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M OBILIDADE SOCIAL , MUDANÇAS

ESTRUTURAIS E DESIGUALDADE

DE OPORTUNIDADES

As sociedades podem ser consideradas abertas ou fechadas, justas ou injustas, na medida em que vantagens e desvantagens são transmitidas de pais para fi lhos ao longo das gerações. Em uma sociedade justa e aberta, a posição de classe e o sucesso ocupacional dos indivíduos independe do fato de terem crescido em famílias com condições sociais e econômicas vantajosas ou des-vantajosas. Em sociedades fechadas e injustas, as posições sociais dos pais, boas ou más, são diretamente herdadas pelos fi lhos. Antes do advento da sociedade moderna, as posições sociais dos indivíduos eram quase totalmente determina-das por suas origens sociais. Filhos de escravos seriam obrigatoriamente escra-vos, e fi lhos de nobres permaneceriam nobres. Uma das principais ideologias da sociedade moderna é a de que os indivíduos não devem herdar suas posi-ções sociais diretamente, mas sim garantir seu lugar por meio de suas capaci-dades e de esforços próprios. Pessoas com origens em classes menos favoreci-das procuram subir na vida e, quando não conseguem, muitas vezes atribuem seu insucesso a sua origem social. Em contrapartida, muitos fi lhos das classes mais altas, mantendo-se nas posições sociais de prestígio, procuram afi rmar em alguma medida que sua condição se deve aos seus próprios méritos.

Embora a ideologia dos méritos próprios seja forte e presente em di-versos discursos sobre a sociedade moderna, todos os estudos de mobilidade social desenvolvidos até hoje mostram que as posições de classe e ocupacionais das pessoas são fortemente determinadas por suas origens sociais. Pessoas

cres-cendo em famílias com mais recursos tendem a ter maiores chances de ascen-são social do que aquelas provenientes de famílias mais pobres. Os estudos de mobilidade social, no entanto, não se limitam a dizer que o destino de classe das pessoas depende de suas origens. O objetivo das investigações é medir o grau de abertura por meio da quantifi cação da associação entre origens de classe e destinos de classe. O valor numérico dessa associação é utilizado ora para classifi car as sociedades num continuum entre fechadas e abertas, menos e mais justas, ora para descrever a evolução da distribuição de vantagens e des-vantagens em uma sociedade ao longo dos anos.

Ao perseguir esse objetivo, estudos de mobilidade empenham-se em descrever a estrutura e a desigualdade de oportunidades existentes em cada sociedade. O advento da sociedade industrial sempre vem acompanhado da expansão de oportunidades. Algumas ocupações surgem e crescem, enquanto outras vão se tornando mais raras. Esse tipo de transformação cria, geralmente, muitas oportunidades de mobilidade social, uma vez que o número de posições ocupacionais nos setores da indústria e dos serviços cresce, e ao mesmo tempo diminui no setor rural. A industrialização sempre vem acompanhada de um acréscimo agregado de oportunidades de mobilidade social, mas isso não signifi ca que haja necessariamente uma redução na desigualdade de oportunidades de mobilidade social. Esse tipo de desigualdade, como mostro adiante, é mensurado pelas chances relativas de pessoas com origens em diferentes classes sociais alcançarem posições de classe semelhantes em sua vida adulta. Em sociedades justas há pouca desigualdade de oportunidades ou idealmente nenhuma.

