• Nenhum resultado encontrado

2. Disputas pela significação e visibilidade identitária

2.1 A invenção da(s) transexualidade(s) e travestilidade(s)

2.1.3 Morte em vida

Historicamente, as construções da transexualidade e travestilidade se diferenciam por meio do significado que representa a transgressão: definidas como doentes, presas em corpos errados em que não se conseguem reconhecer, as pessoas transexuais – as ‘verdadeiras’ – são vistas como vitimas que desejam se submeter às terapias médicas, buscando corrigir o seu desvio. As pessoas travestis diferenciar-se-iam pela sua perversidade: não desejando a correção, mas viver na marginalidade, seriam não binárias, ou seja, homens que se vestiriam e adotariam técnicas de modelagem de corpo (como a aplicação de hormônios e próteses de silicone), aproximando-se de uma estética feminina, não desejando, contudo, renegar a sua masculinidade, localizada na genitália. Travestis seriam assim vistos32 como homens que se travestiam de mulheres

32 Utilizamos aqui o artigo masculino para nos referirmos a travesti para alertar para o fato de ser esse o entendimento do discurso médico, e sociedade em geral, influenciados por ideias novecentistas. Atualmente, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) – coletivo que congrega um grande número de associações com atuação em todos os estados do país – comunica que é no feminino que as travestis se sentem respeitadas, devendo portanto assim serem tratadas. Esta posição, contudo, não significa que todas as travestis querem ser tratadas no feminino. Tal como não é possível afirmar, de forma categórica, que travestis são, exclusivamente, aquelas pessoas que à nascença foram nomeadas como homens. Sempre que uma travesti requisite ser tratada com flexão gramatical masculina, tal deve ser atendido, de contrário, quando tal não é possível saber, é defendido que a postura correta a ser adotada

para obter prazer sexual33. A travestilidade estaria conotada à perversão sexual, não à identidade de gênero. Se o travesti pretendia representar o papel de mulher, o transexual desejaria ser e funcionar como uma (LEITE JR, 2008, p.142).

Como em qualquer outro binômio, é necessário questionar a racionalidade que o sustenta. Não se trata de defender a não existência de diferenças entre pessoas trans, ou das categorias que reclamam para se narrar, mas de pensar como tais categorias emergem e, a se manterem, porquê. Assim, recusando a definição de verdades ontológicas, o que está em causa é a percepção de que a autodeterminação é condicionada pelos discursos em circulação no tecido social, decorrendo daí que o reconhecimento das diferenças, ao serem uma demanda daqueles/as que se narram como mulher transexual, homem transexual ou travesti, deva ser sempre respeitado, não significando isso a demissão da problematização da racionalidade que constrói diferenças e representações.

Na nota introdutória de seu trabalho de investigação sobre a construção das categorias ‘travesti’ e ‘transexual’, Leite Jr (2008, p.13, grifos do autor) reconhece que quanto mais avançava na pesquisa de campo, mais dificuldades tinha em identificar os limites entre uma e outra, sublinhando que “identificar-se como travesti ou transexual era muitas vezes uma questão situacional. Dependendo do lugar e da situação, tal pessoa se apresentava como uma ou outra das identidades. E às vezes com outras ainda, do tipo «gay» ou «mulher de verdade»”. O autor sublinha contudo que são as definições clínicas que mais rigidamente estabelecem fronteiras para tais categorias, servindo como base para as concepções políticas e espetacularizações no mundo do entretenimento – essas duas vertentes tantas vezes interligadas na mídia.

