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2 EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E/OU TECNOLÓGICA: CONCEPÇÕES E PERSPECTIVAS

2.6 CONCEPÇÕES DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA

Na premissa de ampliar o debate sobre a origem da educação tecnológica, assim como sobre os desafios submetidos à educação brasileira como uma preparação direcionada exclusivamente para o trabalho, compreendido e referido por Garcia e Lima Filho (2004), faz- se menção ao conceito de politecnia referido por Saviani (2003a, p. 132), compreendendo-o que a sua referência é “a noção de trabalho, o conceito e o fato do trabalho como princípio educativo geral” , em face de que a educação organizada correspondia às necessidades do exercício do trabalho e, segundo a sua realidade, tanto para sua efetivação quanto para seu planejamento e controle.

Politecnia, portanto, de acordo com a abordagem desenvolvida por Saviani (2003a, p. 140), “diz respeito ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo moderno.” Para o autor (2003a), essa concepção de educação relaciona-se “aos fundamentos das diferentes modalidades de trabalho e tem como base determinados princípios, determinados fundamentos, que devem ser garantidos pela formação politécnica”, de forma a exercer os diferentes tipos de trabalho, compreendendo-se, todavia, que o seu caráter e a sua essência, é para além de uma simples condição de adestramento no exercício de uma atividade produtiva. O autor (2003a) enfatiza que como a produção moderna está fundamentada nos “princípios científicos sobre os quais se funda a organização do

trabalho moderno”, articulando tanto trabalho manual quanto intelectual, a educação politécnica implica “uma formação que, a partir do próprio trabalho social, desenvolva a compreensão das bases da organização do trabalho na nossa sociedade e que, portanto, nos permite compreender o seu funcionamento”. (SAVIANI, 2003a, p. 140-142).

Esse trabalho social real, para Saviani (2003a, p. 142), seria uma das exigências a essa formação, “além dos aspectos ligados à articulação entre pesquisa e ensino”, o que caracterizaria uma “formação politécnica.” Nesse sentido, para o autor, a partir dessa exigência, é possível conjugar formação teórica com formação prática, ou seja, a união da teoria com a prática, de forma que, “ao praticar, se compreendem, de forma cada vez mais aprofundada, os princípios que estão direta e indiretamente na base desta forma de se organizar o trabalho na sociedade”, possibilitando a união entre formação intelectual e trabalho produtivo, compreendida pelo autor como “educação politécnica.” (p. 142).

Destaca-se, ainda, que, para o autor (2003a), a “utilização da expressão ‘educação politécnica’ com as suas derivações ‘escola politécnica’, ‘ensino politécnico’, ‘instrução politécnica’ etc.”, caracterizam-se como expressões “para nos referirmos a uma concepção de educação que busca, a partir do desenvolvimento do capitalismo e de sua crítica, superar a proposta burguesa de educação.” (SAVIANI, 2003a, p. 146). Assim, o autor (2003a, p. 146) interpreta que “essa denominação é preferível à ‘educação tecnológica’, pois, hoje em dia, é esta última expressão que nos remete imediatamente à concepção burguesa.”

No que tange à educação politécnica, todavia, faz-se importante ainda considerar que há discordâncias nesse debate. Nosella (2007, p. 7), em “Trabalho e perspectiva de formação dos trabalhadores: para além da formação politênica”, faz referência sobre a “crítica que Manacorda faz da educação politécnica, ‘predileta dos burgueses’.” O autor (2007) destaca que Mancorda “defende, marxianamente, a ‘educação tecnológica’, embora prefira mais ainda a marxiana expressão ‘educação omnilateral’.” Nosella (2007, p. 9) interpreta que “a fórmula marxiana de formação omnilateral ou de escola unitária, para todos, é antes de tudo a superação da dicotomia entre trabalho produtor de mercadorias e o trabalho intelectual”, mesmo porque, conforme destaca o autor, o trabalho intelectual nem era considerado trabalho, e assim passou a ser devido ao desenvolvimento do modelo industrial de produção de mercadorias. Nesse sentido, verifica-se que o autor (2007) reforça a estratificação da formação intelectual, conforme anteriormente

explicitada, em face de novas exigências do setup produtivo estabelecido pelos detentores da produção social.

