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A vida que se vive nos horários coletivos de formação: primeiras explorações empíricas

A formação em serviço proposta, através dos Projetos Especiais de Ação, aos professores do município de São Paulo há quase vinte anos, como se pode conhecer nos capítulos anteriores, orientou-se, em grande parte, pelo reconhecimento da autonomia docente, pela centralidade da figura discente e pela totalização das práticas dos professores em favor da melhoria da qualidade de ensino oferecida em cada uma das instituições educacionais do município.

Em outras palavras, como lógica geral, o PEA tem se constituído como uma forma de convocação dos professores a: se relacionarem consigo mesmos, refletindo sobre si e suas práticas e qualificando suas escolhas pedagógicas; conformarem-se como alunos motivados a aprenderem pelo resto de suas vidas profissionais em nome de um aluno ideal que se constitui enquanto termo neutro dos discursos educacionais, naturalizando as mudanças prescritas pela formação em serviço; comprometerem-se coletivamente com as mudanças educacionais e com a construção de uma unidade pedagógica.

Embora possamos reconhecer uma similitude estrutural da racionalidade organizadora dos PEAs no decorrer de sua existência, ao recuperar-se o percurso legal desses Projetos, localizam-se cinco grandes concepções que sustentaram as políticas educacionais do Município: o Movimento de Reorientação Curricular (1989-1992), a Qualidade Total de Educação (1993-1996), os Quatro Pilares da Educação (1997-2000), a Qualidade Social da Educação (2001-2004) e os Grandes Programas Municipais de Educação (2005 até a atualidade).

Tais concepções colocaram em cena diferentes modelos de professores, alunos e práticas, assim como, parâmetros diferenciados para os professores refletirem sobre si, adotarem suas condutas no espaço de formação em serviço, conceberem seus alunos e seus propósitos educativos e construírem sua consciência coletiva e institucional. Isso não quer dizer, no entanto, que as diferentes maneiras de compreender a Educação Municipal e a formação docente se configuraram como inícios e fins da vida que se vive nos horários coletivos.

As alterações definidas pelas gestões municipais em relação à condução dos horários coletivos de formação não se configuram em etapas vivenciadas pelos professores a cada nova disposição legal ou a cada inovação nas políticas públicas como se todos os sujeitos

envolvidos estivessem dispostos, ou assim devessem se mostrar, a abandonar os saberes antes validados para o exercício da profissão por outros considerados melhores.

A escolha de dividir a história dos Projetos Especiais de Ação em blocos correspondentes às diferentes gestões municipais, que os acomodaram em diferentes concepções políticas e educacionais, serviu-nos para uma melhor descrição do objeto de pesquisa. Contudo, no capítulo seguinte, ao suspendermos algumas peças que engrenam o funcionamento do PEA, pudemos observar não apenas rupturas, mas também continuidades dos saberes que se referem à formação dos professores, das regras de participação nos grupos de estudo e das maneiras como os professores são chamados a pensarem sobre si mesmos e suas práticas.

Os campos de saberes que orientam, justificam, autorizam, endossam tanto a própria existência da formação no âmbito do trabalho como os conhecimentos e as aprendizagens necessários a uma prática profissional considerada eficiente, justa e boa. As regras que organizam, constrangem e liberam a circulação dos saberes e a participação dos professores nos Projetos. As formas como os professores são chamados a pensar sobre si e suas práticas, ou melhor, as formas pelas quais, a partir de determinados campos de saberes e regras, os professores se constituem como devendo e podendo ser pensados.

Tem-se, então, na formação em serviço, um grupo de professores, ao mesmo tempo, autorizados a atuarem profissionalmente, já que funcionários públicos e constantemente desatualizados diante da necessidade mesma da formação em serviço. Necessidade referenciada na prática do olhar introspectivo e da análise das próprias condutas profissionais para, a partir de conjuntos específicos de saberes, encontrarem em si as lacunas indesejáveis ao exercício da profissão.

Os professores, dessa forma, são convocados a darem novos sentidos, valores e propósitos à sua docência. São chamados à motivação constante em aprender e a reconhecerem-se, inexoravelmente, incompletos para lidarem com os desafios e as exigências profissionais. Há, nas políticas públicas de formação em serviço, sempre uma defasagem profissional pressuposta, que deve ser mobilizadora da reflexão de si.

A incompletude do sujeito desponta como imperativo das propostas formativas na figura do professor-aluno. Ou seja, daquele que, habilitado a exercer a profissão, coloca-se a aprender, constantemente, modos de operar e pensar seu exercício num espaço e tempo determinados.

A assunção de sua incompletude deve servir como condição que trará, ao sujeito, a consciência da necessidade de formação. Na formação, por sua vez, o professor será

endereçado a um conjunto de saberes e de discursos sob os quais se avaliará como profissional incompleto, devendo transformar sua incompletude em força produtiva para reorganizar seus modos de fazer, pensar e sentir a profissão.

O movimento formativo oferece aos professores esse campo de saberes e discursos, a partir dos quais devem refletir sobre si e suas práticas, além disso, trazem os mecanismos de como fazê-lo. Podem-se observar, nas próprias disposições legais e documentos oficiais norteadores dos Projetos Especiais de Ação, procedimentos como os de “retomada” das ações executadas, de “constante reflexão e problematização” ou, ainda, de ação-reflexão-ação e tematização das práticas. São estes movimentos em que os professores dão visibilidade àquilo que fazem através de relatos orais e escritos, por exemplo. Atribuem também sentidos particulares às suas práticas e propõem formas de agir a partir de um enquadramento teórico e de uma gramática pedagógica considerados desejáveis.

Portanto, o que está em jogo na formação em serviço é o sujeito, ou melhor, a fabricação de um sujeito específico. Um sujeito, no entanto, que não se configura como elemento passivo de seu processo formativo, mas é incitado a participar ativamente de sua constituição, objetivando-se, pensando-se e produzindo-se através de uma série de procedimentos de relação consigo mesmo, de discursos, de regras, de valores, de saberes, de vocabulários etc., que estão em constante movimento. O resultado desses múltiplos atravessamentos é um campo aberto, suscetível a um número infinitesimal de realizações possíveis. O resultado é o sujeito.