À medida que se numerizam, as técnicas interpõem, efetivamente, entre a ferramenta e a matéria bruta, alguma coisa que não existe na relação tradicional: a tela de linguagem.91
Antes de começar a análise detalhada das interfaces gráficas dos softwares aqui
discutidos, cumpre esclarecer alguns pontos em relação à questão da interface. Pois a
interface compreende muito mais que sua apresentação na tela do monitor de computador.
Ela é o meio de comunicação entre o computador e o usuário. Utilizo aqui o conceito de
Lev Manovich de IHC (interface humano-computador), que diz:
A IHC inclui dispositivos de entrada e saída (input e output) como um monitor, teclado e mouse. Ele também consiste na metáfora usada para conceitualizar a organização dos dados do computador. (…) Finalmente, a IHC também inclui os modos de manipulação desses dados, isto é, uma gramática de ações significantes que o usuário pode executar nele.92
Os programas em questão envolvem uma série de dispositivos externos (periféricos)
além do mouse, do monitor e do teclado QWERTY, como câmeras DV, joystick, tablet,
teclado MIDI, gravador de CD/DVD, entre outros.
O que parece ocorrer é que no seu uso mais geral (senso comum), toma-se a metáfora
pela coisa em si, toda a interface pela sua apresentação visual, pelo seu layout. Quando se
fala em interface, a maioria das pessoas (os usuários não especializados) associa o
conceito à aparência do programa, sua apresentação na tela do computador. O Word tem a
aparência de processador de texto, o Photoshop tem a aparência de um laboratório de
fotografia combinado a ateliê de pintura (não é por acaso que a “versão” do Photoshop da
Corel chama-se justamente “Corel Photo-painter”). É a confusão conceitual em torno das
noções de interface e superfície de que nos fala Giselle Beiguelman em sua obra O livro
91 COUCHOT, Op. Cit., p. 194. 92 MANOVICH, Op. Cit, p. 69.
depois do livro.93
Tal confusão talvez ocorra por ser o monitor o dispositivo de saída mais
utilizado (o principal) na ICH. Sem sombra de dúvida, a maior parte das informações que
recebemos do computador vem de sua tela. Mesmo quando usamos aplicativos em que a
mídia principal não é visual, como por exemplo programas de processamento e edição de
áudio (Logic, Pro Tools, GarageBand, Soundforge), a interface gráfica é essencial para o
usuário “dizer” ao computador o que ele quer, e o computador, por sua vez, mostrar a
resposta. Nos programas em questão podemos visualizar a onda de áudio. Assim,
podemos não só ouvir o resultado como também vê-lo (ao aumentar o volume do som, o
ouvimos mais alto e também vemos a onda “crescer”, alongando-se verticalmente).
Assim, a interface não é simplesmente o layout da interface. De que maneira a
interface determina o uso do programa, afeta o resultado, seu produto final, e nos dá uma
visão de mundo? A interface é mídia ou meio de comunicação?
No entanto, não se pode omitir o forte componente visual da interface. Situação
peculiar: a natureza visual da interface é a mesma da mídia que é manipulada através dela
(no caso o vídeo digital), que em última instância é o pixel – a menor parte de uma imagem
numérica, seu átomo. Essa unidade, de formato quadrado, possui a informação que
determina sua cor e sua posição na tela do monitor. Quer dizer, manipulamos imagens
através de outras imagens. Onde estão os limites, as fronteiras entre a ferramenta
(interface/software) e a matéria-prima, a mídia digital? Veremos como essa questão é
respondida pelos dois programas analisados.
Será necessário aqui nos determos nas especificidades dos meios digitais,
precisamente sobre a imagem numérica. Começarei atentando para as especificidades da
imagem numérica (digital), em especial quando esta se torna interface, deixando de ter uma
função exclusivamente contemplativa e incorporando uma função executável.
Um dos grandes diferenciais entre a imagem digital e os meios que a precederam é
sua capacidade manipulativa (operativa) e, por conseqüência, a transformação do público
contemplativo em público executor: o usuário que pode interferir, e assim participar da
criação, na obra. Na verdade esta é uma característica definidora da imagem digital, assim
como seu enorme potencial de compartilhamento sem perda (o original de segunda
geração). Com a imagem digital, o antigo espectador e atual usuário tem o poder de
manipular seus atributos:
Trata-se de usar e abusar daquilo que confere especificidade à imagem digital: sua possibilidade de ser mapeável, transformando-se em imagem-interface, recuperando procedimentos e atualizando a linguagem e os códigos visuais no contexto híbrido da Internet.94
A interface gráfica do Final Cut Pro
fig. 19 –print screen interface FC
Baseado em sistemas já consagrados de edição não-linear, o FC pode ser considerado
um dos últimos rebentos do que ficou conhecido como desktop vídeo. Como dito no
primeiro capítulo, o desktop vídeo surgiu com o lançamento do QuickTime da Apple, mas
só se popularizou com o fenômeno Avid através dos PCs.