Não há dúvida de que a industrialização sempre aumenta as oportunida-des agregadas de mobilidade social, uma vez que em todas as sociedaoportunida-des que pas-saram por essa transformação houve tal aumento. No entanto, na literatura de ciências sociais não há consenso sobre qual seria o impacto da industrialização sobre a desigualdade de oportunidades. Em sua teoria funcionalista, o sociólogo norte-americano Talcott Parsons defende que a industrialização e a moderniza-ção levam a uma substituimoderniza-ção de valores particularistas por valores universalistas. Sempre que posições sociais são ocupadas somente porque as pessoas pertencem a determinados grupos de classe, raça, gênero, nacionalidade, região, etc., valores particularistas estão determinando a alocação de pessoas às posições sociais. Os pré-requisitos técnicos e científi cos do funcionamento das sociedades

indus-triais exigiriam a designação de pessoas a posições puramente com base em qualifi cações e talentos; os valores universalistas dominariam a atribuição a posições sociais privilegiadas ou não. Quem merece, porque tem o conhe-cimento e a habilidade necessários, seria alocado à posição ocupacional ou social em que melhor se ajusta. Características particulares, tais como raça ou classe de origem, não teriam a menor importância no processo de alocação de pessoas a posições sociais. Essa transformação, de uma sociedade parti-cularista e tradicional para outra universalista e moderna, estaria, segundo Parsons, no cerne da expansão da sociedade industrial. Conseqüentemente, a industrialização levaria a uma diminuição drástica da desigualdade de opor-tunidades de mobilidade social. Essa perspectiva sobre a sociedade moder-na é compartilhada por muitos economistas e sociólogos (PARSONS, 1954, 1970; KERR et al., 1960, 1983; DAVIS; MOORE, 1945). Para um resumo e uma proposição diretamente ligados aos estudos de mobilidade, ver o traba-lho de Donald Treiman (1970).

Em oposição a essa teoria da modernização, diversos sociólogos desenvolveram, a partir das décadas de 1960 e 1970, teorias de classe com o objetivo de criticar as previsões de que a industrialização levaria à diminuição da desigualdade de oportunidades. O alemão Ralph Dahrendorf (1959), por exemplo, sugere que a industrialização cria novas clivagens de classe que permanecem presentes e determinando chances desiguais de mobilidade na sociedade moderna. No Brasil, Florestan Fernandes (1968) também compartilha da idéia de que as clivagens de classes serão fundamentais na determinação das desigualdades de oportunidades. Nos estudos de mobilidade, sociólogos ligados à perspectiva da “estrutura de classes” defendem que certas barreiras à mobilidade social permanecem inalteradas nas sociedades industriais. John Goldthorpe (2000), por exemplo, defende que a desigualdade de oportunidades de mobilidade social segue um padrão semelhante em diversas sociedades industriais e raramente diminui ao longo do processo de industrialização. No Capítulo 6 deste livro discutirei diretamente as hipóteses de Goldthorpe sobre um padrão comum de desigualdade de oportunidades em sociedades industriais. Por ora, gostaria de enfatizar que há diversas teorias de classe argumentando que a diminuição da desigualdade de oportunidades depende de políticas de equalização e não pura e simplesmente da industrialização e modernização da sociedade (ERICKSON; JONSSON, 1996). Ou seja, políticas redistributivas e

de equalização de chances são mais importantes do que o desenvolvimento econômico para que haja redução das desigualdades.

A igualdade de oportunidades deveria ser um valor central das socie-dades democráticas modernas. Desigualsocie-dades de condições sempre existem em qualquer sociedade e podem, inclusive, ser eticamente justifi cáveis. Por exemplo, ocupações que requerem muito esforço e estudo e que implicam em grandes responsabilidades devem ter remuneração elevada, ao passo que aquelas que não exigem qualifi cação e responsabilidade podem ter gratifi ca-ções menores. Ninguém acha estranho o fato de médicos terem salários mais altos do que os de recepcionistas, embora esse simples fato implique em certa desigualdade de renda (ou de condições). Mas em sociedades democráticas, fi lhos de médicos e de recepcionistas deveriam ter chances iguais de se tornar médico ou profi ssional. Em outras palavras, a desigualdade de oportunidades de mobilidade social não pode ser justifi cada com base em termos aceitáveis na ideologia da sociedade moderna. A igualdade de oportunidades, portanto, constitui um valor fundamental da sociedade moderna e pode ser usado para determinar em que medida uma sociedade é justa ou injusta.

