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A origem do gerundismo: uma hipótese

No capítulo I, verificamos a hipótese lançada sobre o aparecimento do

gerundismo em Língua Portuguesa ser proveniente de traduções do inglês e ficou constatado que essa hipótese é falha sob muitos aspectos. A forma emergente, o

gerundismo, é uma perífrase complexa, não esperada justamente porque contraria o

princípio do menor esforço ou princípio da economia linguística em termos estruturais. Segundo Labov (2001, p. 16-18), esse princípio é, em sua formulação, um princípio precisamente estrutural, segundo o qual, nós falamos tão rapidamente e com o

menor esforço possível, aproximando-nos sempre do limite em que nossos interlocutores podem nos pedir para repetir nossas sentenças. As mudanças dos sons da língua são atribuídas a esse fator. Labov argumenta que se esse princípio for aceito tal qual foi formulado, temos de afirmar que a redução fonética de uma forma pára exatamente antes do ponto onde a informação poderia ser perdida, o que necessita de uma primeira reformulação: nós falamos com o menor esforço possível para sermos entendidos por

nossos ouvintes, mas com o esforço suficiente para assegurar que seremos entendidos. Contudo, essa reformulação pressupõe que a mudança de sons destrói o significado, o que requer uma segunda reformulação: nós falamos com menor esforço possível que é

requerido para transmitir todo o significado que queremos expressar aos nossos ouvintes.

Labov sugere que se pode concluir dessa discussão que o princípio do menor

esforço pode falhar quando se focaliza o esforço para explicar a mudança; não raramente sendo identificado como um fator de comportamento tal como preguiça, descuido e

ignorância por parte do falante e atribuído à rapidez com que o falante produz uma sentença. Contudo, o linguista argumenta que o baixo nível de esforço associado à preguiça deveria ser correlacionado com a fala mais compassada, enquanto o nível de esforço associado ao descuido poderia ser associado à rapidez. Portanto, para um falante

53 descuidado, o baixo nível de atenção ou esforço dado às normas de se falar poderia combinar com o efeito de mecanismo temporal ou com o tempo curto para reduzir a informação fonética produzida; enquanto para a preguiça do falante, o efeito temporal poderia operar em direção contrária. Para ele, ignorância não tem nenhuma relação direta com o tempo ou com o princípio do menor esforço, visto que se os falantes ignoram um uso padrão e o valor distintivo entre determinadas palavras, as mudanças na língua não poderiam ser designadas pelo princípio do menor esforço.

Como explicar, pois, a origem de uma forma emergente, reconhecidamente estigmatizada, que deve ser evitada a qualquer custo, havendo, inclusive, manifestações na mídia para coibir seu uso e disseminação entre os falantes? Como essa forma poderia entrar em competição com outras formas de codificação de futuro, contrariando o princípio

do menor esforço? Com efeito, não se poderia falar em preguiça, descuido ou ignorância por parte dos falantes, visto que não há economia do ponto de vista estrutural, já que o falante utiliza muito mais material linguístico para marcar o tempo futuro, quando usa as perífrases gerundivas. Cabe questionar: o uso das perífrases gerundivas contraria, de fato, a

economia linguística?

É sabido, conforme discutido no capítulo 1, que o futuro simples em Língua Portuguesa é derivado de uma formação, inicialmente perifrástica na língua-mãe, o Latim, a partir da aglutinação do verbo habere, inicialmente auxiliar, + o infinitivo de um outro verbo, resultando numa forma simples e sendo produtivo nas línguas neolatinas. Mas esse processo que pressupõe variação e mudança nas línguas não é um processo acabado no português contemporâneo, uma vez que grande maioria das pesquisas variacionistas (Gibbon, 2000; Santos, 2000; Oliveira, 2006), que se ocuparam de tempo futuro, mostra que há um predomínio estatístico de frequência de uso do futuro perifrástico sobre o futuro simples, de forma que o processo parece ser cíclico e não linear.