94 BEIGUELMAN, G. “Olhos Mudos”.
A interface gráfica do FC possui basicamente os mesmos elementos (janelas) da
interface do Media Composer criado pela Avid.
São quatro as janelas principais:
• Viewer (1) – Monitor fonte.
• Canvas (2) - Monitor de gravação.
• Timeline (3) - Camadas de vídeos e trilhas de áudio ao longo de um eixo de tempo.
•Browser(4)- Informações de projeto (mídias e efeitos).
Lev Manovich apresenta a idéia de interface como um painel (membrana) virtual:
As interfaces culturais abalam o conceito de superfície que se encontra na pintura, fotografia, cinema e uma página impressa como algo para ser visto, espiado, lido, mas sempre com alguma distância, sem interferir no conceito da superfície de uma interface de computador como um painel de controle virtual, similar a um painel de controle de um carro, avião ou outra máquina complexa.95
Há várias opções de layout de interface para um ou dois monitores RGB. É possível
ainda gravar uma nova disposição em dois layouts customizáveis. As quatro janelas
principais são multifuncionais, com várias abas para acessar painéis diferentes. Clicando
na aba, mudamos o conteúdo da janela; arrastando as abas, criamos janelas separadas. Nas
janelas 1 e 2, além dos monitores, encontramos botões e ferramentas dos controles básicos
e marcações de pontos de corte dos clipes originais e seqüências editadas. O Canvas e o
Timeline espelham um ao outro. Na janela do Browser temos uma aba para acessar filtros,
transições, caracteres e gráficos.
Percebem-se elementos da metáfora da moviola: a ferramenta da lâmina de barbear
(para “cortar, picar, desbastar”) um trecho de vídeo, a timeline com suas trilhas, sendo a
metáfora linear da película como possibilidade de visualizar os frames e a onda de áudio,
com um uso não-linear.
A metáfora da moviola também está presente nos botões “3D” de avanço e
retrocesso, marcador, etc. O detalhe do aço escovado (estilo Mac OSX) mistura elementos
da moviola com os de outras mídias, como o botão “pena”, lente ou crop. Também possui
um leve dégradé para dar uma certa tridimensionalidade. O FC conta com uma enorme
versatilidade no ajuste de suas janelas (mas sempre mantendo seis: viewer, canvas,
browser, etc). O poder de transporte das mídias entre as janelas também é digno de
destaque em relação a seus precedentes (Adobe Premiere e outros). Temos um browser,
que, assim como os desktops dos sistemas operacionais, contém arquivos e pastas (estas
muitas vezes são “bins” – a caixa da moviola). Podemos clicar ou arrastar essas mídias
para visualizadores ou para a timeline e vice-versa. E da timeline para o visualizador e
vice-versa. É possível modificar, renderizar e arquivar numa pasta para uso posterior.
Um dos itens mais otimizados que o FC permitiu foi a possibilidade de pegarmos
uma seqüência inteira de timeline (que também fica no browser) e colocarmos em outra
timeline, como um clipe. Ao invés de abrir o menu contextual “File” para abrir um arquivo
já renderizado, “puxamos" diretamente do browser. No Final Cut, a sensação é de que
tudo está mais acessível. Podemos também fazer a mesma coisa com os filtros. Outro
diferencial do programa é seu sistema de abas, com clara vinculação ao sistema tradicional
de fichas de arquivo. Na mesma janela podemos alterar as seqüências, as propriedades de
uma mídia ou o próprio diretório de arquivos (o projeto). Tem estilo clean, em tons de
cinza, mas é um programa complexo e com muitos recursos.
