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Conceitos importantes: plataformas de lançamento para a pesquisa empírica

Michel Foucault, ao recuperar os pontos de referência de seus trabalhos no curso ministrado no Collège de France em 1983, o Governo de si e o Governo dos Outros, explicita os percursos metodológicos para compor, o que chamou de maneira geral, “a história do pensamento”32.

Segundo ele, o seu intuito era distanciar-se de dois métodos, geralmente eleitos pelos historiadores: a história das mentalidades e a história das representações ou dos sistemas representativos. O primeiro concentrar-se-ia na análise comportamental e das expressões que precedem, sucedem, obscurecem, justificam, prescrevem, traduzem os comportamentos. O segundo estaria preocupado com o papel das representações em relação ao que expressa, seja

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Michel Foucault ocupou, no Collège de France, a cátedra designada “A História dos Sistemas de Pensamento”, de 1970 a 1984.

um tema ou um objeto. Tal viés poderia, ainda, voltar-se para a análise dessas representações em função de um conhecimento compreendido como critério de verdade a fim de estabelecer- se o valor representativo de um sistema de pensamento compreendido como o sistema de representações de um objeto dado.

Os desdobramentos analíticos para essas espécies de abordagem seriam, de um lado, estudar determinado comportamento e as atitudes e expressões decorrentes dele em dado período. Como exemplifica o próprio autor, nesse sentido, estudar-se-ia a história da loucura a partir da “atitude que se pode ter tomado, através dos séculos ou num momento dado, a propósito da loucura” (FOUCAULT, 2010b, p. 5). Do outro lado, considerar-se-ia um objeto invariante, como a própria loucura, alcançado por sistemas de representações com função e valores variáveis. Ou, como ilustração ainda, tomar a sexualidade como invariante e “supor que, se ela assume, nas suas manifestações, formas historicamente singulares, é porque sofre o efeito dos mecanismos diversos de repressão a que ela se encontra exposta na sociedade” (FOUCAULT, 2007b, p. 10).

Uma história das mentalidades estaria comprometida, portanto, com recuperar a sucessão das condutas e das práticas em relação a um objeto. O sujeito, aqui, apareceria como uma substância estável e imutável diante das oscilações das ideias sobre determinado objeto. A história das representações, por sua vez, implicaria no desvelamento dos aparelhos repressivos ou de processos históricos “mais fundamentais” e suas funções na representação de determinado objeto. Nesse caso, o sujeito poderia atingir progressivamente sua plenitude e liberdade à medida que dissipasse tais representações.

Foucault, ao refutar esses dois métodos como ferramentas de análise para seus trabalhos, rejeita a premissa de um “eu” fundamental ou essencial, traduzido como constructo de ideias e comportamentos históricos e contingentes ou como identidade suscetível, oprimida ou obscurecida por certas representações. Ao explicar, por exemplo, seu projeto de trabalho na tessitura de uma história da sexualidade, o autor escreve:

Esta série de pesquisas [...] não deveriam ser uma história dos comportamentos em uma história das representações. Mas uma história da “sexualidade”. [...] Meu propósito não era de reconstruir uma história das condutas e das práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas, sua evolução e difusão. Também não era minha intenção analisar as ideias (científicas, religiosas ou filosóficas) através das quais foram representados esses comportamentos. (FOUCAULT, 2007, p. 9).

Ele completa que o termo “sexualidade” surgiu no século XIX, apresentando não somente um remanejamento de vocabulário, mas sendo acompanhado pelo desenvolvimento de campos de saberes diversos, pela inscrição de novas normas e regras sustentadas e

divulgadas por instituições sociais e por mudanças nas formas pelas quais os sentidos atribuem valor e sentidos às suas condutas, suas aspirações, seus prazeres etc. Desse modo,

[...] tratava-se de ver de que maneira, nas sociedades ocidentais modernas, constitui- se uma “experiência” tal, que os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de uma “sexualidade” que abre para campos muito diversos, e que se articula, num sistema de regras e coerções. O projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto experiência – se entendermos por experiência a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade. (FOUCAULT, 2007b, p. 10).

Apesar de extraído do segundo volume da História da Sexualidade, o trecho supracitado não condiz, apenas, a uma postura metodológica adotada para o estudo desse termo, mas sim a uma perspectiva assumida, segundo o próprio autor, como pontos de referência para o desenvolvimento de seus trabalhos que, como projeto geral, procuraram tecer uma história do pensamento.

“O que distingue o pensamento é que ele é algo inteiramente diverso do conjunto das representações que subentendem um comportamento; ele é algo inteiramente diverso do domínio das atitudes que podem determiná-lo” (FOUCAULT, 1984, p. 391). O pensamento oferece, aos seres humanos, a possibilidade de objetivarem-se, tomarem-se como objetos de si mesmos, interrogarem-se sobre as condições, os fins e o sentido de suas maneiras de agir. “O pensamento é a liberdade com relação ao que se faz, o movimento pelo qual disto nos distanciamos, o constituímos como objeto e refletimos sobre ele como um problema” (FOUCAULT, 1984, p. 390).

Foucault busca fazer uma história do pensamento a partir da análise de focos de experiência, na qual se articulam as formas de um saber possível, as matrizes de comportamento para os indivíduos e os modos de existência virtuais para sujeitos possíveis (FOUCAULT, 2010b).

Aportado nos discursos foucaultianos, Jorge Larrosa (1994) aponta que não se trata, nesse sentido, de uma natureza humana que se expressa de modos particulares conforme a progressão e a atualização de conhecimentos, saberes e ideias, resultando em formas diferenciadas de comportamento, mas sim da própria história dos discursos, dos procedimentos e das práticas que incitam os indivíduos a uma determinada experiência de si.

É a própria experiência de si que se constitui historicamente como aquilo que pode e deve ser pensado. [...] é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo. E esse ser próprio sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior de certas práticas. (LARROSA, 1994, p. 43).

A experiência de si se apresenta, portanto, ao sujeito como uma série de técnicas, processos e práticas que levam os indivíduos a relacionarem-se com eles mesmos. Tais técnicas não estão dadas de antemão, como formas preexistentes, para que os seres humanos componham e recomponham os sentidos e os valores para as suas condutas. Ao contrário, elas precisam ser inventadas, refinadas e estabilizadas para serem disseminadas e implantadas de diferentes formas e em práticas diversas. (ROSE, 1998).

Dispositivos de ‘produção de significado’ – grade de visualização, vocabulários, normas, e sistemas de julgamento – produzem experiência; eles não são eles mesmos

produzidos pela experiência. (ROSE, 1998, p. 25, tradução minha, grifos do autor).

Isso significa compreender que os seres humanos não são dotados de uma capacidade essencial de atribuir sentidos, mas que são atravessados por um conjunto de práticas que localizam os indivíduos em determinados regimes constituintes de modos de ser particulares, ou seja, operam modos de subjetivação.

Ao considerar-se subjetivação como o termo para “designar todos aqueles processos e práticas heterogêneos por meio dos quais os seres humanos vêm relacionarem-se com eles mesmos e com os outros como sujeitos de certo tipo” (ROSE, 1998, p. 25, tradução minha), faz-se necessário um deslocamento e um aprofundamento no que se refere às formas de compreensão do sujeito, do poder e das técnicas implicadas nos modos de os indivíduos se subjetivarem.