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4. Comunicação e Jornalismo

4.3. Teorias, valores e saberes

Dos vários gêneros discursivos que o jornalismo abarca, é na notícia que no presente trabalho nos focamos. Para começarmos a sua definição, julgamos pertinente a metáfora de Tuchmann (1983, p.13): tal como uma janela, a notícia dá-nos acesso ao mundo. A percepção do mundo, contudo,

depende de se a janela é grande ou pequena, se tem muitos ou poucos cristais, se o vidro é opaco ou claro, se a janela é voltada para uma rua ou um pátio. A cena depende também da posição do sujeito que observa, se longe ou perto, se movendo o pescoço para diferentes direções ou mantendo-o reto, direcionado para a frente […] (TUCHMANN, 1983, p.13, tradução nossa).

Esta leitura é incompatível com aquela que a Teoria do Espelho daria conta, ou seja, de que as notícias poderiam “transmitir uma tradução imparcial, transparente, neutral, de uma realidade externa” (HACKETT, 1999, p.106). Não haveria portanto distinção entre notícia e realidade, postura fundamentada em cima de duas premissas: existe uma única realidade, universal, e a ela temos acesso direto, sem interferências simbólicas, culturais, ideológicas ou outras (MELO, Isabelle, 2007). Como teremos oportunidade de argumentar ao longo desta seção, ainda que na atualidade tal leitura não seja totalmente rejeitada, muita da aceitação que outrora alcançou não resistiu às críticas que entretanto lhe foram feitas. Apoiados em Correia (2011, p.143), que, de forma reconhecidamente simplificada, defende a existência de duas abordagens epistemológicas do jornalismo, enquadramos a fala de Tuchmann numa perspectiva construtivista enquanto a Teoria do Espelho identificamos como objetivista:

na perspectiva objectivista, a realidade social surge como um dado a

priori que o jornalista deve observar de forma a reconstituir fielmente.

Na óptica «construtivista», a «realidade» e a «informação» são entendidas como construções sociais e não como um conjunto de dados preexistentes.

Filiando-nos a esta segunda, começamos por apontar que o mundo, tanto material como simbólico, ainda que exista para além da linguagem – pois, por exemplo, ainda que determinado indivíduo ignore ou rejeite a existência de machismo, este não deixa de existir e de ter consequências materiais, sendo sua gênese e desenvolvimento da ordem social, simbólica –, “nós só o conseguimos compreender através da sua apropriação pelo discurso” (HACKETT, 1999, p.109). Ora, como já apontamos em capítulos anteriores, o discurso não pode ser compreendido como canal transmissor de significados ‘puros’, inerentes aos acontecimentos e objetos a que se refere, pois, antes de mais, ele é objeto e meio de lutas por significações. Escreve Correia (2004, p.111), apoiado em Schutz (1982), que “a intencionalidade na transmissão dos significados surge como o elemento essencial e característico dos processos comunicativos. […] A comunicação é sempre finalista: espera sempre produzir um determinado efeito na pessoa a quem se dirige”.

Nesta perspectiva, julgamos coerente a percepção da notícia enquanto narrativa culturalmente construída (BIRD; DARDENNE, 1999, p.263), artefato discursivo resultante da interseção “de factores de natureza pessoal, social, ideológica, histórica e do meio físico e tecnológico” (SOUSA, 2005, p.3). Tais narrativas, como aqui as percebemos, distinguem-se de outras que circulam no tecido social por serem elaboradas por uma instituição concreta, o jornalismo, “que tem as suas tradições distintas, preocupações e modos de fazer as coisas. Inevitavelmente, a notícia reflecte o

ethos especializado da comunidade jornalística e é moldada pela sua estrutura e

processos” (WEAVER, 1999, p.296). É à discussão dessas ‘tradições, preocupações e modos de fazer, estrutura e processos’ que nas próximas páginas nos dedicaremos. Para justificar o seu começo, apoiamo-nos em Hohlfeldt (2001), que, ao analisar vinte e um livros sobre jornalismo – a maioria de autores brasileiros –, concluiu ser a objetividade o principal critério na construção do texto jornalístico.

A objetividade emerge primeiro, enquanto valor normativo, na ciência europeia dos séculos XVI-XVIII: face às alterações sociopolíticas já apontadas daquela época, é desenvolvido um ceticismo perante a realidade, que cobra a criação de uma nova

corrente interpretativa – verdadeira e universal – do mundo. A busca de um método racional, de uma ciência unificada e de uma língua exata resultariam numa ‘purificação’ das operações da razão humana, descontextualizando-a de situações históricas e culturais concretas: “trata-se de objetivar ao máximo a realidade social, e de reduzir ao mínimo as interpretações alternativas. Da mesma forma, no contexto social e cultural, existe uma procura desesperada pela verdade aceitável para todos” (ALSINA, 2009, p. 260). A objetividade assim entendida implementa-se como matriz do pensamento moderno, lançando raízes em várias áreas de aplicação de conhecimentos e influenciando diversas correntes teóricas.

