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CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Com o objetivo de mensurar o grau de dependência entre origens so-ciais e classes de destino e descrever os padrões gerais de mobilidade social, sociólogos na área de estratifi cação social fazem uso de métodos estatísticos que talvez sejam os mais sofi sticados disponíveis na disciplina. Críticos dessa sofi sticação metodológica costumam dizer que estudos na área de estratifi -cação são guiados pela técnica e excessivamente empíricos (MILLER, 1998). Esta última crítica parece ser, em alguma medida, verdadeira, uma vez que os avanços teóricos na área de estratifi cação têm sido muito lentos. Por exem-plo, diversos estudos sobre mobilidade social continuam a criticar a antiga teoria da modernização (apresentada anteriormente), segundo a qual o de-senvolvimento econômico levaria a sociedades mais justas e menos desiguais. Essa teoria, embora tenha sido refutada pela maioria dos estudos, continua a ser foco de discussão e debate. Recentemente, no entanto, alguns desenvol-vimentos teóricos baseados na aplicação de teorias da ação racional (BLOS-SFELD; PREIN, 1998), de análises de redes sociais (TILLY, 1998; LIN, 2001) e de certos tipos de institucionalismo (MULLER; SHAVIT, 1998) vêm sendo propostos e provavelmente levarão a uma renovação teórica nos estudos de estratifi cação social. A principal característica dessa renovação é, justamen-te, o fato de vir acompanhada do avanço de técnicas estatísticas e analíticas sofi sticadas. Portanto, o avanço teórico na área de estratifi cação social está intrinsecamente relacionado, ao invés de descolado, ao desenvolvimento de técnicas analíticas sofi sticadas.

Talvez o principal exemplo da renovação teórica relacionada aos avan-ços técnicos seja o proporcionado pelo uso de modelos log-lineares para

estudar as tabelas de mobilidade social.42 Antes do advento dos modelos

log-lineares, os estudiosos dividiam o fenômeno em dois tipos: mobilidade estrutural e mobilidade de circulação. Esta era vista como a mobilidade total menos a estrutural. Esta última, por sua vez, é comum em tabelas de mobili-dade em que as distribuições de origem e destino de classe nunca são iguais,

42. Para uma discussão sobre a importância da análise sociológica para o avanço de me-todologias estatísticas, inclusive o modelo log-linear, ver o texto de Clifford Clogg (1992).

o que causa sempre algum movimento que é, por assim dizer, “forçado” por essa diferença entre as duas distribuições. Enquanto algumas classes de ori-gem estão diminuindo, outras de destino estão aumentando, o que leva obri-gatoriamente a mobilidade, que é chamada de estrutural por ser provocada pela mudança entre a geração dos pais e a dos fi lhos na estrutura de classes

ou ocupacional.43 Diante de tal constatação, os estudiosos simplesmente

di-minuíam do total de mobilidade aquela que era conseqüência da disparidade entre a distribuição de classes de origem e de destino. Essa perspectiva segue a idéia esquematizada de que: “mobilidade total – mobilidade estrutural = mobilidade de circulação”. A “mobilidade de circulação”, utilizada como uma medida da desigualdade de oportunidades, é na realidade uma espécie de resíduo.

Este tipo de abordagem, como argumenta Goldthorpe (2000, p. 231), não levou a resultados satisfatórios. Há sérios problemas conceituais, uma vez que a tentativa de dividir a mobilidade total em dois componentes (estrutural e de circulação) só podia ser feita no nível supra-individual, ou macrossocial, sem levar em conta que a tabela de mobilidade é composta por casos individuais. Em outras palavras, não é possível dividir a mobilidade de um mesmo indivíduo entre estrutural e de circulação. Cada pessoa experimenta apenas um tipo de mobilidade intergeracional entre a classe de origem e de destino. Além disso, há sérios problemas metodológicos na mensuração da “mobilidade estrutural”, que não leva em conta a existência de associação estatística entre certos pares de categorias de classe de origem e destino que implica um maior fl uxo de mobilidade. Sobel (1983) mostrou defi nitivamente que os cálculos diminuindo a mobilidade estrutural da total podem levar a conclusões completamente errôneas e, portanto, deveriam ser abandonados pela literatura sociológica.

