufi ciente para o fi m da pobreza.

Voltando ao exemplo hipotético para entender a relação entre agrega-do e desigualdade de oportunidades, acho conveniente imaginar agrega-dois cenários possíveis de mudança, apresentados nas Tabelas 1, 2, 3, e 4. O primeiro cenário é o de mudança entre t1 e t2 e o segundo, entre t1 e t2’.

Tabela 1: Mobilidade Intergeracional em T1

Classe de Origem Classe de Destino

Burguesa Proletária Total

Burguesa 17 5 22

Proletária 4 44 48

Total 21 49 70

9. No sétimo capítulo do livro Horizontes do Desejo (2006), Wanderley Guilherme dos Santos apresenta um gráfi co (página 139) que generaliza o que meu exemplo procu-ra mostprocu-rar sobre mudanças no agregado e na desigualdade de condições de vida. No entanto, a parte de meu exemplo sobre agregado e desigualdade de oportunidades não é discutida por Santos (2006).

Tabela 2: Mobilidade Intergeracional em T2

Classe de Origem Classe de Destino

Burguesa Proletária Total

Burguesa 24 3 27

Proletária 10 48 58

Total 34 51 85

Tabela 3: Mobilidade Intergeracional em T2´

Classe de Origem Classe de Destino

Burguesa Proletária Total

Burguesa 19 8 27

Proletária 15 43 58

Total 34 51 85

Tabela 4: Distribuições marginais de classes de origem e destino (efeito estrutural) e mobilidade ascendente (taxas absolutas) e das razões de chances (taxas relativas)

Indicadores T1 T2 T2’

Origem Destino Origem Destino Origem Destino

Burguesa (%) 31 31 33 40 33 40

Proletária (%) 69 69 68 60 68 60

Razão de Chances 37 38 7

Mobilidade

Ascendente (%) 6 12 18

Entre t1 e t2, a sociedade hipotética mudou signifi cativamente em ter-mos de oportunidades de mobilidade social. As chances de indivíduos originá-rios da classe proletária tornarem-se burgueses aumentaram bastante. Em t1, havia 6% de mobilidade ascendente ((4/70) x 100 = 6%), ou seja, 6 em cada 100 fi lhos de proletários tinham chances de integrar o grupo de burgueses. Em

t2, o índice de mobilidade ascendente aumentou para 12% ((10 / 85) x 100 =

burgueses. Em termos agregados, as oportunidades de mobilidade social au-mentaram muito; houve uma mudança signifi cativa, uma vez que as chances de mobilidade ascendente dobraram entre t1 e t2. No entanto, é aritmetica-mente possível que, em termos relativos, a desigualdade de oportunidades de mobilidade social não tenha se alterado signifi cativamente. De fato, o cálculo das razões de chances com os dados das Tabelas 1 e 2 comprova que entre t1 e

t2 praticamente não mudaram as chances relativas de mobilidade social. Em t1,

pessoas com origem na burguesia (cujos pais eram burgueses) tinham chance 37 vezes maior do que aquelas com origem no proletariado de permanecer na burguesia em vez de se integrar ao proletariado ((17 x 44) / (5 x 4) = 37). Em

t2, essa hipótese era 38 vezes maior ((24 x 48) / (10 x 3) = 38).

Em suma, a despeito do considerável aumento da mobilidade social as-cendente, a desigualdade de oportunidades permaneceu praticamente inalte-rada. Nesse exemplo, as maiores oportunidades agregadas de mobilidade social entre t1 e t2 devem-se inteiramente à mudança estrutural, ou seja, é a diferença entre as distribuições de origem e de destino em cada tabela que determina a mobilidade ascendente, uma vez que não se modifi cou a desigualdade de opor-tunidades de mobilidade social. Em outras palavras, a ampliação do número de vagas na burguesia levou ao aumento da mobilidade ascendente; em t1, 31% das posições de destino pertenciam à burguesia ((22/70) x 100 = 31%), ao passo que, em t2, a proporção era de 40% ((34 / 85) x 100 = 40%). A desigual-dade de oportunidesigual-dades não sofreu alteração signifi cativa, na medida em que a vantagem relativa dos fi lhos de burgueses (calculada de acordo com as razões de chances) permaneceu em torno de 37 e 38 vezes maior do que a de fi lhos de proletários.

Outro cenário possível refere-se à mudança entre t1 e t2’, no qual, além da transformação estrutural (aumento de vagas na burguesia), há dimi-nuição na desigualdade de oportunidades. A mudança estrutural entre t1 e t2 e entre t1 e t2’ é exatamente a mesma, ou seja, aumentou de 31% para 40% o número de posições de classe de destino na burguesia. A diferença é que entre

t1 e t2’ também decresceu intensamente a desigualdade de oportunidades.

