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3. Justificativa e Fundamentação

2.1 Concepção de currículo

A apresentação dos currículos do curso de composição se faz importante por eles serem documentos fundantes do curso, no entanto, entendemos que currículo é algo que ultrapassa a dimensão documental, se fazendo pela via dos conhecimentos e práticas presentes no espaço em que adquire concretude; conhecimentos e práticas trazidas por estudantes, professores, músicos, funcionários – todos que circundam e atuam no espaço do curso. Nas palavras de Silva:

O currículo é uma práxis, não um objeto estático. Enquanto práxis é a expressão da função socializadora e cultural da educação. Por isso, as funções que o currículo cumpre, como expressão do projeto cultural e da socialização, são realizadas por meio de seus conteúdos, de seu formato e das práticas que gera em torno de si. Desse modo, analisar os currículos concretos significa estudá-los no contexto em que se configuram e através do qual se expressam em práticas educativas. (Silva, 2006, p. 4820).

A autora evidencia o contexto das práticas educativas como condição indispensável para a análise do currículo concreto. Tomaremos aqui o sentido inverso: utilizaremos o currículo concreto (os documentos e concepções à eles inerentes) como ponto de partida para compreendermos o contexto das práticas educativas em composição. Enquanto práxis, o currículo do curso de composição se dá na interação entre seus pressupostos orientadores e a prática efetiva realizada na interação entre os seus atores; sejam colaborações, disputas, reafirmações e negações de princípios.

Ainda há de se notar que o currículo antigo – como é referido no cotidiano da escola – possui quarenta anos de existência. Isto implica que, se entendido

enquanto práxis, seu percurso proporcionou e assistiu à realização de novas práticas, novos conhecimentos, referências e valores; sejam eles oriundos de mudanças socioculturais, de mudanças na universidade, funcionários, professores ou estudantes. Portanto, mesmo sendo uma estrutura específica sobre a qual determinados conhecimentos são praticados e exigidos, onde as rotinas institucionais estão assentadas e regras estão definidas, ele é, também, um espaço posto ao questionamento, reafirmações, renovações e reinvenções. Assim há constante interação, e até mesmo disputas, entre o instituído e algo que se pretende instituir.

Estas interações dão margem a uma série de reinterpretações, atualizações, e/ou transgressões da estrutura posta que dinamizam as práticas e concepções presentes no curso, dando margem a adaptação de espaços ou criação de espaços complementares19. Estas intervenções no currículo concreto se dão com certa

intensidade não apenas pelo longo tempo de existência do curso e suas demandas adaptativas, mas pela própria natureza dos ambientes escolarizados que, conforme Sacristán (2003), não são restritos à uma estrutura prescrita.

As experiências na educação escolarizada e seus efeitos são, algumas vezes, desejadas e outras, incontroladas; obedecem a objetivos explícitos ou são expressões de proposição ou objetivos implícitos; são planejados em alguma medida ou são fruto de simples fluir da ação. Algumas são positivas em relação a uma determinada filosofia e projeto educativo e outras nem tanto ou completamente contrárias. (Sacristán, apud Hornburg, 2007, p. 64).

Concordando com as palavras acima, o currículo parte de uma norma instituída – um percurso ideal, com saberes, habilidades e competências a serem trabalhados – para um contexto construído – um espaço de vivências múltiplas, efetivas e, por vezes, contraditórias. Este contexto é muitas vezes referido por algumas teorias do currículo como currículo oculto, o qual pode ser entendido como: procedimentos, vivências, regras de conduta e potencialidades presentes entre a convivência coletiva e as entrelinhas do projeto de curso, proporcionando diversos tipos de aprendizagem que podem ir além dos previstos na oficialidade do texto curricular.

Nos estudos sobre currículo, percebemos que nem tudo o que ocorre no processo pedagógico está explícito nos currículos. Fazemos referência ao currículo oculto, que não constitui propriamente uma teoria, mas está presente no cotidiano da educação ou da escola. Podemos dizer que envolve processos que estão implícitos na escola, mas que fazem parte do processo de ensino-aprendizagem. De acordo com Silva (2003, p.78), “O currículo oculto é constituído por aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazerem parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes”. Ele está presente nas relações sociais da escola. São os comportamentos, os valores e as atitudes que estão presentes na aprendizagem. (Hornburg e Silva, 2007, p. 64)

