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SOBRE A UNIVERSIDADE

A UNIVERSIDADE E SEU PROCESSO DE PLANEJAMENTO INSTITUCIONAL

1.1. UNIVERSIDADE, GÊNESE E CONCEPÇÕES

1.1.2. CONCEPÇÕES DE UNIVERSIDADE

A idéia de universidade defendida por Karl Jasper (1883-1969), filósofo alemão cujo trabalho sobre o existencialismo influenciou a teologia, a psiquiatria e a filosofia modernas, é, de acordo com Ricouer (1983, p.11), a busca da verdade na comunidade de pesquisadores e estudantes, considerando que essa busca, sem constrangimentos, é um direito da humanidade. Esse é o fundamento da liberdade acadêmica, da autonomia da instituição universitária, definida positivamente pela responsabilidade a respeito do saber que pode ser vista de certa forma como um idealismo.

Na concepção idealista, desenvolve-se uma idéia de universidade a partir de uma perspectiva interna, de normas próprias à instituição, segundo as quais a ênfase recai no ensino, na pesquisa ou na indissociabilidade entre ensino e pesquisa, propiciando a identificação de três modelos de universidade: a universidade como um centro de educação, como uma comunidade de pesquisadores, ou como um núcleo de progresso.

Na concepção funcionalista, a universidade é vista a partir de uma perspectiva externa, ou seja, suas normas vêm do ambiente externo, da sua relação com os serviços que pode prestar a uma nação, com uma preocupação maior de utilidade coletiva do que com a autonomia da instituição, com ênfase na questão sócio-política ou sócio-econômica, identificando-se com um centro de poder ou com um centro de produção.

A universidade como um centro de educação fundamenta-se na conservação e transmissão do conhecimento, na universalidade do saber e na autonomia da instituição, podendo ser observadas essas características nas antigas universidades inglesas de Cambridge e Oxford. Essa é a idéia central da obra de John Henry Newman (1801-1890), um dos mais conhecidos pensadores de sua época, fundador e dirigente do movimento de Oxford, que buscou revigorar a Igreja Inglesa. Em 1845, deixou a igreja anglicana e converteu-se ao catolicismo romano, logo em seguida ordenou-se padre e, em 1879, foi nomeado cardeal. Segundo Newman (1999) “o objetivo da universidade é o verdadeiro engrandecimento do

pensamento que possibilita visualizar muitas coisas ao mesmo tempo”. Embora passado aproximadamente um século e meio desde que Newman publicou os estudos que fundamentaram sua concepção de universidade (1873), as idéias contidas nesses escritos revelam-se mais importantes nos dias de hoje que durante a era Vitoriana.

Nessa concepção, a universidade é um lugar de ensino do saber universal, tendo como objetivo a difusão e a extensão do saber intelectual, como tarefa autônoma, pois, na visão de Newman (1999), se o objetivo da universidade fosse a descoberta científica não haveria motivos para que ela tivesse estudantes, uma vez que considera descobrir e ensinar como funções distintas e dons também distintos, dificilmente reunidos em uma mesma pessoa. A educação é assim, entendida como liberal, considerada em si mesma, simplesmente, cultura da inteligência, tendo como objetivo a perfeição intelectual, tendo como resultados a formação de um indivíduo de gosto refinado, espírito leal, justo e sereno, conduta nobre e cortês, virtudes estas acompanhadas de um vasto saber. Tudo isso traduz a preocupação britânica de uma formação ao mesmo tempo moral e intelectual.

Ainda de acordo com Newman (1999), a universidade não deve ficar centrada na formação profissional, pois a única preparação profissional verdadeiramente eficaz a longo prazo, na sua visão, é a educação liberal: se suas faculdades são desenvolvidas, um homem pode tirar partido dos conhecimentos de outro, caso contrário, não aproveita nem mesmo seus próprios conhecimentos. Newman encontra apoio para suas considerações no comentário do economista John Stuart Mill, quando este afirma que antes de serem advogados, médicos, comerciantes ou industriais os homens são homens. Portanto, se forem capazes e sensatos, se transformarão por si mesmos em profissionais capazes e sensatos. Uma educação universitária deve preparar pessoas inteligentes para abordar a vida e seu trabalho sob ângulos não acadêmicos, mas deve, essencialmente, encorajá-las a refletir.