Nosella (2007) também esclarece que “há várias razões políticas que nos desaconselham o uso de termo ‘educação politécnica’ como bandeira, entre nós, para as propostas marxistas”, esclarecendo que a principal delas “refere-se ao sentido que o senso comum letrado atribui a esse termo.” (p. 8).31 Em sua interpretação, “na luta político-ideológica pela hegemonia, as propostas devem ser apresentadas numa linguagem moderna e acessível basicamente a todos”, em face de entender que as pessoas não estão obrigadas “a realizar estudos de caráter histórico- filológicos para entender o termo politecnia.” (NOSELLA, 2007, p. 8).

Nesse debate, verifica-se o tensionamento entre trabalho e educação, não perdendo de vista a apropriação desta pelo sistema capitalista com vistas a obter a força de trabalho necessária à realização da produção. Considera-se importante apresentar a compreensão de Machado (1991) sobre “polivalência” e “politecnia”:

− Polivalência significa simplesmente um trabalho mais variado com uma certa abertura quanto à possibilidade de administração do tempo pelo trabalhador e não importa necessariamente mudança qualitativa das tarefas. Representa nada mais que uma racionalidade formalista com fins instrumentais e pragmáticos calcada no princípio positivista de soma das partes. Não significa obrigatoriamente intelectualização do trabalho tratando-se de equipamentos complexos. É suficiente, para ser um trabalhador polivalente, o recurso aos conhecimentos empíricos disponíveis, permanecendo a ciência como algo que lhe é exterior e estranho.

− Politecnia representa o domínio da técnica em nível intelectual e a possibilidade de um trabalho flexível com a recomposição de tarefas em nível

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Nosella (2007, p. 5) esclarece que para “o senso comum letrado, o termo ‘politécnico’ torna sua significação da etimologia grega, da história da Escola Politécnica de Paris e, em geral, do ensino superior de engenharia (as ‘Polis’). Considero importante lembrar a École Polytechnique de Paris porque essa escola, junto à etimologia, tem máxima importância na construção da significação do termo. É a escola em que se formou Augusto Comte, entre outros nomes ilustres. Sabe-se que era com base nesse modelo de escola que o filósofo positivista almejava reformar todo o sistema de ensino. Essa escola foi referência também para Marx e para Lênin, que certamente dela se lembravam quando escreviam sobre o ensino e a educação politécnicos.”

criativo. Supõe a ultrapassagem de um conhecimento meramente empírico, ao requerer o recurso a formas de elementos mais abstratas. Vai além de uma formação simplesmente técnica ao pressupor um perfil amplo de trabalhador, consciente, e capaz de atuar criticamente em atividades de caráter criador e de buscar com a autonomia os conhecimentos necessários ao seu progressivo aperfeiçoamento. (MACHADO, 1991, p. 7).

Do ponto de vista da formação, Machado (1991, p. 7) destaca que uma formação politécnica exige o desenvolvimento das capacidades de “compreensão teórica e prática das bases da ciência”, o que não é possível a partir do modelo simplificado de escolarização para uma determinada condição de empregabilidade, porque parte da formação de uma base de conhecimentos é que possibilita ao trabalhador interagir com novas tecnologias. Em se tratando da formação polivalente, essa dirige-se para o campo das aplicações, mantendo o trabalhador refém aos receituários tecnológicos e a presença temporária de consultores para resolver os problemas originados a partir do uso das tecnologias emergentes; para esses trabalhadores, a tecnologia não é compreendida em sua totalidade, apenas assimilada do ponto de vista do uso.