A expressão de tempo futuro obedeceu a um esquema:

forma simples > forma perifrástica > forma simples > forma perifrástica amabo > amare habeo/habeo amare (em Latim)

54 Partindo-se desse fato, podemos lançar uma hipótese para o aparecimento da perífrase com três verbos, expressando tempo futuro. A forma simples foi decomposta em uma forma perifrástica, por exemplo amarei > vou amar; e essas formas coexistem no português contemporâneo com outras formas de expressão de futuro, como aquelas formadas pelo futuro simples + gerúndio estarei amando. Se o futuro simples não é tão recorrente em dados de fala, sendo substituído tanto em contextos formais quanto informais pelo futuro perifrástico (conforme Oliveira, 2006), é possível que, em estarei

amando, o falante substitua na primeira posição o verbo estarei (visto como auxiliar) por

vou estar, forma mais usada e reconhecidamente preferida para expressar tempo futuro, resultando em uma perífrase vou estar cantando. Vejamos o diagrama abaixo:

hei de estar > estarei > vou estar estarei amando > vou estar amando

Nesse caso, o falante mantém a codificação de tempo futuro com a perífrase ir (presente) + infinitivo, mas como sua necessidade não é a mera expressão de tempo futuro, mas também de aspecto e modalidade, por exemplo, o resultado é uma perífrase com gerúndio. Essa hipótese, também como as outras por nós refutadas, não foi testada cientificamente, mas está em acordo com o que se tem verificado no processo de codificação de tempo futuro na Língua Portuguesa.

Vamos retomar a discussão do princípio do menor esforço. Considerem-se os seguintes exemplos:

(18) Eu ligarei para a senhora na segunda-feira (se for possível, se o telefone estiver funcionando, se eu estiver trabalhando, se meu chefe autorizar etc).

(19) Eu vou ligar para a senhora na segunda-feira (se for possível, se o telefone estiver funcionando, se eu estiver trabalhando, se meu chefe autorizar etc).

(20) Eu vou estar ligando para a senhora na segunda (se for possível, se o telefone estiver funcionando, se eu estiver trabalhando, se meu chefe autorizar etc).

Não há dúvidas de que o tempo dos exemplos é futuro, as formas usadas para codificar essa função são, inclusive, intercambiáveis, sem prejuízo para essa codificação.

55 Contudo, há diferenças modais entre as formas: em (18), embora ainda se possa identificar um valor modal ligado ao temporal (há uma intenção segura, mais provável de se realizar uma ação), temos um futuro mais enxuto que revela basicamente uma ação que será executada na segunda-feira; em (19), há intenção menos provável de se realizar a ação expressa pela perífrase, marcando-se também o tempo futuro; mas, em (20), a incerteza de essa ação ser executada fica mais evidente pelo uso da perífrase com gerúndio. A propósito, o que está entre parênteses pode ser interpretado pelo interlocutor levando-se em consideração a forma em (20). Se se quisesse dizer o que está entre parênteses, em (18) e (19), teríamos de escrever, de fato, todo conteúdo dos parênteses, o que não parece necessário quando se usa a perífrase gerundiva. Como falar de economia linguística nesse caso? Não há dúvidas de que na escolha de uma forma simples em vez de uma forma perifrástica, há uma economia do ponto de vista estrutural, o falante usaria muito mais itens linguísticos para marcar o tempo futuro, nesse caso. Mas não se poderia falar nem mesmo de economia estrutural no caso do exemplo (20). Ao contrário, propõe-se que a perífrase gerundiva acumula outras funções e seu uso na língua evita que se acrescentem mais itens linguísticos para expressar modalidade (incerteza/dúvida/possibilidade, etc) e aspecto (duratividade, telicidade, pontualidade, iteratividade), por exemplo, constituindo- se uma alternativa para o falante expressar mais com menos itens linguísticos.