As relações sociais, em suas variadas dimensões, constroem o ensino. Tais relações mantidas entre estudantes, professores e funcionários, mediados por alguma infra-estrutura, serão abordadas em suas especificidades no capítulo 3, descrevendo efetivações do currículo a partir de estudantes e professores. Pôr em evidência o discurso daqueles que efetivam o currículo pode revelar aquilo que é mais enfatizado nele, uma vez que o que emerge são descrições e julgamentos a

partir de experiências significativas vivenciadas. Como afirma Corinta Geraldi, estudiosa de currículo, em entrevista concedida a Oliveira (2007),

os saberes produzidos nos embates cotidianos das aulas ficam, em geral, na memória dos que partilharam/construíram o processo. A memória tem suas artimanhas. Esquecemos, muito se perde e é irrecuperável, permanece o que, por ter sido significativo, peculiar, marcante, tenha permanecido enganchado em seus labirintos. (Oliveira, 2007, p. 117)

Os saberes construídos ao longo da jornada do estudante-compositor não dizem respeito apenas à conteúdos, mas também à afetividade, comportamentos, opiniões, valores. E isto está no âmago do processo de ensino, o qual, apesar de ser norteado e sistematizado pelo currículo – tanto concreto quanto oculto – é um fenômeno que transcende estruturas de delimitação e se constrói no processo dialético de interação entre o ser e aquilo que o rodeia, conforme Freire “diluído na experiência realmente fundante do aprender” (Freire, 1996, p. 24). Neste sentido o processo de ensino demanda aprendizagem, a ponto de um inexistir sem a presença do outro (Freire, 1996), estando tanto professores como estudantes responsáveis pela sua efetivação.

É com esta perspectiva que este estudo é realizado e, consequentemente, é o parâmetro pelo qual o currículo será enfatizado como elemento importante para a efetivação do ensino. Assim, também, o currículo não é uma entidade estática composta por uma dimensão normativa-conceitual e outra praxial. A própria natureza praxiológica do currículo faz que este seja realizado de diferentes maneiras, para diferentes turmas, em diferentes momentos, estando relacionado à escolhas e valores daqueles que o fazem. Conforme Ribeiro, “a maneira particular de enxergar

um currículo, no contexto coletivo e cultural, não é algo dado, precisando estar em constantes buscas de significados teóricos, práticos, simbólicos e metodológicos” (Ribeiro, 2000, p. 60).

As significações demandadas pelo currículo, tanto em seu planejamento e escrituração quanto em sua efetivação praxial, em âmbitos teóricos, práticos, simbólicos e metodológicos, apontam para a sua dimensão política. Esta interpretação do currículo enquanto campo de escolhas, onde conhecimentos e práticas são estratificados, valorizando mais alguns em detrimento de outros, remonta aos estudos de Michael Young e a Nova Sociologia da Educação (Moreira, 1990), e segue com bastante intensidade com os estudos de Henri Giroux e Michael Apple, os quais, em conjunto com outros autores, estão inseridos no campo das teorias críticas em educação (Silva, 2006; Luedy, 2006). A respeito das teorias críticas Silva afirma:

para as teorias críticas o importante não é desenvolver técnicas de ‘como’ fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo ‘faz’”, empregando as estratégias analíticas e interpretativas do método hermenêutico, que realçam a subjetividade escondida nos símbolos e signos. (Silva, 2006, p. 4827)

O currículo, como entendido neste estudo, compõe uma dimensão importante do ensino, sendo imprescindível a compreensão do primeiro para a discussão do segundo. Todavia, não se trata de um estudo sobre o currículo (num sentido restrito), mas daquilo que transcende a ele em forma de produto – tanto práticas e estratégias de ensino historicamente construídas, como aprendizados e circunstâncias que emergerm dele. Neste sentido, a subjetividade presente em signos e símbolos,

mesmo não sendo objetos específicos de atenção, têm muito a revelar sobre o ensino de composição praticado no curso da UFBA. Também não podemos deixar de dizer que o currículo, em suas dimensões objetivas e subjetivas, abarcam aquilo que Luedy (2006) refere-se como batalhas culturais, sendo um espaço de disputa, afirmação e negação de valores os quais podem ser efetivados em forma de conteúdos, métodos, procedimentos, referências ou repertórios. Discussões deste tipo, inclusive, começam a tomar corpo definido nos estudos sobre música no Brasil, conforme podemos observar em trabalhos de Kleber (2001; 2003), Luedy (2006; 2009), Ribeiro (2000), Souza (2003), entre outros.

Assim, tomando currículo enquanto práxis historicamente situada, passível de interpretações e variações, e carregado de valores objetivos e subjetivos que dependem das proposições daqueles que o compõem, apresentaremos as bases sob as quais ele é efetivado. Tomaremos como ponto de partida a descrição dos componentes curriculares.

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