A universidade como uma comunidade de pesquisadores é uma concepção que tem origem na Alemanha, notadamente com a fundação da Universidade de Berlim, em 1810, inspirada no trabalho dos filósofos Kant, Fitche, Schelling e Schleiermacher, tendo como sistematizador dessas idéias Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand, Barão von Humboldt (1767 -1835), fundador da universidade de Humboldt, em Berlim. A obra de Humboldt foi reestudada por Karl Jasper. De acordo com a concepção de Humboldt e Jasper, a universidade reconhece a pesquisa científica como objetivo principal, orientada por uma reflexão filosófica, fundada no princípio da unidade do ser, articulando-se para representar a totalidade dos conhecimentos e integrar cada pesquisador numa rede de relações que o aproxime da unidade e o confronte com a totalidade (DREZE; DEBELLE, 1983).

Dreze e Debelle (1983, p.50-52) afirmam que Karl Jasper concebia o ensino universitário como uma iniciação à pesquisa, cujo objetivo primordial é estimular a reflexão pessoal. Nesse ambiente de pesquisa, mesmo quando os estudos universitários preparam para o exercício de uma profissão intelectual, a atitude científica, fundamentada no caráter metódico do raciocínio e da descoberta, permanece presente, considerada imprescindível para propiciar aplicações inovadoras da prática. Nessa concepção, a educação universitária é um privilégio reservado a uma elite, atraída pela idéia da verdade, para quem o estudo e a pesquisa constituem uma questão vital de participar do mundo a serviço da ciência e da verdade. A liberdade acadêmica constitui requisito fundamental, implicando ausência de censura intelectual e autonomia administrativa.

A atitude científica autêntica tem uma dimensão ética e desenvolve qualidades morais, ultrapassando a simples instrução para construir uma verdadeira formação: primeiro, pela educação para a objetividade, para a aceitação da crítica e para a reflexão pessoal; segundo, pela experiência; e, por último, pelo risco do conhecimento que supõe a coragem de querer descobrir. Assim, concebendo o ensino universitário como aprendizagem da atitude científica refutar-se-á a hipótese de não se reunir em uma só pessoa qualidades próprias de pesquisador e professor, defendida por Newman (1999).

A universidade como um núcleo de progresso parte das reflexões filosóficas de Alfred North Whitehead (1861- 1947) - matemático inglês que se tornou um filósofo americano - sobre a prática da educação, em seus estudos desenvolvidos em Cambridge e Harvard, segundo os quais uma nação deve guardar uma estreita relação entre seus elementos progressistas, de forma que o estudo e o lugar público sofram influências recíprocas. As universidades são, nesse caso, os principais agentes da fusão de atividades progressivas num instrumento eficaz do progresso, observando-se que as nações desenvolvidas são aquelas onde as universidades são florescentes (DREZE; DEBELLE, 1983, p.64).

A aspiração da sociedade ao progresso inspira essa concepção de universidade, que coloca como princípio a utilidade da educação, para que a cultura e a ciência desemboquem na ação, contribuindo para o progresso, ao invés de constituírem um fim em si mesmas. Para que isso ocorra, ou seja, para que a universidade possa contribuir efetivamente para o progresso da sociedade, verifica-se a necessidade de uma universidade independente em relação ao estado, uma vez que as condições de progresso numa sociedade não se identificam necessariamente com as necessidades políticas do Estado.

Segundo Dreze e Debelle (1983, p.66-68), Whitehead, nessa visão, afirma que a missão da universidade é ligar a imaginação à experiência, o entusiasmo criador à ciência

adquirida, reunindo jovens e adultos, estudantes, professores e pesquisadores numa reflexão inventiva sobre todas as formas do saber, fundindo duas atividades: a conservação e a transmissão do conhecimento adquirido e a pesquisa criadora. A simbiose da pesquisa e do ensino numa mesma instituição é vital, pois esses são os motores que impulsionam o progresso. Permite ao ensino manter-se constantemente no topo do progresso trazido por pesquisadores e permite, ao mesmo tempo, que o contato com os estudantes faça a pesquisa rejuvenescer. As universidades devem, então, para cumprir sua missão, incentivar a pesquisa fundamental nas disciplinas de base, a pesquisa interdisciplinar fora da universidade, e a pesquisa social, tendo em vista sua posição autônoma, fora do jogo político e das pressões sociais.

Sem sombra de dúvida, encontram-se nas universidades americanas traços que possibilitam identificar essa concepção de universidade, menos aristocrática que as concepções defendidas por Newman e Jasper. Entretanto, nos Estados Unidos, existe uma rica diversidade de instituições universitárias, fazendo com que grandes centros de pesquisa como Harvard ou Chicago, por exemplo, difundam suas experiências pedagógicas e descobertas científicas para toda a rede de ensino superior, tornando-se núcleos de progresso.