33

Esta noção, que muitos/as ainda defendem, torna-se popular em 1910, quando o livro Die Transvestiten, da autoria de Magnus Hirschfeld, “originou os termos «travesti» e «travestismo», associando o uso de roupas do sexo «oposto» a um sentido sexual” (LEITE JR, 2008, p.100) – não significando tal, defende o autor, que o travesti sinta desejo por alguém do mesmo gênero, uma vez que o uso de roupas ‘contrárias ao seu gênero’ não tem conotação com a orientação sexual. Uma das novidades introduzidas por Hirschfeld é a constituição de categoria clinica ‘travestismo’, relacionada ao prazer sexual, alterando o significado da palavra ‘travesti’, que o Dicionário Houaiss da língua portuguesa define “como originária do francês e tendo sua primeira aparição registrada em 1543, significando disfarçado, derivada de travestire (1512), ou seja, disfarçar-se. Lynne Friedli […] afirma que o termo travesti foi usado na Inglaterra em 1652 para designar mulheres que se vestiam como homens. Já para Terry Castle, este passa a ser um termo comum neste país (Inglaterra) durante o Iluminismo, criando nos bailes de máscaras uma verdadeira cultura do travesti. Ainda segundo o Houassis, apenas em 1831, «travesti» aparece como substantivo para designar um homem vestido de mulher ou vice-versa” (LEITE JR, 2008, p.101-102, grifos do autor)

Pesem as diferenças, tais experiências identitárias são reunidas sob o rótulo da ‘anormalidade’, pois ao desestabilizarem as normas de gênero,

estas pessoas, independente de suas orientações e vivências afetivas e sexuais, possuem uma estética de gênero associada ao sexo «oposto», sendo, a partir deste referente sobre a «aparência» e seus supostos «enganos», que violências contra elas são cometidas em grande parte das situações públicas (BENTO, 2012, p.123).

Em situações públicas, mas também em ambiente privados, são inúmeras essas violências. Nesse aspeto, a família ocupa uma posição central. É lá que a materialização da não conformidade às normas, e das suas consequências, primeiro se torna evidente. Quando o lar se transforma em prisão, povoada por carrascos que justificam as suas ações em nome de um amor disforme, as vidas se transformam, moldadas por tristezas e ódios, não só, mas também, auto-referenciais. Essas relações com o afeto (ou sua ausência) é, normalmente, reproduzida ao longo da vida, como podemos perceber pela fala de Vieira (2015a), travesti:

há inúmeros homens que se interessam por mim de alguma forma, mas estes homens, em sua maioria, têm vergonha do interesse que possuem por mim, e essa vergonha vem justamente de reconhecer em mim um corpo abjeto, que serviria apenas para a satisfação dos seus impulsos sexuais, e não para a companhia na dimensão de sua vida pública. Muitas travestis e pessoas trans estão fora dos jogos do desejo. Estão fora do “poder amar”. Esta rejeição, obviamente, é introjetada e nos conduz a um estado temível de miséria subjetiva, de vergonha de si e da tristeza de existir.

A rejeição, que se pode manifestar nas mais variadas violências físicas e psicológicas, num ambiente que é fulcral na construção dos sujeitos, resulta frequentemente em ferimentos (físicos e não só) que se podem tornar permanentes na vida daqueles/as que dele escapam para sobreviver. O estigma que tais sujeitos sofrem materializa-se em

encontros sociais de todos os tipos. Eles tem menos proteção dos comportamentos inescrupulosos ou criminais, menor acesso à proteção policial e menos recurso aos tribunais. Lidar com instituições e burocracias – hospital, médico legista da polícia, bancos, servidores públicos – é mais difícil (RUBIN, s/d, p.31).

Aqui falamos, particularmente, de pessoas trans. O ambiente escolar, que pode ser problemático, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero, se torna muitas vezes insustentável para aqueles e aquelas que sofrem violências nas mais básicas situações de convívio social, como seja o acesso ao banheiro público. A

obrigatoriedade de transitar num espaço em que não se reconhece e não é reconhecida, onde a permanência é negociada à custa das constantes exclusões, das incessantes injúrias, muitas vezes apoiadas (ou, quanto muito, ignoradas) por aqueles que, novamente, deveriam zelar pelo respeito e desenvolvimento pessoal, resulta no abandono, na convicção de que a humanidade, se não é uma ficção, está longe dali. Andrade (2012, p.248) descreve esse processo (que apelida de ‘evasão involuntária’):

os(as) educando(as) são simbolicamente ou não submetidos, por integrantes da comunidade escolar, a tratamentos constrangedores até que não suportem conviver naquele espaço e o abandonem. Esta estratégia, não por acaso, exime os gestores de oficializar o ato de expulsão por temer questionamentos e intervenções externas que possibilitem um recuo na decisão. Este possível recuo pode representar para os gestores em questão dois riscos: o sentimento de desmoralização perante a comunidade escolar e o retorno da convivência com o sujeito indesejado na escola. Portanto, o processo de evasão involuntária mais se assemelha à expulsão, mesmo não sendo oficializada, que a um processo de evasão voluntária do(a) educando(a) que abandona a escola por escolha própria, eximindo esta de qualquer responsabilidade na decisão.

