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3. Discursos

3.3 Conceitualização de poder

Tantas vezes já referenciado ao longo deste trabalho, detemo-nos agora na conceitualização dessa instância que trespassa e orienta muitas das dimensões até agora discutidas. Refimo-nos ao poder social (aqui apenas nomeado de ‘poder’).

Com origem na Antiguidade Clássica, a concepção que o vê como resultado direto da vontade do povo continua hoje a ser defendida. Esta tradição, que considera que um governo (ou instituição ou grupo, desde que a ação tenha interferência na vida de cada um) apenas detém poder enquanto o povo lhe atribuir legitimidade, exclui a violência, mesmo a simbólica, uma vez que

o poder só se concretiza onde a palavra e a acção não se divorciam, onda as palavras não são vazias e os actos não são brutais, onde as palavras não são utilizadas para velar intenções mas para revelar realidades e os actos não são usados para violar e destruir mas para estabelecer relações e criar novas realidades (ARENDT, 1959 apud ESTEVES, 2003, p. 120).

Esta reflexão, de acordo com Esteves (2003), pode contribuir para o pensamento da teoria política, mas compreender a sociedade e as formas de governo em harmonia com ela será extremamente duvidoso. Basta um rápido olhar sobre a história da humanidade – arriscamos a afirmar que para qualquer tempo, tendo em conta diferentes geografias – e encontraremos razões que suportem este ceticismo. Os totalitarismos do século XX são, talvez, o exemplo mais vivo, na memória coletiva, da exaltação do domínio do homem sobre o homem, a associação direta entre poder e violência.

Denunciar essa relação de dominação, defendemos, é o passo inaugural necessário para uma crítica emancipatória e transformadora da sociedade.

Já anteriormente definida, com recurso às palavras de Thompson (1995), a dominação resulta do abuso de poder, tornado real na interação social. Tais relações impõem uma limitação de liberdade de um grupo sobre o outro, uma vez que aquele que procura (e exerce) a dominação fá-lo porque pretende concretizar vontades, interesses ou valores próprios, os quais, em situação normal, estariam contra a aceitação daquele que é dominado: “de forma muito geral, o poder é a capacidade de perseguir e alcançar objetivos através do domínio do que nos rodeia” (MANN, 1986 apud CASTELLS, 2009, p.37, tradução nossa). Para que tal aconteça, relembramos, é necessário que determinado grupo tenha acesso privilegiado (ou seja, positivamente diferenciado) a recursos socialmente valorizados. Os grupos considerados dominados, porém, raramente o são totalmente, residindo no seu interior (e, muitas vezes, na interação com outros grupos dominados) o potencial para ações de resistência (ou até mesmo de revoluções). É devido a esse espaço em aberto, reconhecido por aqueles que abusam do poder, que é essencial destruir sistematicamente a capacidade relacional dos atores que resistem (CASTELLS, 2009), estratégia essa tão visivelmente colocada em prática nos regimes ditatoriais.

É importante notar que o poder não se desenvolve numa única esfera das interações sociais (como por exemplo a política), mas por meio de complexas conexões entre diversas ‘realidades’ da atividade social (tal como a economia ou a educação). Por isso, o poder é definido como relacional, enquanto a dominação é institucional. Não queremos com isto dizer que a dominação é localizada de forma estática em determinado grupo ou instituição, mas que ela é corporificada, passível de ser identificada, tendo em conta as suas causas e consequências materiais, para além dos símbolos concretos através dos quais é representada. Certamente que as relações pelas quais se constitui são mais fugidias, mas ainda assim, acreditamos, podem ser identificadas, denunciadas e combatidas. O poder, pelo contrário, é uma entidade mais abstrata, uma vez que ele se constitui, e destitui, nas relações, de forma bastante fluída, nunca se deixando capturar totalmente em moldes ou fórmulas. A título de exemplo, dizemos que o Estado pode ser considerado, pesem todas as diferenças locais/globais/contextuais, uma forma relevante de dominação, contudo, uma vez que é uma entidade histórica (ou seja, social, mutável no tempo e no espaço), o poder que

exerce (e que em torno dele, e com ele, comunica) depende de vários fatores, entre os quais está a estrutura social em que opera. Para que o Estado consiga exercer dominação é necessário que, de alguma forma, se consiga legitimar, tornar aceite ou, no mínimo, tolerado pela sociedade em geral.