Além de descrever mudanças e continuidades na estrutura e na desigualdade de oportunidades de mobilidade social, pretendo, neste capítulo, analisar os efeitos tanto das mudanças estruturais quanto da fl uidez social, ou desigualdade de oportunidades, sobre os níveis de mobilidade social observados. A quantidade de mobilidade ascendente e descendente observada em uma determinada sociedade é uma conseqüência de dois efeitos, um relacionado às mudanças estruturais que ocorrem entre as gerações (esse efeito expressa-se na disparidade entre as distribuições de origens e destinos de classe) e outro determinado pelo grau de associação estatística entre classes de origem e de destino, ou seja, pela fl uidez social ou desigualdade de oportunidades. Esses dois efeitos são os principais componentes que determinam o total de mobilidade social observado em uma determinada sociedade. A tarefa deste capítulo é analisar a mudança desses efeitos sobre a mobilidade ascendente e descendente entre 1973 e 1996 no Brasil. Minhas análises indicam que aumentou a mobilidade descendente, determinada por uma diminuição do impacto das mudanças estruturais (ou da “mobilidade estrutural”), mas paralelamente ampliou-se a “fl uidez social”, ou reduziu-se a desigualdade de oportunidades. Portanto, as características da mobilidade social no Brasil estão se modifi cando

e a menor mobilidade ascendente não pode simplesmente ser considerada negativa, pelo contrário, a sociedade parece se tornar mais competitiva. Ou seja, a disputa entre pessoas com origens em classes menos e mais privilegiadas para ocupar as posições de maior prestígio está aumentando.

Diante de tais constatações, parto para a análise do efeito da expansão do sistema educacional sobre a diminuição da desigualdade de oportunidades. Mostro que o principal efeito é o de composição, não o de equalização. Ou seja, continua havendo vantagens de classe no acesso a níveis educacionais mais elevados, mas esses níveis se expandiram, o que contribuiu para aumentar o número de pessoas com educação secundária ou superior. Não há diminuição da desigualdade de oportunidades educacionais, mas expansão desse agrega-do de oportunidades. Esse fenômeno levou ao decréscimo da desigualdade de chances de mobilidade social.

Como enfatizei anteriormente, o principal objetivo deste capítulo é fazer um balanço da expansão de oportunidades de mobilidade social que ocorreu no Brasil entre 1973 e 1996, por um lado, e analisar as desigualdades de oportunidades de mobilidade social no mesmo período, por outro lado. Para implementar tal tipo de análise utilizo a teoria e a metodologia modernas dos estudos de mobilidade social. Essa perspectiva teórico-metodológica moderna é baseada em análises estatísticas sofi sticadas, principalmente nos modelos log-lineares, e foi utilizada apenas em alguns poucos estudos sobre mobilidade social no Brasil (SILVA; RODITI, 1988; SILVA, 2004; PASTORE; SILVA, 2000; SCALON, 1999; COSTA RIBEIRO; SCALON, 2001; COSTA RIBEIRO, 2003). Na próxima seção, explico os fundamentos dessa perspectiva e porque é fundamental adotá-la para analisar corretamente os padrões de expansão de oportunidades de mobilidade social bem como de desigualdade de oportunidades. Em seguida, apresento criticamente a literatura brasileira sobre mobilidade social e mostro os avanços e correções que minha perspectiva visa alcançar. Nas duas próximas seções, portanto, delineio e defi no os principais problemas relacionados ao estudo da mobilidade social no Brasil, bem como os objetivos e vantagens da perspectiva que adoto. Parto, nas outras seções, para as análises empíricas sobre as mudanças: na estrutura de classes, na mobilidade ascendente e descendente, nos padrões de oferta e demanda de mão-de-obra, nas taxas relativas de mobilidade social e no papel desempenhado pela educação no processo de mobilidade social.