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O sujeito, como compreendido atualmente, unificado, individualizado e dotado de um interior é uma invenção recente. A concepção dos seres humanos em termos de indivíduos construídos na interação das biografias particulares e de processos mais generalizáveis relativos à espécie, possuindo um consciente e um inconsciente e totalizado na injunção de um corpo e de uma psique não é natural, ou seja, é resultado da história. Emerge num tempo e espaço localizados, especialmente, com a importância dada aos estudos psicológicos e com o entrelaçamento da Psicologia com as ciências humanas no mundo ocidental no século XIX.

Filiado à inauguração do sujeito encontra-se um projeto de conhecimento do homem pelo próprio homem. Não um projeto empenhado em responder questões concernentes à natureza humana ou à humanidade, mas que endereça o ser humano a si próprio como objeto cognoscível.

Portador de uma arquitetura psíquica parcialmente conhecida, o sujeito é convocado a narrar-se, a decifrar-se, a interpretar-se, sendo destinado a um conhecimento progressivo de si e de sua essencialidade. Um projeto hermenêutico disposto a iluminar o que, na própria pessoa, esteja obscurecido, a dar sentido a suas condutas e reorganizar suas ações futuras. No entanto, essa relação estabelecida entre o sujeito e si mesmo e, em última instância, a própria concepção de sujeito apoiam-se e estruturam-se através de gramáticas, grafias, vocabulários e procedimentos particulares, que foram inventados em um tempo histórico e em um espaço geográfico específicos.

Dessa forma, considera-se o “entendimento individualizado, interiorizado, totalizado e psicologizado do que é ser humano como o lugar de um problema histórico, não como a base de uma narrativa histórica” (ROSE, 1998, p. 23) que assinalaria a mudança de ideias e comportamentos dos sujeitos dentro de determinados domínios sociais e culturais.

Não se trata apenas de que nossas ideias acerca do que é uma pessoa difiram das ideias que, a esse respeito, têm, por exemplo, os azande ou os nativos de Bali. Ou que difiram das ideias que tinham os burgueses puritanos dos novos estados centro- europeus do século XVII ou os Cavalheiros da Europa feudal na baixa Idade Média. O que é histórico e contingente é algo que vai muito além das ideias ou das representações. [...] a experiência de si, também é algo histórica e culturalmente contingente, na medida que sua produção adota formas singulares. (LARROSA, 1994, p. 41).

Trata-se, portanto, das práticas pelas quais o indivíduo dá-se haver consigo mesmo e, ao fazê-lo, diagrama sua existência e constitui-se como sujeito. Tal perspectiva,

[...] trabalha para informar as maneiras em que esse regime moderno do eu emerge, não como resultado de qualquer processo gradual de iluminação, pelos quais as pessoas, ajudadas pelos esforços da ciência, vêm finalmente reconhecer suas verdadeiras naturezas, mas de incontáveis práticas e processos menos refinados e dignos. (ROSE, 1998, p. 23).

A relação dos indivíduos com eles mesmos é objeto de um conjunto variado de procedimentos e esquemas mais ou menos racionais que operam nas formas de compreensão e de diagramação das existências em nome de certos objetivos, como por exemplo, a qualidade de vida, a sustentabilidade ou a própria formação em serviço. Esses objetivos são atravessados por práticas e discursos que dão forma ao sujeito, permitindo que ele seja pensado como

saudável, como cidadão, como profissional etc. e por maneiras de operar essa problematização.

Segundo Foucault, problematização

[...] é o conjunto de práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e a constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política, etc.). (FOUCAULT, 2008, p. 242).

As pessoas são, cotidianamente, incitadas a problematizarem as demandas da vida contemporânea, tornado-as inteligíveis e manejáveis em suas condutas. Essas demandas referem-se a “objetos de atenção” disponíveis em determinado lugar, momento ou domínio. Um objeto tornado como cognoscível a partir de certos tipos de discursos e praticado segundo certas regras em um tempo ou um domínio específico pode ser, diferentemente, considerado em outros. Aquilo que vale como “verdadeiro” não pertence a um campo estável e permanente, mas é da ordem da contingência e da história. Se, portanto, as problematizações são históricas e contingentes, assim também o são as experiências de si.

Contudo, a experiência de si não se materializa, apenas, em relação a um discurso “verdadeiro”, mas também através de procedimentos e técnicas particulares. Técnicas que encaminham o sujeito para si como objeto possível de ser pensado e manipulado e “das quais os homens se utilizam para compreenderem aquilo que são” (FOUCAULT, 1988). Segundo as palavras de Michel Foucault, as técnicas de si

[...] permitem aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos e suas condutas, seus modos de ser; de transformarem-se a fim de atender um certo estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade. (FOUCAULT, 1988, p. 784).

As técnicas de si fazem o sujeito partícipe ativo de seu próprio processo de produção. Não há um sujeito aquém ou além das formas de subjetivação. São elas que possibilitam a realização do sujeito. Por isso, sob essa perspectiva, o sujeito é inseparável das formas pelas quais é levado a constituir-se como tal.

Segundo Rose (1998), as tecnologias do eu ou técnicas de si convocam o indivíduo a relacionar-se consigo mesmo epistemologicamente (conhecer a si mesmo) e despoticamente (dominar a si mesmo ou, de outro modo, cuidar de si mesmo), abrangendo práticas como confissão, escrita diária, discussão de grupo. Jorge Larrosa (1994) explicita os mecanismos mediadores da relação do ser humano consigo mesmo a partir de três dimensões: uma ótica, implicada com um regime de visibilidade no qual o sujeito se torna visível para si mesmo

(fichas de observação e questionários, por exemplo); uma discursiva, relativa à mediação entre estados internos de consciência e o mundo exterior através de um regime de enunciabilidade, onde o sujeito se nomeia e nomeia o que faz (memórias e diários); e uma jurídica, onde a relação da pessoa consigo mesma baseia-se no julgamento próprio, na regulação das próprias condutas e no domínio de si a partir de um regime normativo (confissões e práticas terapêuticas).

A experiência de si, portanto, está envolvida e estruturada em um campo de relações. Relações estas que “concedem poderes a alguns e delimitam os poderes de outros, capacitam alguns a curar e outros a serem curados, alguns a falar a verdade e outros a reconhecer sua autoridade e a abraçá-la, aspirá-la ou submeter-se a ela.” (ROSE, 2001, p. 151). Não ocupa e não se desdobra, portanto, em espaço neutro, homogêneo ou imparcial. Liga-se a sistemas de verdade, que dizem “não” a certas configurações de existências e, portanto, produzem efeitos de poder e, ainda, dizem “sim” a outras configurações e, por isso mesmo, produzem efeitos de poder.