Enquanto em t1 fi lhos de burgueses tinham chance 37 vezes maior do que fi lhos de proletários de se tornar burgueses, em t2’ essa vantagem relativa decresceu para 7 vezes ((19 x 43) / (15 x 8) = 7). Como conseqüência da menor desigualdade de oportunidades entre t1 e t2’, somando-se a mudança

estrutural, a mobilidade ascendente ampliou-se de 6% para 18%. Em suma, a taxa de mobilidade ascendente é uma função tanto das mudanças estruturais (disparidade entre origem e destino de classes) quanto do nível de desigual-dade de oportunidesigual-dades de mobilidesigual-dade social (representado pelas razões de chances). Entre t1 e t2 houve apenas mudança estrutural e, portanto, um au-mento relativamente menor da mobilidade ascendente do que o observado entre t1 e t2’, porque neste segundo cenário de mudança a desigualdade de oportunidades sofreu retração.

Esses dois cenários exemplifi cam o fato de que o agregado de oportunidades de mobilidade social, que também é conhecido na literatura como “taxa absoluta de mobilidade”, deve ser explicado por dois aspectos distintos e complementares:

• um “efeito estrutural” advindo da mudança entre a distribuição de classe de origem e a de destino, que se encontra nos marginais da ta-bela de mobilidade, e que sempre ocorre quando há industrialização e mudança social;

• outro “efeito da fl uidez social” ou de desigualdade de oportunidades de mobilidade social, que não muda necessariamente com a industria-lização e que é conhecido na literatura como “taxa relativa de mobili-dade social”.

A distinção conceitual entre “efeitos estruturais ou dos marginais” e “efeitos de fl uidez ou de desigualdade de oportunidades” tornou-se possível a partir do uso dos modelos log-lineares, apresentados ao longo deste trabalho, e levou à seguinte concepção esquematizada sobre a mobilidade social:

efeito estrutural + efeito de fl uidez ou taxas relativas = taxas absolutas de mobilidade

Essa imagem de dois efeitos sobre a mobilidade observada ou taxas ab-solutas mostra que o fenômeno só pode ser entendido com a observação tanto das mudanças estruturais que ocorrem ao longo do tempo na sociedade quan-to das fl utuações nos níveis de desigualdade de oportunidades. Ao contrário do que imaginavam estudiosos da mobilidade social até meados dos anos 1970, não há dois tipos de mobilidade – um estrutural e outro de circulação (com di-ferenças explicitadas no Capítulo 3) –, mas apenas um tipo que se expressa nas

taxas absolutas. Estas, por sua vez, são determinadas por mudanças estruturais (efeitos estruturais) e pelos níveis de desigualdade de oportunidades (efeitos de fl uidez ou taxas relativas).

Tais exemplos mostram que o estudo das desigualdades de oportuni-dades é fundamental para entender os níveis agregados de mobilidade social. Além disso, há um interesse intrínseco aos patamares de desigualdade de opor-tunidades (nas taxas relativas), uma vez que permitem verifi car em que medida a sociedade é mais ou menos justa. Se há muita desigualdade de oportunida-des, pessoas originárias de algumas classes sociais têm vantagens relativas de mobilidade social em relação a outras com origens em outras classes, ou seja, as oportunidades não se distribuem eqüitativamente. Ao contrário do que ocorre em sociedades aristocráticas, a desigualdade de oportunidades é considerada injusta em regimes democráticos.

No que se refere à desigualdade de condições e à de oportunidades, como mencionei anteriormente, do ponto de vista puramente lógico não há relação necessária entre elas, embora teorias distintas façam previsões sobre essa associação. Segundo a perspectiva dos incentivos, quando há de-sigualdade de condições há mobilidade social. Ou seja, o fato de existir desigualdade de condições “incentiva” a competição entre os indivíduos, que se empenham ao máximo para alcançar posições privilegiadas, contri-buindo assim para a diminuição da desigualdade de oportunidades e para o aumento da mobilidade intergeracional. Se a desigualdade de condições é pequena, os indivíduos não têm motivação para mudar de posição de classe, uma vez que em qualquer posição terão condições de vida mais ou menos semelhantes. Conseqüentemente, há pouca mobilidade social. De forma oposta, a perspectiva dos recursos enfatiza que a distribuição desi-gual de condições de vida favorece os indivíduos com origens em classes privilegiadas, os quais dispõem de chances muito melhores de mobilida-de do que aqueles originários mobilida-de classes mobilida-desprivilegiadas. Quanto maior a desigualdade de condições, maior a desigualdade de oportunidades e, conseqüentemente, menor a mobilidade intergeracional. Para avaliar a ve-racidade das duas perspectivas teóricas e explicar o que ocorreu no Brasil, torna-se necessário utilizar os conceitos que acabo de apresentar para ana-lisar os dados disponíveis.Felizmente há dados de excelente qualidade para o país.