Assim se estimula a criação de um padrão obscenamente ‘normal’ para crianças e adolescentes que “saem cedo de casa, em torno dos 14 anos, e geralmente iniciam uma vida noturna sustentando-se através da prostituição” (PELÚCIO, 2005, p.235). Sem direito a família, sem direito a educação e sem direito a trabalho, essa parece ser uma das poucas alternativas que possibilitam a sobrevivência, sempre precária. Segundo as mais recentes estimativas da ANTRA, cerca de 90% da população trans brasileira trabalha na prostituição.

É necessário, contudo, pensarmos nesses espaços (e conceitos) de forma mais abrangente. Que família e educação são essas? Podem ser dessa forma percebidas, com um significado único, universal? Quando questionada sobre a relação entre família e travestilidade, Indianara Siqueira (2016) responde assim:

a família é com quem você se apega, com quem você tem sentimentos, seja o marido, seja um companheiro, sejam amigos. […] Eu tenho outra família, rompi completamente com a minha. Não sinto nenhum remorso, não sinto problema nenhum em ter rompido com a minha família, […] então, família é isso, são aquelas pessoas que nós sentimos como família. Eu tenho várias famílias que deixei por aí espalhadas, eu tenho várias pessoas que passaram pelas minhas casas, eu tenho várias pessoas das quais eu sinto saudade […]

Sobre a prostituição, e as pessoas que a exercem, é importante frisar que não a lemos a partir de uma postura que a considere, a priori, moralmente correta ou errada. Esse é um debate extenso, que por isso aqui não cabe, devendo ser feito com extrema sensibilidade, considerando uma longa lista de variáveis. Ainda assim, vale lembrar Rubin (s/d, p. 36), quando diz que

a criminalização de comportamentos inócuos como a

homossexualidade, prostituição, obscenidade, ou consumo recreativo de drogas é racionalizado ao representá-los como ameaças a saúde e segurança, mulheres e crianças, segurança nacional, a família, ou a civilização em si mesma. Mesmo quando a atividade é entendida como inofensiva, pode ser banida pela alegação de “levar” a algo ostensivamente errado […]. Edifícios grandes e poderosos foram construídos com base em tais fantasmas.

Desta forma, mais do que a atividade per se, salientamos o contexto em que a mesma é exercida, encarada não como uma opção entre várias, mas como obrigatoriedade a ser cumprida para obter sustento diário34. Ilegal, exercida na clandestinidade (ainda que perante o olhar da sociedade), a atividade se desenvolve em espaços concretos, marcados por códigos e relações rigidamente definidas, violentamente institucionalizadas. Tais espaços, normalmente acostamentos ou calçadas de estradas, acarretam um vasto rol de perigos, como seja a repressão policial, assaltos, ofensas de quem passa e as complexas relações com cafetinas, companheiras de trabalho e clientes. Entre os dados levantados durante a sua investigação de campo, Pelúcio (2005, p.231) aponta a elo entre prostituição e uso desregrado de álcool e outras substâncias: “muitas dizem que «de cara limpa» é muito difícil suportar a rotina da prostituição, outras alegam o abandono que sentem da família, a discriminação diária e o sentimento de solidão”. Assim, corpos marcados pela rejeição afetiva se transformam em sexo, nada mais que isso, para aqueles que – quando longe de matas desertas, ruas escuras e outros locais precários – se prontificam a neles cuspir falsos moralismos, fecundos reprodutores de discursos que cobram vidas, tomadas lentamente, diariamente, por socos, pontapés, facadas, pedradas, tiros, atropelamentos, desmembramentos, estrangulamentos e outros métodos que a imaginação permita conceber.

34

Pelúcio (2005, p.243) rejeita, por exemplo, a denúncia da prostituição de travestis na, e para a, Europa como casos resultantes de redes de tráfico de seres humanos, lendo antes essas realidades, maioritariamente, como consequência da “opressão material e simbólica que circunscreve as travestis em guetos, dificultando o acesso à escolaridade, ao mercado de trabalho e comprometendo seus projetos de transformação e inserção social fora da prostituição”.