Importa aqui salientar algumas reflexões acerca do cientificismo, ou seja, da percepção e defesa (mesmo que, por vezes, inconscientemente) da ciência como autoridade cognitiva, portanto como principal fonte legitimadora de conhecimento, resultante do

gradativo processo de especialização e representação cientificista de tópicos morais e políticos, […] [resultando no] estreitamento da esfera pública e na redução da participação democrática. Esta nova ideologia, que transforma a ciência em fetiche, […] obscurece as questões práticas, justifica o interesse de dominação parcial de uma classe determinada, oprime aquelas de posição subalterna e compromete o próprio interesse emancipatório da espécie humana (ROCHA, H., 2009, p.1-2).

Não pretendemos, naturalmente, rejeitar (todos) os métodos e resultados científicos, mas criticar a “pretensão positivista de tentar erigir o absolutismo da metodologia sob uma rotina fática, […] que não pressupõe o sujeito que conhece” (ROCHA, H., 2009, p.2); simultaneamente salientamos que a produção de conhecimento pode dar-se em múltiplos espaços, em moldes diversos, com propósitos variados, e que as suas pretensões de validade devem ter em conta não só os argumentos e métodos, como também os contextos e lugares de fala.

Cabe aqui uma breve explicação sobre a utilização do conceito ‘lugar de fala’, que será importante no próximo capítulo, onde analisamos os dados empíricos da investigação. Com a sua utilização pretendemos dar destaque à compreensão de que somos atravessados/as por um vasto leque de experiências e marcadores sociais que condicionam a nossa compreensão e expressão do/no mundo. A interpretação e vivência de tais marcadores (ser mulher e ser negra, por exemplo) é (inter)subjetiva e não- homogênea entre aqueles sujeitos que assim se identificam, contudo a leitura social que

deles é feita irá determinar, de forma mais ou menos rígida, a posição (política, mas não só) a ser ocupada na sociedade e, consequentemente, a sua legitimidade para produzir conhecimento sobre determinado assunto. Essas posições podem ser transgredidas, mas nem por isso a leitura social de tais marcadores desaparece por completo: acreditamos que, por ora, o debate principal sobre esta matéria, principalmente nos movimentos sociais, gira em torno da ressignificação (simbólica, portanto material) desses marcadores e não a sua supressão.

Defendemos que é importante refletir sobre quem pode (por ter acesso a recursos socialmente valorizados) e tem legitimidade (pelo lugar de fala que ocupa) para falar sobre determinado assunto, por determinado prisma, visto que esse é um exercício realizado, e compreendido, a partir de “um lugar específico nas relações de poder e tomad[o] por marcas destas formações. Entender que o diálogo é uma forma de interação de poder, é perceber também que estes lugares ligam-se diretamente ao que é hegemônico e ao que não é hegemônico” (VIEIRA, 2015c). A noção de ‘lugar de fala’ está então intimamente relacionada à noção foucaultiana de que os corpos (aqui com enfase nos humanos e nos desumanizados) nunca são ‘naturais’, aprioristicamente vazios de significados, pois desde sempre são atravessados por inscrições históricas. Assim, o corpo “está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele, elas o investem, o marcam, o dirigem […] exigem-lhe signos” (FOUCAULT, 1999b, p.25).

Acreditamos que ignorar estas questões, demitirmo-nos da auto-reflexão no processo de consumo e produção de conhecimento, significará um maior risco de reproduzir as “estruturas condicionadoras de poder que, acriticamente, mostram-se como naturais, mas não o são, pois, de fato, são o resultado de uma comunicação sistematicamente distorcida e de uma repressão sutilmente legitimada” (ROCHA, H., 2009, p.16).

Os ideais iluministas do século XVIII, a respeito da ética da igualdade, liberdade e fraternidade, contribuíram também para afirmar o jornalismo como sacerdócio ao serviço do público, resultando daí o dever de se assumir como imparcial (STEINBERGER, 2001, p. 178), concepção que está vinculada à objetividade mitificada capaz de verificar a verdade absoluta, conforme a ideologia de ciência positivista. Assim, aos jornalistas

é cobrada a humanamente impossível tarefa de espelhar (ou representar perfeitamente) o mundo, o que o torna em profissional que nunca consegue atingir o desempenho que lhe é atribuído, ao mesmo tempo em que não é reconhecida a sua dimensão maior, e efetivamente real, de participar da construção do mundo […] (ROCHA, H., 2008, p.46).