A interface do KW - o Patcher e o Realizer
Já foi dito que o KW é um software original, híbrido, e que sua interface gráfica
também é extremamente inovadora. Itens comuns com outros softwares são os menus
contextuais: “File”, “Edit”, “Options" e “Help”. O diferencial aqui está no quinto menu, o
“Network”, que serve justamente para configurar os parâmetros das conexões entre os
três aplicativos. Curioso é que no menu “Edit” não existe as opções Cortar e Colar (cut e
estranhamento parece ser a reação geral ao se deparar com o KW pela primeira vez. O
layout da interface foge de qualquer representação convencional comum na maioria dos
designs de interfaces de softwares. Botões, janelas, menus contextuais não deixam de
existir, mas por vezes estão tão alterados, tão tensionados, que no mínimo criam um
questionamento desses paradigmas. Ao ver pela primeira vez a tela do Patcher,96 a
associação com os cenários de H. R. Gigger para o filme Alien, o oitavo passageiro é uma
das relações possíveis que nos vêm à mente.
O Patcher e o Realizer funcionam concomitantemente na máquina, alternando-se a
tela com a tecla “esc”, mas também funcionam em separado.
fig. 20 – print screen da interface do Patcher
96 Patch em inglês que dizer remendo, mancha, atadura, embutimento; (informática) conserto
de um defeito no programa que acrescenta ou modifica somente uma pequena parte do mesmo.
No Patcher há uma interface como representação intencionalmente em 2D. Não há
aqui qualquer indício do “painel de controle virtual” que Manovich observou, e que se
encontra no FC. Aqui, a cor cinza não tem sua onipresença característica. Sobre um fundo
preto (ao mesmo tempo neutro e etéreo) desenha-se um simples mas elegante grid em uma
fina linha branca. Essa grade divide a tela em oito retângulos (alguns não se fecham), nos
quais iremos posicionar, mover, deletar e configurar parâmetros dos elementos ou
módulos que compõem o programa. Esses módulos se dividem em três categorias e dez
subcategorias: duas categorias são representadas por hexágonos e uma terceira por
quadrados a 45º: os Alteradores (chamados Modifiers). É nessa área que a performance é
construída.
A Patch Screen (ou Patcher) é apresentada no manual do programa como aplicativo
de edição. É significativo o uso da expressão, pois seria o KW um software de edição de
mídias? Se for, que tipo de edição é essa, em que não há timeline e não é dada uma
visualização pelo programa? Essa questão será discutida adiante.
Esse aplicativo de edição gera um arquivo (file) análogo ao arquivo de projeto do FC,
o “.prj”. Esse arquivo, o “patch” (atualmente .kwp), é leve em questão de bytes, como o
.prj. E da mesma maneira que o .prj é uma EDL (uma série de instruções sobre a posição,
corte, transições das mídias na timeline), o .kwp também possui uma série de instruções
Os módulos
fig. 21- os módulos
Os módulos constituem elementos chaves do Patcher. Representam não só todos os
tipos de mídia (banco de dados), como também os dispositivos de entrada, geradores de
dados (p. ex., Oscillator) e a saída das mídias alteradas/manipuladas, os renders
audiovisuais.
No manual eles são chamados de building blocks (blocos de construção) de uma
sessão ou patch. Outra definição: “Nome comum de uma entidade funcional que realiza
uma atividade multimídia especializada”.
fig 22- estados e tipos de módulos
Módulo é o elemento chave da Patch Screen e se apresenta como um hexágono.
Variando sua cor, ícone interno e estado (ligado, desligado, etc), o módulo representa
todos os componentes do programa em suas duas categorias (entradas, saídas,
renders/processados). A cor varia segundo a categoria e o usuário, no caso de sessão com
vários usuários. O hexágono representa as mídias (entradas/saídas). Uma terceira categoria
é a dos Modifiers, representados por quadrados a 45º (na edit screen).
O atributo de cada um pode ser acessado e modificado clicando-se no objeto hexagonal correspondente, o qual mostra seu parâmetro corrente na janela “info”, localizada na
área central inferior da tela do Patcher. Círculos vazios (soquetes vazios) à esquerda de cada parâmetro indicam que alguma coisa pode ser conectada, enquanto o círculo preenchido significa um dado que pode ser conectado a outra coisa. Um duplo clique n o hexágono (do mouse, p. ex.) ou arrastá-lo para o centro da tela, o fará desenrolar-se em uma espiral. As bolas (data balls) da espiral podem ser clicadas ou arrastadas para qualquer círculo vazio para fazer uma conexão.97
No KW, a interface do Patcher é formada por oito retângulos que correspondem a
determinados “campos”. Soma-se a esses elementos a barra de menu, que é formada por
treze menus pull-down (menu contextuais): File, Edit, Options, Network e Help, mais ou
menos familiares aos usuários de outros softwares, sendo os demais analisados a seguir.