A universidade como um centro de poder, tem seu melhor exemplo na França, ligada à figura de Napoleão que tinha sobre o ensino superior algumas idéias que deixaram marcas nas estruturas atuais do ensino superior francês, apesar das múltiplas reformas tentadas a partir do século XIX. Sua concepção de poder era totalitária, e para alimentá-la via na instrução pública uma forma de se operar a “napoleonização” das consciências, ou seja, uma fonte de poder com uma finalidade sócio-política. Assim, a idéia subjacente de universidade é a de um serviço público do Estado, subjugado ao poder imperial, assumindo uma função geral de conservação da ordem social, por meio da difusão de uma doutrina comum (DREZE; DEBELLE, 1983, p.89).

Essa concepção de universidade estava fundamentada nos preceitos da igreja católica, na fidelidade ao imperador, e na obediência aos estatutos do corpo docente que tinham por objeto a uniformidade da instrução voltada para formar para o Estado cidadãos ligados à sua religião, aos seus princípios, à sua pátria e à sua família. A universidade, segundo essa concepção, foi um instrumento de política, de poder e de regime, à qual estava reservado o monopólio da instrução pública. Os professores eram rigidamente controlados como um verdadeiro exército, a serviço da ordem social, contrastando totalmente da idéia de uma comunidade autônoma voltada à pesquisa e ao ensino.

A universidade francesa tornou-se, basicamente, um órgão de estruturação ou de integração sócio-profissional, conferindo, por meio das faculdades, diplomas que asseguravam aos egressos o acesso a determinadas profissões como direito, medicina e teologia, ou a possibilidade de ensinar nas escolas, para os formados nas áreas de letras e ciências. O maior prejuízo que o imperialismo francês causou à educação foi a destruição da idéia de universidade propriamente dita, notadamente no aspecto da autonomia, pois, segundo Dreze e Debelle (1983, p.91-92), em pleno século XX essa autonomia é conferida de direito, mas não é praticada de fato, uma vez que tanto as universidades quanto as faculdades dependem do governo para decisões importantes, tais como: reforma de programas, regulamentação da política de investimentos, nomeação, promoção e remuneração de professores. Assim, pode-se afirmar que a concepção napoleônica de universidade “funcionalista” como centro de poder encontra-se diametralmente oposta à visão idealista, concebida por Newman, Jasper e Whitehead, comentada anteriormente.

A universidade como fator de produção foi a idéia predominante na extinta União Soviética. Orientada pela organização sócio-política marxista-leninista da época, foi considerada como fator estratégico na transformação da sociedade soviética. Tinha como finalidades: (1) formar especialistas altamente qualificados; (2) realizar pesquisas que pudessem contribuir para resolver os problemas da sociedade comunista; (3) produzir manuais e instrumentos didáticos de alta qualidade; (4) formar professores e pesquisadores; (5) assegurar formação avançada aos especialistas; (6) difundir os conhecimentos científicos e políticos entre a população; e, (7) estudar os problemas ligados à utilização dos diplomados e ao melhoramento de sua formação (DREZE; DEBELLE, 1983, p.102-103).

O ensino e a pesquisa na União Soviética moviam-se num quadro ideológico (marxismo-leninismo) preciso, com uma finalidade social e política bem delimitada: contribuir para a edificação da sociedade comunista, voltando-se prioritariamente para o crescimento econômico. O ensino e a pesquisa constituem importantes elementos do plano de desenvolvimento econômico, social e cultural da nação, estando integrados ao planejamento geral da economia. Assim, a atividade das universidades foi determinada pelas necessidades da nação de determinados especialistas, notadamente nas áreas de ciência e tecnologia. O traço forte da educação política obrigava os estudantes a cursarem disciplinas que contemplassem o estudo da história do partido comunista, a economia política, o materialismo dialético e histórico, bem como a teoria política marxista-leninista.

O governo e o partido comunista soviético tinham representantes nos órgãos diretores das universidades, e todos os altos dirigentes eram nomeados e demitidos pelo Ministro de

Ensino Superior. Observa-se que, assim como na França napoleônica, a universidade na União Soviética ficou desprovida de sua característica essencial que é a autonomia, ficando totalmente dependente da autoridade central. Essa idéia contrasta com a concepção idealista de uma comunidade livre para buscar a verdade, longe de uma pesquisa científica desinteressada e de uma formação do tipo cultura geral.

Visando aprofundar o tema do presente tópico, faz-se necessária uma abordagem da universidade no Brasil, cuja origem, diferentemente da maioria das culturas ocidentais, é bastante recente, colocando o país em profunda desvantagem quando comparado até mesmo aos países da própria América Latina, apresentando indicadores educacionais que desvelam uma face das mais perversas da desigualdade e da injustiça social, porque auto-reprodutiva. Assim, o Brasil, classificado como a décima economia do mundo, chega ao século XXI com uma grande dívida com a sociedade, pois tem reproduzido as condições de pobreza e exclusão social, que poderiam ser reduzidas com o auxílio da educação.