Refletindo sobre poder, Van Dijk (2010, p.17) afirma que ele sempre é definido em “termos de controle, isto é, de controle de um grupo sobre outros grupos e seus membros”. Isso poderá, eventualmente, ser percebido na análise de diferentes sistemas, sejam políticos, laborais, educacionais, ou outros. Essa relação de controle não deve ser tida, a priori, como socialmente negativa, uma vez que, novamente de acordo com o holandês, “a sociedade não funcionaria se não houvesse ordem, controle, relações de peso e contrapeso, sem as muitas relações legítimas de poder” (VAN DIJK, 2010, p.27). Ela deve contudo ser sim questionada, desnaturalizada e desconstruída, na tentativa de compreender suas concretizações, causas e consequências, forças que a animam e contrariam. O poder, considerado negativo, é-o quando os atores sociais, nas suas práticas, (re)produzem desigualdades sociais que resultam na precarização da vida daqueles/as que, de alguma forma, vêm seus direitos civis limitados. Tais práticas são consideradas ilegítimas pelos investigadores dos ECD. Assim,

o poder persuasivo [dos discursos considerados ilegítimos] reside na sua aparente plausibilidade e aparente superioridade moral. Liberdade, democracia e direitos humanos estão entre os termos-chave que organizam esta legitimação política e dos media na perspectiva da elite e respectivas ações em relação aos “outros”. O problema é que para a maioria dos países ocidentais […] estas e outras noções foram selectivamente definidas e aplicadas àquelas situações em que os seus interesses estavam a ser ameaçados: por exemplo na América Central e em África. A liberdade implica sobretudo liberalismo de mercado e liberdade de investimentos (ocidentais), não autonomia local ou ausência de opressão ou de exploração (VAN DIJK, 2005, p. 93, grifo nosso).

Estas considerações encontram em Foucault um dos seus pilares mestres. Como o próprio coloca, “é somente mascarando uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável. Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos” (FOUCAULT, 1999a, p.83).

Entre as várias abordagens que as teorias sociais têm desenvolvido sobre o poder, aquela que mais frequentemente é adotada pelos analistas críticos do discurso é a que o compreende como elemento constitutivo da sociedade. Consequentemente, “não

são os recursos individuais ou as relações que se desenvolvem em uma situação especifica, isolada, que são cruciais para a ACD, mas a estrutura global que é percebida no campo social ou na sociedade como um todo” (WODAK; MEYER, 2009, p.10, tradução nossa). Aqui, para além do poder não ser percebido como recurso monopolizado por alguém (sejam indivíduos ou instituições), é também defendida a ideia de que ele não é sempre, nem principalmente, acionado de forma negativa (ou seja, para aplicar castigos ou proibições), mas de forma positiva, produzindo sujeitos, corpos e comportamentos (tal como já referido, ao abordar os conceitos de poder disciplinar e biopoder).

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. A condição de possibilidade do poder […]não deve ser procurada na existência primeira de um ponto central, num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes; é o suporte móvel das correlações de força que, devido a sua desigualdade, induzem continuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis. Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante, em

todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O

poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares. E "o" poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de auto-reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, devemos ser nominalista: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada (FOUCAULT, 1999, p.88-89).

O poder não deve então ser compreendido como propriedade que, sob a égide de grupos privilegiados, instaura de forma definitiva e global uma oposição binária entre aqueles que controlam e aqueles que são controlados. Ele deve antes ser olhado como uma rede de relações, sempre ativas, múltiplas e mutáveis, campo de conflitos constantes, animados por incessantes mudanças de direção, intensidade e cenários. Assim, falar sobre poder é falar sobre relações de diferença e, mais concretamente, sobre os efeitos destas nas estruturas sociais (WODAK; MEYER, 2009, p.10). Os ECD ocupam-se de análises que tenham por objetivo estudar essas diferenças de poder,

levando em conta que, para uma definição de (i)legimidade, são realçadas as “consequências mentais negativas da dominação discursiva: desinformação, manipulação, estereótipos e preconceitos, vieses, falta de conhecimento e doutrinação, e como esses elementos podem significar ou levar à desigualdade social […]” (VAN DIJK, 2010, p.30, grifos do autor).