O conceito começa a ser apropriado pelo jornalismo no século XIX, quando um ‘novo jornalismo’, informativo, com separação entre ‘fatos’ e ‘opiniões’, ganha espaço e o jornalista passa a ser definido como observador neutro dos acontecimentos: “o meu trabalho é comunicar factos: as minhas instruções não permitem qualquer tipo de comentários sobre os factos, sejam eles quais forem” (READ, 1976 apud TRAQUINA, 1999, p.167). Este pensamento desenvolve-se enquanto o positivismo ainda está no auge da sua existência, condicionando a produção intelectual da época. No século XX, aponta Traquina (1999a), terminada a 1ª Guerra Mundial e compreendido o papel que a propaganda política nela desempenhou, é renovada a desconfiança nas ações humanas e até os ‘fatos objetivos’ passam a suspeitos, reforçando assim, principalmente nos Estados Unidos, as transformações que já vinham concorrendo para a instituição de regras profissionais capazes de orientar jornalistas para a reprodução fiel da realidade, sem partidarismos, avessos a interferências ideológicas, servindo unicamente ao interesse (do) público.

Tuchmann (1999) aponta algumas das regras adotadas para alcançar essa pretensa objetividade, que considera funcionar como ritual estratégico orientado para a proteção das pressões a que jornalistas estão expostos/as – como seja a escassez de tempo para a análise epistemológica reflexiva imposta pelos prazos, eventuais processos de difamação ou repressões de seus superiores. Assim, argumenta que estratégias como 1) a apresentação de versões conflituais do acontecimento – almejando não favorecer qualquer uma das partes envolvidas –, 2) apresentação de provas auxiliares – que normalmente são fatos suplementares, aceites como inerentemente ‘verdadeiros’ –, 3) citação ipsis verbis dos intervenientes – ou seja, as mensagens dependem das fontes, pois são as suas vozes e opiniões que são reportadas, não as do/a jornalista – e 4) estruturação da informação numa “sequência apropriada” – ainda o esquema da pirâmide invertida –

1) constituem um convite à percepção selectiva, 2) insistem erradamente na ideia de que «os factos falam por si», 3) são um instrumento de descrédito e um meio do jornalista fazer passar a sua

opinião, 4) são limitados pela política editorial de uma determinada organização jornalística (TUCHMANN, 1999, p.89).

Acreditamos que a adoção de técnicas como as já mencionadas, mais do que reduzir o espaço de manobra na codificação das mensagens, resulta em uma maior propensão à desresponsabilização dos/das jornalistas: “não é o repórter que fala e escreve, e sim a realidade por ele espelhada (BARROS FILHO, 2003, p.25). Para esta consideração apoiamo-nos também em Tuchmann (1999, p.75): diz a autora que “os jornalistas invocam a sua objectividade quase do mesmo modo que um camponês mediterrânico põe um colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos” (TUCHMANN, 1999, p.75). Para além de uma caracterização folclórica deste jornalismo, o excerto permite-nos inferir que tal como a existência de espíritos malignos é questionável e, em última análise, inexistente – ao menos face à ausência de provas científicas que sustentem uma imagem literal desse mito – o mesmo acontece com os fatos. Ainda assim, o ‘colar de alhos’ (objetividade) desempenha um papel necessário, uma vez que os ‘camponeses’ (jornalistas) não reconhecem outra forma efetiva de assegurarem a sua existência, chegando a adotar posturas bastante defensivas – ou agressivas – perante aqueles/as que o (a) questionam. Torna-se contudo necessário notar que,

filosoficamente falando, todos os ‘factos’, por mais ‘objectivos’ que sejam, são mais ou menos ‘criados’ ou ‘construídos’: pelos códigos culturais de que somos portadores, a começar por esse código primário que é a linguagem, pelas crenças que professamos, incluindo essas crenças ‘racionais’ que são as teorias científicas e as doutrinas filosóficas, pelas tecnologias e instrumentos que utilizamos, pelas verdades prático-utilitárias que partilhamos com os outros membros de uma comunidade, pelos métodos de investigação que mobilizamos, quiçá mesmo, e a aceitarmos a tese de Kant, por determinadas formas

a priori. O jornalismo não é, nesse aspecto, mais ‘criador’ ou

‘construtivo’ que as outras ‘formas simbólicas’ (SERRA, 2003, p.338).

