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A nova concepção do verbo: gerundismo

O futuro possui, conforme Fiorin (1996), um valor temporal que não permite expressar uma modalidade factual, já que seu valor de verdade não pode ser determinado no momento da enunciação, pois expressa asserções que dependem da avaliação que o enunciador faz da necessidade, possibilidade ou impossibilidade de um determinado estado de coisas. Tal peculiaridade, segundo Gibbon (2000), permite afirmar que há sempre um valor modal ligado ao valor temporal e faz do tempo futuro o mais polêmico dos tempos verbais. A polêmica torna-se maior quando se trata da expressão de tempo futuro em perífrases verbais com gerúndio. Essa forma verbal, a exemplo do que ocorre com o infinitivo, alia-se a outros verbos para expressar tempo futuro, formando perífrases, algumas delas com até três verbos: (i) verbo flexionado no futuro do presente + verbo principal no gerúndio; (ii) verbo auxiliar no presente + verbo principal no gerúndio; (iii) verbo auxiliar ou modal + infinitivo + gerúndio.12 Embora seja uma forma amplamente usada em português brasileiro, o gerúndio parece não gozar do mesmo prestígio que as outras formas nominais do verbo e seu uso na língua moderna, em perífrases que

32 expressam tempo futuro, tem sofrido preconceitos. Mas o preconceito não se restringe ao uso do gerúndio em perífrases verbais expressando tempo futuro. Conforme Menon (2004), há puristas que condenam seu uso sob o pretexto de que o gerúndio empobrece o texto e de que seu emprego não ocorre no português europeu. Said Ali (2006)13 afirma que a opinião de que o gerúndio não ocorre no português europeu não pode ser confirmada e que o uso do gerúndio não pode ser levado à conta de “linguagem suspeita ou de modernice desmascarada”. O linguista levanta exemplos14 retirados de Camilo Castelo Branco, Frei Luís de Sousa e Camões para comprovar que o gerúndio é usado tanto em português europeu quanto em português brasileiro. Menon (2004), a exemplo de Said Ali, cita exemplos de textos antigos e modernos do português europeu, em que o gerúndio é uma forma recorrente, inclusive em perífrases verbais.

Conforme Tafner (2004), o caráter de estigma não se restringe apenas à construção verbo auxiliar + estar + gerúndio, comumente chamada de gerundismo, mas se entende também às construções estarei + gerúndio. Como se trata de um registro novo no português – pelo menos, não é de nosso conhecimento que o gerundismo tenha sido tratado em gramáticas da Língua Portuguesa (BECHARA, 2003; CUNHA, 1986; CUNHA, CINTRA, 2001; LUFT, 1976; ROCHA LIMA, 2001), - o fenômeno quase sempre tem sido visto de forma preconceituosa, recebendo juízo de valor baseado em questões de gosto e estilo15.

Para Possenti (2003), as formas “ir + estar + gerúndio” estão em perfeito acordo com a sintaxe do português, são absolutamente gramaticais. O autor afirma não ser a mesma coisa dizer “vou mandar” e “vou estar mandando”, enquanto a primeira locução marca apenas o futuro, a segunda marca futuro e duração.

13 Texto inicialmente publicado na Revista de Língua Portuguesa, Nº 4, março de 1920.

14 Said Ali (2006, p. 60 -66) não nos dá a referência completa dessas obras, mas transcrevemos aqui alguns

exemplos selecionados pelo linguista: 1) Vista de jardim. Escada ao fundo SUBINDO para um ângulo visível

da casa (CASTELO BRANCO, Camilo. Boêmia do Espírito. Porto, 1903, p. 53); 2) Acudiam cartas do

nosso arcebispo a miúde, escritas com muito calor, e PEDINDO a Sua Santidade declarasse a preeminência conhecida da Igreja de Braga sobre todas as de Espanha, AFIRMANDO constantemente que doutra maneira se não nos autos do Santo Concílio que cada hora se esperava se começasse (SOUSA, Frei Luís de. Vida de

D. Fr. Bertolameu dos Mártires, 2º tomo, edição rolandiana, p. 221.); 3) Não faltam ali os raios, os trêmulo

cometas IMITANDO (CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Canto 2, 90).

15 Na verdade, não parece haver dúvida de que o gerundismo seja um fenômeno novo português, logo não há

33 Perini (1995), ao analisar a frase “Manuel vai estar contando piadas”, afirma ser uma frase bem formada porque (a) o auxiliar no infinitivo (estar) é precedido de uma forma de ir e o gerúndio é precedido do auxiliar estar e (b) o infinitivo vem antes do verbo no gerúndio. Perini acrescenta que qualquer desobediência a essas regras dá como resultado uma frase mal formada ou, então, uma frase em que os dois verbos não formam um predicado complexo.

Em artigo intitulado “O gerúndio é só o pretexto”, assinado por Pereira Jr. (2005), são discutidas questões como nível de formalidade e grau de compromisso, com base em opiniões de professores como Maria Helena de Moura Neves e Evanildo Bechara. Segundo Neves, quando se diz ‘vou passar seu recado’, a referência é para a ação em si. Não se atém à sua duração. Com isso, amarra-se um compromisso, pois se garante que ele se cumprirá. Ao se usar o gerundismo, a ênfase passa a ser outra, afirma a professora, que não diz qual seria essa ênfase. Para Bechara, o que está em jogo pode ser a própria certeza do diálogo, o presente, “escrevo”, dá-nos certeza, “escreverei”, o futuro, pode ocorrer ou não, já na construção “vou estar escrevendo”, acrescenta-se a idéia de promessa, de não- compromisso com a noção de futuro. Para o gramático, gerundismo marca a oposição entre promessa e esperança. Em conformidade com Bechara, podemos acrescentar que as outras formas de futuro expressam esperança para o interlocutor de que a ação se realizará - embora sejam apenas intenções por parte do locutor, essas construções selam algum tipo de compromisso, mesmo não marcando a certeza de sua realização -, enquanto que o

gerundismo marca promessa por parte do locutor sem necessariamente marcar esperança de que essa ação se realizará, o locutor não se compromete com o interlocutor, marca, de antemão, a possibilidade de a ação não ser realizada, retirando de si a responsabilidade direta por sua realização.

