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A concepção de linguagem que fundamenta este estudo tem por objeto de preocupação a interação verbal, isto é, a ação entre atores historicamente situados que, por meio da linguagem, se apropriam, são transformados, transformam e transmitem os discursos que os constituem. Portanto, pensamos a língua a partir dos estudos bakhtinianos, o que pressupõe pensar que os discursos não são neutros, eles compreendem uma determinada visão de mundo, representando a ação estabelecida na nossa relação com o Outro. Os conceitos bakhtinianos de dialogismo e polifonia são fundamentais para entendermos essa relação. Conforme destaca Sobral (2009),

No âmbito dessa concepção ativa, que se empenha em alcançar a natureza dos atos humanos sem essencialismos, merece destaque, naturalmente a ideia de dialogismo, a ideia-mestra segundo a qual toda ‘voz’ (todo ato) humana envolve a relação com várias vozes (atos), dado que nenhum sujeito falante é a fonte da linguagem/do discurso, ainda que seja o centro de suas enunciações, do mesmo modo como nenhum agente humano é a fonte de seus atos, ainda que seja o centro destes e por eles tenha de responsabilizar-se (SOBRAL, 2009, p.33).

Podemos depreender do excerto acima que a compreensão que temos da realidade é realizada na e pela linguagem. Esse processo acontece de forma dialógica, pois, pressupõe a presença de outros sujeitos, de outras vozes.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakthin (1990[1953]) desenvolve a concepção de língua enquanto processo sempre em transformação, pois, a linguagem pode assumir várias

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formas a depender do contexto em que ela aporta. Dessa forma, quando analisarmos os discursos, precisamos relacioná-los ao contexto sócio-ideológico em que foram produzidos.

De acordo com Rajagopalan (2002,p.1), o ato de nomear, designar é construído dentro de políticas representacionais, ou seja, está estritamente relacionado ao processo de construção de identidades, sendo que essas escolhas linguísticas não são neutras, são também escolhas éticas e políticas.

Assim sendo, afirmamos que é por meio da linguagem, dentro de práticas discursivas específicas que as identidades dos sujeitos são construídas. Essa construção se dá em contextos variados e através da presença de interlocutores. Usamos a linguagem para analisar, marcar, rotular os outros sujeitos. O modo como realizamos essa classificação envolve perspectivas políticas, sociais e culturais. Para melhor elucidar essa breve explanação sobre a palavra como ação, emprestamos as palavras do próprio Bakthin (1990)

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica e isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKTHIN,1990[1953]p.109).

De acordo com a citação acima, a linguagem deve ser entendida como de natureza social, considerando-se sempre o lugar e a posição ocupada pelos sujeitos do discurso, sendo portando dinâmica e atrelada às relações de poder presentes na sociedade, ou seja, de acordo com o Bakthin, o sujeitos também estão posicionados socialmente e historicamente.

Essa concepção de língua como ação postulada por Bakthin (1990) fundamenta as concepções de discurso defendidas por Fairclough (2001) em sua obra Discurso e mudança social. De acordo com ambos, a linguagem está associada às questões socioculturais e às nossas experiências. Fairclough afirma que

o discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado (FAIRCLOGH, 2001, p.91). Conforme podemos verificar na citação acima, a noção de língua como ação subjaz a concepção de discurso defendida pelo autor, discurso esse entendido como processo de interação entre os sujeitos que se realiza nas práticas sociais. Para Fairclough (2001), é por meio da linguagem, materializada nas práticas discursivas que as identidades são construídas, posto

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que, assim como esse autor, acreditamos que o processo de construção das identidades é relacional, portanto, elas não podem ser compreendidas como estanques. É nesse sentido que entendemos também a construção da identidade negra.

De acordo com Muniz (2011), o ato de afirmar-se negro deve ser entendido como atitude política, como movimento de reivindicação por direitos historicamente negados à população africana e seus descendentes, mas, ainda assim, de acordo com a autora, temos de nos cuidar para não cairmos nos essencialismos e colocarmos essa identidade como fixa e reduzida, apagando as suas especificidades. O conceito de identidade negra defendido por Muniz deve ser compreendido dentro das políticas representacionais de fortalecimento do que se convencionou nomear de identidade negra. Muniz (2011) afirma que

De um lado temos a armadilha que é a essencialização de uma identidade, pois ocasiona o ‘aprisionamento’ desses mesmos atores que reivindicam por isso; de outro lado, vemos como o artifício da essencialização propiciou ganhos políticos para esses grupos estigmatizados socialmente. Por isso, enfatizo e reafirmo que essa essencialização, de forma estratégica, é importante para este momento político ao qual estamos vivendo, mas não pode perder o seu sentido relacional e, por isso, não pode deixar de ser repensado, principalmente porque o contexto sociopolítico não é estático e devemos estar atentos para não deixar que o argumento identitário, ao invés de nos emancipar nos aprisione (MUNIZ, 2011 p.2-3).

Portanto, não pretendemos apresentar verdades únicas sobre as práticas de letramentos e identidades, mas realçar uma discussão científica que apresenta múltiplas possibilidades de construção de sentidos e de formas de enxergar as identidades negras forjadas no/pelo movimento hip-hop em Ouro Preto; considerando sempre que os objetos que compõem a realidade, ou seja, a sociedade, são processuais, não fixos, pois, se completam nas relações estabelecidas em sociedade. Defendemos que as concepções de linguagem e sociedade estão intrinsecamente relacionadas, sendo a linguagem entendida como fato social.

Portanto, de acordo com Bakhtin e seu Círculo, o estudo da linguagem deve perpassar a compreensão geral da situação enunciativa, não somente o produto da enunciação. O eixo central do trabalho com a linguagem é a “inter-ação linguística, uma inter-ação entre sujeitos concretos” (Sobral, 2009, p.89). Assim sendo, o trabalho com a língua deve partir do pressuposto de que as interações entre os atores envolvem o que Sobral (2009) denomina de “intercâmbio linguístico”, ou seja, os discursos estão interligados; os sujeitos negociam os significados do discurso num dado momento histórico, portanto, suscetível de mudança. As noções de texto, de discurso e de identidades que fundamentam esta pesquisa também são fundamentos pelos pressupostos bakhtinianos sobre a língua.

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Val (1991) afirma que “um texto é uma ocorrência Linguística ou falada de qualquer extensão, dotada de unidade sócio-comunicativa”. Essa perspectiva defendida por Costa Val fundamenta o nosso olhar sobre os artefatos produzidos no âmbito do grupo pesquisado, embasando a nossa investigação sobre os textos, em suas diversas modalidades, produzidos pelos atores desta pesquisa. Devido ao fato de os discursos agirem ideologicamente, todo trabalho com a linguagem deve ser realizado considerando suas instâncias de produção, assim compreendemos os textos analisados em estreita relação com as identidades de seus produtores e, dos demais adeptos da cultura hip-hop que têm acesso a esses textos/discursos, entendendo também os processos de leitura como construções sociais (SILVA, 1998).