A objetividade a que anteriormente fizemos referência sofreu portanto um deslocamento: das notícias, onde residia na Teoria do Espelho, passa a localizar-se no comportamento das/dos jornalistas, indissociável de outros valores e saberes que se desenvolvem concomitantemente. O estatuto desses/as profissionais já não é o de meros/as refletores/as da realidade – norteando-se principalmente pela ‘verdade’ –, mas de observadores/as dotados/as de (inter)subjetividade que se comprometem (ou dizem fazê-lo) a relatar os acontecimentos da forma mais imparcial e equilibrada possível (SOLOSKI, 1999, p.96).

Com o intuito de investigar o que jornalistas brasileiros/as compreendiam por ‘objetividade’, Sponholz (2008, p.72) efetuou entrevistas com vários desses/as profissionais, tendo concluído que, para a maioria, ‘objetividade’ significa “não tomar partido […] [e] apresentar os fatos de maneira interessante, precisa e clara, de forma que seja acessível para qualquer pessoa”. No pólo oposto, “são raros os casos em que objetividade é ligada à correlação das notícias com a realidade. Só 3% das afirmações recorrem a ideias como aproximar-se o máximo possível da verdade ou da realidade” (SPONHOLZ, 2008, p.72). Assim, mais do que uma informação verdadeira – no sentido positivista do termo – a preocupação parece estar vinculada à credibilidade, reforçada pela conclusão de que, apesar da (suposta) imparcialidade se sustentar em estratégias como a atenção a todos/as os/as intervenientes da estória, “o critério principal para escolher uma fonte deve ser a competência, e não o fato de ela representar um lado de uma polêmica” (SPONHOLZ, 2008, 74).

A anterior consideração a respeito das fontes parece-nos estar em concordância com a Teoria Estruturalista (HALL et al., 1999), segundo a qual, no jornalismo noticioso, as/os jornalistas se tornam dependentes de fontes institucionalizadas, contribuindo dessa forma para a transmissão das ideologias dominantes e fabricando uma falsa sensação de consenso social. Os autores reconhecem contudo que essa ação é mais resultado da estrutura de propriedade capitalista que é o jornalismo, com rotinas produtivas pautadas pelo interesse dos proprietários, do que de uma vontade – ou até consciência – dos/as jornalistas, que têm a sua autonomia diminuída pelas próprias regras profissionais que seguem. As teorizações de Pinto (2000, p.280) direcionam-nos também para essa leitura, quando este afirma que fontes e jornalistas têm, por norma, interesses não coincidentes, que contribuem para uma relação mais tensionada do que por vezes é percebida.

Com o referido em mente, sublinhamos que a constituição de empresas de comunicação e a já mencionada orientação do jornalismo para o lucro, resultou em uma escalada vertiginosa na luta por audiências, que hoje, com a internet, se materializa em cliques e visualizações, constituídos verdadeiros algozes de sucesso. Em função disto se materializa uma incessante corrente de informação, a cada minuto exigindo ser atualizada, a que a/o jornalista tem de corresponder com a capacidade de cada vez mais, “‘chegar’ mais cedo, escrever mais depressa e transmitir com mais rapidez” (FIDALGO, 2005, p.5). Dentre as várias consequências que daí resultam para a

qualidade da informação, identificamos o aprofundar da ‘falta de tempo para pensar’, característica já apontada por Tuchmann (1999) ao abordar as pressões que jornalistas enfrentam.

Também sobre o tempo, apontamos a perversa supervalorização de que é alvo na modernidade, impelindo os sujeitos à produção constante, construindo a imagem que dessa forma tão precioso recurso não será perdido, mas aplicado, rentabilizado, obrigação moral que desde cedo, e ao longo da vida, é aclamada, e assim reforçada, pelo sistema capitalista. Em 1927, data da primeira edição do livro The Public and its

problems, Dewey (2004, p.131) já apontava que o impacto da industrialização era tão

grande e poderoso que se determinada pessoa era percebida como tendo tempo livre com regularidade, logo se concluía se tratar de alguém preguiçoso (quando não de alguém suspeito, foco de possíveis problemas, atrevemo-nos a acrescentar). Desde então, ao invés de perder força, essa noção tornou-se mais presente.

Para corresponder às exigências do mercado, as/os jornalistas adotam várias estratégias, dentre as quais está a orientação para o acesso constante, preferencial, a “fontes institucionais em detrimento das individuais, pois só entidades burocratizadas têm capacidade para manter o fluxo rotineiro de informação verídica, credível e autorizada de que as organizações noticiosas necessitam” (SOUSA, 2002, p.14).