Ao analisar uma frase em que aparece a sequência ir + estar + gerúndio, Sousa (1998) afirma que a frase expressa, simultaneamente, a dimensão aspectual através de estar + gerúndio e a dimensão temporal prospectiva, através do verbo ir na condição de auxiliar.

34 Nesse tipo de perífrase, Sousa diz que há a combinação das dimensões temporais e aspectuais, mas foi encontrado baixo número de ocorrências16.

Entre os textos que circulam na internet, em jornais e em revistas, o gerundismo tem sido tratado, de maneira preconceituosa, como vício de linguagem, praga, doença, mania, modismo, registro não-padrão, propagando-se a idéia de que essa construção é oriunda de traduções mal feitas do inglês, usadas por atendentes de telemarketing. Segundo Freire (2007a)17, em artigo intitulado Manifesto Antigerundista18, tudo começou quando alguém precisou traduzir uma frase do tipo “We'll be sending it tomorrow” por “Nós vamos estar mandando isso amanhã”.

Segundo Menon (2004), essa afirmação não se sustenta porque: a) os brasileiros teriam de ser bilíngues português-inglês e dominarem tal língua a ponto de permitir que a estrutura de uma língua interferisse na outra; b) a afirmação baseia-se na idéia de que basta o falante ouvir uma forma para passar a produzi-la incontinenti; c) a afirmação não leva em conta o fenômeno de variação/mudança que envolve as formas de futuro em português brasileiro, principalmente na linguagem oral, em que o futuro simples está sendo substituído pela forma perifrástica (ir + infinitivo). Para a autora, a diferença entre as construções (i) Amanhã, a essa hora, estaremos tomando sol na praia, (ii) Amanhã, a essa

hora, estaremos mergulhando no mar e as construções (iii) Amanhã, a essa hora, vamos

estar tomando sol na praia, (iv) Amanhã, a essa hora, vamos estar mergulhando no mar (os exemplos são de Menon) é o uso da forma para a expressão do futuro, pois o gerúndio presente nessas construções é o mesmo. A autora acrescenta que embora se possa atribuir uma interpretação progressiva a (i) e (iii), uma vez que tomar sol pode implicar períodos de tempo mais ou menos longos, o mesmo não se pode atribuir a (ii) e (iv), já que

mergulhar é um ato único, mesmo que se repitam os mergulhos. Dessa forma, Menon desconstrói a idéia de que o gerúndio implica sempre uma noção progressiva, já que nos exemplos (ii) e (iv) a interpretação é iterativa, ou semelfactivo, se for apenas um único mergulho para explorar a superfície submarina.

16 A dissertação de Sousa trata de aspecto em perífrases verbais, não houve levantamento quantitativo das

ocorrências.

17 Disponível em: <<http://www.scrittaonline.com.br/imprimir.php?id=1>> acesso em 03 de maio de 2007. 18 Ver anexo I.

35 Essa interpretação pontual do gerúndio, segundo Menon, ocorrre em outros tempos verbais, como no presente do indicativo, nas construções estar + gerúndio. A diferença entre (a) tomo remédios e (b) estou tomando remédios (os exemplos são da autora) é uma interpretação pontual para (b), já que podemos interpretar (a) como uma necessidade constante de se tomar remédios, como nos casos em que se tem uma doença crônica. Pode-se acrescentar que em (a) a noção aspectual veiculada é imperfectiva, o que não exclui as nuanças iterativas, já em (b) a noção é de aspecto perfectivo com nuanças iterativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DO CAPÍTULO

Neste capítulo, procuramos apresentar como o tempo futuro era codificado em Latim, sua posterior codificação em Língua Portuguesa, e o processo de variação que o envolve. Nessa tarefa, apresentamos também a variação por meio de perífrases gerundivas, objeto desta dissertação, que entraram em competição com as outras formas da língua para expressar tempo futuro.

O uso de perífrases gerundivas em português contemporâneo tem sofrido preconceito e tem sido chamado indiscriminadamente gerundismo, assunto que carece de uma discussão mais detalhada para caracterização desse fenômeno, apreciação de hipóteses sobre seu surgimento e de uma discussão sobre o preconceito linguístico, temas de nosso próximo capítulo.

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2. GERUNDISMO: VARIAÇÃO E PRECONCEITO LINGUÍSTICO

APRESENTAÇÃO

O uso das perífrases gerundivas na codificação de tempo tem sido objeto de discussão na mídia, disseminando-se a idéia equivocada de que este emprego constitui o que se passou a chamar de gerundismo. Sendo legítimo e prescrito nas gramáticas o uso do gerúndio em Língua Portuguesa, mesmo na formação de perífrases, faz-se necessário verificar as restrições, se houver, às perífrases emergentes e caracterizar o fenômeno chamado gerundismo.

Neste capítulo, proporemos uma definição de gerundismo baseada em critérios que o inclui como uma variante na codificação de tempo futuro em português brasileiro contemporâneo, apresentaremos os resultados de uma consulta feita a alunos da pós graduação em linguística da Universidade Federal do Ceará para sondar como eles percebem o fenômeno, discutiremos hipóteses que tentam compreender e ou justificar seu surgimento e trataremos de preconceito linguístico.