Em 2014, segundo dados divulgados pela Transgender Europe35, foram notificados, em solo brasileiro, 132 assassinatos de pessoas trans, perfazendo um total quase quatro vezes superior ao segundo país que, mundialmente, mais mortes contabilizou (o México, com 40). Essa proporção mantem-se desde que a referida ONG começou a publicar relatórios: desde 2008, o Brasil é o país que mais mortes registra – 689, seguido do México, com 194. Estes números, contudo, apenas podem servir para consciencialização, pois, muito provavelmente, erram por defeito, uma vez que os crimes contra pessoas trans são subnotificados – quando mapeados, é comum serem registrados como mortes de homossexuais. Esta consideração é feita pela presidente do coletivo TransRevolução36, Indianara Siqueira, que alerta também para o fato da “expectativa de vida de uma travesti e transexual brasileira gira em torno dos 30 anos, enquanto, em média, a expectativa de vida de um brasileiro é 74,6 anos segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).” (MARTINS, 2015). Para estas estatísticas contribuem não só os homicídios mas também os suicídios. Levada em conta a escassez de estudos sobre o tema, particularmente na América do Sul, e em especial com foco na população trans, existem os de “língua estrangeira que indicam que características ligadas à orientação sexual e a identidade de gênero se somam aos “fatores de risco” de suicídio, que pode ficar aumentado em até 7 vezes […]” (NAGAFUCHI, s/d, p.2). Tais conclusões não serão totalmente surpreendentes se tomada “qualquer coleção aleatória de homossexuais, trabalhadores do sexo ou pervertidos diversos [,que] pode fornecer histórias de partir o coração sobre rejeição e mau tratamento […]” (RUBIN, s/d, p.31).

35

Disponível em: <http://www.transrespect-transphobia.org/en_US/tvt-project/tmm-results/idahot-

2015.htm, http://www.transrespect-transphobia.org/uploads/downloads/2015/TMM-IDAHOT2015/TvT-

TMM-Tables_IDAHOT-2015_EN.pdf> Acesso em 20 dez 2015.

36 A denúncia da subnotificação de crimes LGBTfóbicos, por variados motivos, é também feita pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), que no Relatório sobre violência homofóbica no Brasil, ano 2012, reportava uma média de “27,34 violações de direitos humanos de caráter homofóbico por dia. A cada dia, durante o ano de 2012, 13,29 pessoas foram vítimas de violência homofóbica reportada no país” (SDH/PR, 2013, p.18) – é preciso notar que o termo utilizado no documento, ‘homofobia’, não é utilizado para apenas fazer referência às violências direcionadas a gays, mas a toda a população analisada (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais). Ainda de acordo com o mesmo documento, dados hemerográficos daquele ano apontavam as pessoas travestis como população mais afetada pela ‘homofobia’ – mais de metade dos crimes noticiados eram referentes a elas. Cabe aqui frisar que para a subnotificação de crimes contribui a ignorância sobre orientação sexual e identidade de gênero e, consequentemente, sobre as categorias ‘travesti’ e transexual’, o que inclusive pode contribuir para a invisibilização dessas pessoas, dentro de uma ‘comunidade’ já de si invisibilizada. Ainda assim, os dados recolhidos apontavam que “travestis e transexuais seguem sendo as maiores vítimas de violência homofóbica e justamente as violências de maior gravidade como homicídios e lesões corporais” (SDH/PR, 2013, p.93).

Estes dados, que possibilitam a reflexão sobre essas vidas, aniquiladas gradativamente até chegarem ao fim, também nos colocam perante nós próprios, permitindo refletir sobre aquilo que somos e aquilo em que nos podemos tornar. Nessa medida, a visibilidade se revela conceito fundamental, foco de lutas políticas, pois é por meio dela que se torna possível o contato com realidades que são controladas discursivamente através do acesso a recursos socialmente valorizados, mas desigualmente distribuídos, que definem quais as vozes a serem escutadas, quais as ‘verdades’ possíveis de existir.