Orientados/as pelas noções de imparcialidade, equilíbrio e objetividade, os/as jornalistas privilegiam fontes ‘dignas de crédito’, assim compreendidas mediante dois critérios fundamentais: o de autoridade e de papel social. O primeiro diz-nos que quanto maior for o nível da autoridade, mais divulgadas serão as suas mensagens: sempre que reconhecida como “uma parte substancial da sociedade, a mídia consolidará essa autoridade. Portanto, existe uma discriminação dos indivíduos que terão acesso aos meios de comunicação” (ALSINA, 2009, p.189). O segundo princípio baseia-se na noção de que o valor da informação depende da origem social do indivíduo e do papel que este desempenha na sociedade.

Deste modo, os media tendem, fiel e imparcialmente, a reproduzir simbolicamente a estrutura de poder existente na ordem institucional da sociedade. Isto é o que Becker chamou «a hierarquia da credibilidade» - a probabilidade daqueles que em posições poderosas ou de elevado status na sociedade, e que dão opiniões sobre os tópicos controversos, de terem as suas definições aceites, porque tais porta- vozes são considerados como tendo acesso a informação mais precisa

ou especializada em assuntos particulares do que a maioria da população (HALL et al., 1999, p. 229).

Este processo, que reforça o estatuto dos sujeitos socialmente privilegiados como definidores primários dos temas e interpretações a ganharem visibilidade pública – mesmo os “argumentos contrários a uma interpretação primária são obrigados a inserirem-se na sua definição de «o que está em questão»” (HALL et al., 1999, p.230, grifos dos autores) – resulta em narrativas desvinculadas dos – ou melhor, que invisibilizam os– marcadores sociais (como classe, gênero e raça, entre outros) que as constituem, nas quais a mídia, por se colocar como subordinada aos poderes hegemônicos, acaba por desempenhar um papel secundário na sua definição.

Numa afirmação talvez demasiado extremada pela universalidade que subentende, Molotch e Lester (1999, p.50) afirmam ver a mídia não a refletir “um mundo exterior mas as práticas daqueles que detêm o poder de determinar a vivência dos outros”. Este fenômeno deve ser percebido de uma forma mais abrangente – e possível de ser contrariado, como mais adiante, apoiados em Habermas (1997), discutiremos –, não limitada ao jornalismo, pois as regras que exigem o recurso a fontes identificadas como inquestionavelmente credíveis – e como se chega a constituir/perceber tal credibilidade – estão fundamentadas em formas socialmente estruturadas de compreender o mundo e suas instituições (TUCHMANN, 1983, p.98).

Assumindo que a mídia não faz parte do aparelho do Estado, podendo então entrar em conflito com os definidores primários se os seus motivos e lógicas forem demasiado incompatíveis, é ainda preciso salientar que, ao contrário do que poderá ter sido dado a entender até aqui, os definidores primários não se constituem como um grupo homogêneo. As estruturas de poder são (cada vez mais, gostamos de acreditar) plurais. “Graças à diversidade de experiências biográficas, estatutos, culturas e origens sociais, existem visões conflituais e contraditórias seja quanto à relevância relativa seja quanto à selecção e interpretação das ocorrências (CORREIA, 2011, p. 94): esta citação, que pode ser aplicada tanto ao jornalismo como às estruturas de poder, direciona-nos para uma compreensão mais complexa da relação que se estabelece entre os sujeitos envolvidos na produção noticiosa.

Ainda antes de discutirmos a Teoria Organizacional, gostaríamos de salientar esse ponto em comum com os/as Construtivistas (Estruturalistas e do News Making –

sobre esta última também nos debruçaremos, principalmente para abordar a noção de noticiabilidade):

o funcionamento do subsistema da comunicação de massa não é fechado, quer dizer, não se auto-referencia reproduzindo-se de forma autônoma (autopoiética) e reduzindo tudo mais – seu público e a sociedade de uma maneira geral – a mero entorno (ROCHA, H., 2008, p.47).

Desta forma, ainda que em determinados assuntos seja relativamente fácil de montar uma imagem consensual dessa estrutura, e da realidade que visibiliza – exemplos disso são notícias sobre saúde e criminalidade, o que imediatamente nos relembra as acutilantes teorizações foucaultianas sobre biopoder –, o mesmo não acontece a todo o momento, tornando mais forte a ideia de que o discurso jornalístico é local privilegiado de lutas de poder, condicionado, mas não determinado, estruturalmente. Ainda assim, parece ser difícil rejeitar a existência de uma certa cumplicidade entre poder e jornalismo, “de tal forma que, ao mesmo tempo que a voz do primeiro ecoa no segundo - «mensageiro do poder» seria uma boa expressão para