43. Em importante artigo, Duncan (1966) demonstra que a distribuição ocupacional de origem não representa uma geração anterior, porque não há uma amostra de pais e sim a indicação de qual a ocupação do pai dos respondentes. Alguns pais, como por exemplo os agricultores, têm mais chances de estarem representados pelo simples fato de que têm mais fi lhos em média, além disso, alguns pais também estão repre-sentados na distribuição de fi lhos. Por exemplo, um homem de 60 anos que tenha um fi lho de 30 anos está representado tanto na distribuição de pais (origem) quanto na de fi lhos (destino).

Essas limitações conceituais e metodológicas no estudo das tabelas de mobilidade só foram superadas a partir do uso de modelos log-lineares. Utili-zando tais modelos, Featherman, Jones e Hauser (1975) e Goldthorpe, Erick-son e Portocarrero (1979) abandonaram a distinção entre mobilidade estrutu-ral e de circulação, e passaram a utilizar as idéias de taxas absolutas e relativas de mobilidade. Como expliquei na introdução deste livro, as taxas absolutas são obtidas a partir de diversos cálculos porcentuais normalmente utilizados para analisar tabelas cruzadas, enquanto as taxas relativas são expressas pelas razões de chances que defi nem a associação estatística entre classes de origem e de destino e são o elemento básico dos modelos log-lineares. As taxas absolutas expressam o total de oportunidades de mobilidade social e as relativas, a desi-gualdade de oportunidades de mobilidade social.

Os modelos log-lineares permitiram, portanto, analisar as tabelas de mobilidade de forma muito mais coerente do que anteriormente. Como afirma Goldthorpe (2000, p. 232), esses modelos permitiram “separar o impacto nas taxas absolutas, ou em mudanças ou diferenças em taxas ab-solutas, entre ‘efeitos estruturais’ ou da distribuição marginal, por um lado, e efeitos das taxas relativas ou ‘fluidez social’, por outro lado”. Em outras palavras, não há dois tipos de mobilidade, um estrutural e outro de circu-lação, mas apenas uma mobilidade, aquela observada nas taxas absolutas. Mas há dois efeitos sobre essa mobilidade observada nas taxas absolutas: um “estrutural”, conseqüência da disparidade entre distribuições de origem e destino (os marginais da tabela de mobilidade), e outro derivado da as-sociação líquida entre origem e destino de classe (da fluidez social ou taxas relativas de mobilidade).

Além de constituírem a base para a maior precisão conceitual dos padrões de mobilidade social, os modelos log-lineares contribuíram para o avanço de algumas novas proposições teóricas na área de estratifi cação social justamente porque mostraram uma clara distinção entre efeitos estruturais e efeitos de fl uidez social sobre a mobilidade social. A distinção entre dois tipos de efeito (que não são dois tipos de mobilidade) permitiu que alguns soció-logos percebessem que o efeito “estrutural” deve ser explicado predominan-temente por características da história do desenvolvimento econômico de cada sociedade; e são, portanto, contingentes variando de país para país ou de um período para o outro na mesma nação. Por sua vez, as taxas relativas,

ou fl uidez social, parecem seguir padrões muito semelhantes e recorrentes em diversos períodos históricos e sociedades industriais. Esse fato deve ser explicado não por particularidades históricas, mas sim por meio de uma te-oria mais geral que seja capaz de explicitar algumas características comuns a diversas sociedades.

Recentemente, diversos estudiosos da mobilidade social têm recorrido à teoria da ação racional para explicar teoricamente algumas das regularidades encontradas nos padrões de desigualdade de oportunidades, ou fl uidez social, em diversas sociedades industriais (GOLDTHORPE, 2000). Em suma, os no-vos conceitos sobre os efeitos na mobilidade social que só foram formulados por causa do uso dos modelos log-lineares possibilitaram tanto a observação de regularidades nos padrões de fl uidez quanto a proposição de modelos teóri-cos especialmente desenhados para explicar tais características.

Embora alguns poucos estudos brasileiros sobre mobilidade social te-nham usado modelos log-lineares, quase todos continuam a utilizar a distinção entre “mobilidade estrutural” e “de circulação” sem perceber os graves erros

metodológicos e conceituais implícitos.44