Para Saviani (2003a, p. 139), somente “a superação desse tipo de sociedade é que viabiliza as condições para que todos possam dedicar- se, ao mesmo tempo, ao trabalho intelectual e ao trabalho manual.” É importante, todavia, considerar-se que, com a crescente incorporação do conhecimento aos processos produtivos, o trabalho manual não se transforma em trabalho intelectual, mesmo porque trabalhos diferentes mobilizam diferentes capacidades de intelectualidade, e o que está incorporado a esses processos, do ponto de vista da ação da intelectualidade, é o resultado da inteligência do homem. Logo, o trabalho, mesmo sendo desenvolvido a partir de outra configuração produtiva, perpassada pela apropriação de ciência e tecnologia, continuará sendo estratificado porque esta é apropriada enquanto recurso para o sistema capitalista e produção da mais-valia. De acordo com o autor (2003a), “a ideia de politecnia se esboça nesse contexto, ou seja, a partir do desenvolvimento atingido pela humanidade no nível de sociedade moderna, da sociedade capitalista, já detectando a tendência do desenvolvimento para outro tipo de sociedade.” (SAVIANI, 2003a, p. 139).

É preciso, contudo, considerar-se que estamos inseridos num sistema de relações sociais capitalistas de produção e que para potencializar as forças produtivas desse sistema, com vistas a mantê-lo, porém elevá-lo a outro estágio desenvolvimentista, é preciso estreitar as relações entre trabalho e educação, assim como aprofundar a relação entre o trabalho com ciência e tecnologia, fazendo de instituições educacionais, especializadas ou não, a correia transmissora desta necessidade. A escola, portanto, é fruto dessas relações que estão imbricadas, em face de, como afirma o autor (2010), não haver “uma dissociação real entre os processos educativos – ou seja, a produção intelectual – e os processos produtivos – isto é, a produção material da vida” (LIMA FILHO, 2010, p. 90); logo, a relação trabalho e educação se dá de uma forma integrada e a formação profissional está subordinada a essa relação. Quanto à relação trabalho, ciência e tecnologia, o autor (2010) argumenta que não concebe “ciência e tecnologia dissociadas das relações sociais de produção, mas sim condicionadas por estas”, caso contrário, e assim corrobora-se com o autor, elas viram meras abstrações, em face de serem tomadas como “categorias em si” e não “considerá-las na dimensão ‘para si’ ”, ou seja, o autor pondera que é preciso superar o caráter utilitarista-produtivista direcionado à conquista da mais-valia para “o seu significado no sistema de relações sociais.” (LIMA FILHO, 2010, p. 90).

Ainda com relação a essa compreensão apresentada pelo autor (2010), Lima Filho e Queluz (2005, p. 4) afirmam que a ciência e a tecnologia “são construções sociais complexas, forças intelectuais e materiais do processo de produção social”, entretanto, por si só, não determinam, nem poderiam, determinar a realidade porque se constituem como resultado da ação do humano, “trabalho, relações sociais objetivadas”. Nesse sentido, Lima Filho (2010) apoia-se em Marx (2008, p. 428) para apresentar a relação do homem com a tecnologia, nos seguintes termos: “A tecnologia revela o modo de proceder do homem para com a natureza, o processo imediato de produção de sua vida, e, assim, elucida as condições de sua vida social e as concepções mentais que delas decorrem.”

Avalia-se que o contexto referido por Lima Filho (2010) configura-se como um contexto que necessita de uma ação por esse mesmo homem, com vistas à superação dessa condição utilitarista- produtivista que, na contemporaneidade, verticaliza-se numa perspectiva densa e de forte apego à pura materialidade, não enquanto um benefício estendido, mas como uma conquista individualista e possessiva que nega o desenvolvimento societário, em sua completude. Marx e Engels

(1992) já compreendiam que a emancipação do humano somente poderia ocorrer a partir do momento em que se introduzisse um tipo de ensino o qual imbricasse o trabalho manual com o trabalho intelectual e, também, que substituísse a necessidade pela felicidade. Há de destacar- se, todavia, que a divisão social do trabalho, em nome da produção, faz com que o homem seja compartimentalizado a níveis de ação e, ainda, diferenciado com relação ao grau de importância e necessidade, e assim oportuniza o estabelecimento de uma hierarquia diversificada, tanto na horizontal quanto na vertical, que se complexifica com a incorporação crescente da ciência e da tecnologia aos processos relativos à produção, compreendendo-se a produção para além da pura modificação da materialidade, seja ela natural ou processada.