fig. 23 – campos do patcher
Os três campos à esquerda são os dos elementos de “entrada”, os inputs. Nos dois
campos da direita estão os Renderers, as “saídas”. No centro inferior à esquerda fica o
Info Field, onde aparecem as informações sobre os parâmetros do módulo selecionado em
modo alfanumérico. No Info Field o usuário do software pode não apenas ler a informação
como também alterá-la, através da digitação ou seleção de menus contextuais via mouse.
97
No centro inferior direito ficam os Modifiers, os alteradores, os processadores. Por fim, no
centro superior, o maior retângulo da interface é a “tela de edição”, onde são feitas as
conexões entre os módulos.
Pela forma como a interface aloca os elementos de entradas e saídas, o modo como
os elementos podem se interconectar e interferir mutuamente e o desenho desses
elementos, a metáfora que parece ser sugerida é a do “circuito elétrico”, um sistema.
Embora esse alto grau de interação de elementos (dispositivos, algoritmos e usuários), de
variáveis e, por conseguinte, de controle mais oblíquo, configure uma situação
extremamente mais complexa do que a que se dá na relação do usuário com o FC, o KW
tem uma interface mais simples. Não há, como no FC, uma série de botões, painéis e
menus que se abrem em submenus. Sua interface é despojada e formada de elementos
simples (os módulos), mas que têm um alto grau de interconexões, gerando um sistema
complexo de ações imprevisíveis.
Os módulos de input (entradas)
fig. 24 – módulos de entrada
As entradas do KW compreendem três tipos : Live input, Generator inputs, Library
File inputs.
• Entradas ao vivo (live inputs): Mouse, Keyboard (teclado), Videocamera, Sound
Input, Joystick e Midi.
Módulos geradores
A biblioteca dos geradores fornece uma série de funções automatizadas de controle
temporal ou de disparo. Estes incluem Baixa Freqüência e Osciladores de Áudio, Pulso,
Módulos da Biblioteca de Arquivos
Arquivos de mídias compartilhados da Biblioteca de Arquivos, que incluem texto
preparado e digitado (live), áudio (aiff), filmes no formato QuickTime e QuickTime
streams, pastas multifilme e multiimagem, imagens digitalizadas (.jpeg e .pict) e webcam
(de uma URL pedida). Todas as mídias devem estar na pasta “Media”, que fica no mesmo
diretório do Realizer.
Os modificadores
fig 25. – módulos modificadores
Área na tela do Patch para os módulos Matemático, Lógico, Análise e DSP (digital
signal processor – processador de sinal digital). O módulo dos modifiers trabalha como
filtro ou modulador e é categorizado de acordo com a função matemática, lógica, análise e
DSP. Um fluxo de dados (datastreams) ou outro sinal de propriedades de uma mídia
individual, quando conectada na entrada do modifier, pode ser alterado de diversas
maneiras, de forma ampla e dinâmica. Podemos, por exemplo, usar um modifier para
alterar a escala ou mover transversalmente um arquivo de imagem, criar um
atraso/prolongamento ou eco no arquivo de áudio, ou armazenar dados em um buffer (área
de armazenamento temporário de dados na memória do computador durante operações de
entrada/saída), o qual é controlado externamente de alguma maneira.
Os Renderers
O grupo de módulos Renderers “renderiza” o sinal proveniente dos módulos de
entrada (input) ou dos módulos dos alteradores (modifiers). Os Renderers estão divididos
em duas subcategorias: a de imagem e a de áudio, que se localizam em diferentes áreas na
Patch Screen, ambas localizadas à direita. Um módulo dos Renderers é o Speech Render,
que renderiza o texto em áudio (voz gerada por computador). O Speech Render aproveita-
se de um recurso incluído no sistema operacional Macintosh.
Os modifiers não são os únicos elementos de processamento do KW. A interação
dos live inputs com o banco de mídias (library) já tem o poder de alterar seus atributos,
tanto que os Renderers (módulo) têm seus próprios atributos e podem ser alterados
diretamente pelos live inputs. Exemplo: o mouse pode parametrizar os atributos de escala,
proporção, transparência ou fusão (keyblack/keywhite) do vídeo captado pela câmera ao
vivo.