Para embasar essa compreensão, faz-se referência ao documento da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) (2000) intitulado “Formação de Recursos Humanos para a Gestão Educativa na América Latina”, no qual a organização afirma que as novas formas de organização do trabalho exigem crescente demanda por novas formas de qualificações, requerendo da escola uma educação mais flexível; tal documento afirma, ainda, que esse é um dos requisitos do novo tipo de trabalhador, polivalência e novas habilidades cognitivas, em face das novas tecnologias (sobre a nota de rodapé número dois deste documento) porque ela explicita o esfacelamento do trabalho e a coisificação do trabalhador, nos seguintes termos:

Alguns analistas como Benjamin Coriat assinalam que a introdução de novas tecnologias e novas formas de organização do trabalho têm dado lugar ao surgimento de novas figuras de trabalhador: o operário fabricante, o tecnólogo e o administrador (ou gestor). Essas figuras representam modelos de trabalhadores polivalentes, que têm maior conhecimento do processo e do produto: o operário fabricante tem, por características, sua polivalência para o conjunto de tarefas da oficina, é o que mescla tarefas de trabalho direto e indireto com um conjunto de máquinas. Entende o que faz porque lhe explicaram e aprende manipulando conjuntos de tarefas cada vez mais complexos; o trabalhador tecnólogo não só pode fazer o anterior, mas, além disso, tem capacidade de realizar diagnósticos e otimizar o rendimento das máquinas por meio de melhorias simples, ruas que

podem ser importantes, e, finalmente, o trabalhador administrador, que tem capacidade técnica e também de cálculo econômico implícito, ou às vezes explícito, que significa tarefas de gestão econômica. (UNESCO, 2000).

Há de considerar-se, todavia, que essa sociedade se constitui como um espaço no qual se aprofunda o processo de complexificação da tecnificação que na interpretação de Machado (1991) “é policêntrico”, em face de repercutir em todos os níveis da sociedade, segundo um ritmo estabelecido pela inovação tecnológica, que se apoia na capacidade das TICs, influenciando de uma forma geral nos processos sociais, como a educação. Nesse sentido, é possível perceber que o ritmo de produção, desenvolvimento e aplicação do conhecimento passou a ser determinante sobre a estrutura ocupacional, reduzindo o número de trabalhadores necessários em um determinado processo industrial, porque ele foi automatizado, inclusive, alterando a forma de controle dessa força produtiva, pois o trabalhador passa a ser uma extensão do mecanismo ao qual se vincula.

Esse espaço redimensionado pelas forças capitalistas tende a fazer exigências contraditórias e crescentes à escola na premissa de atender as suas necessidades de trabalhadores formados a partir de uma concepção politécnica, que leve em conta “a compreensão teórico- prática das bases das ciências contemporâneas”, com vistas a formar o profissional criativo, crítico e reflexivo. A grande massa de trabalhadores, contudo, continua sendo a do trabalhador polivalente que se faz praticamente inserido numa determinada condição de trabalho, mediante programas de treinamento em serviço.

Dessa forma, avalia-se que as questões conceituais elaboradas pelos autores citados nesta seção, de acordo com a sua época, caracterizam-se como fundamentos para, a partir dessa apropriação, desenvolver-se uma análise sobre a política brasileira para a educação profissional e tecnológica, de forma a se verificar se realmente a educação profissional e tecnológica do MEC está devidamente formalizada do ponto de vista de uma política institucional que supere a qualificação do humano para apenas uma adequação ao trabalho.

3 A EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA NO BRASIL

No país subdesenvolvido, mais grave do que a escassez real de bens de fundo é a ilusória posse das forças e instrumentos produtivos instalados no espaço geográfico nacional, porém de fato ausentes do espaço existencial do povo. Não lhe pertencem diretamente. Representam a forma maligna de alienação, a que substitui o povo do próprio país por um outro, alheio e exterior, o qual, sendo o verdadeiro possuidor das instalações produtivas sediadas na área pobre, assume em face da nação parasitada, que disso não chega a ter consciência, o papel de “melhor parte do povo”, a mais avançada, empreendedora e por isso qualificada para conduzir o processo de desenvolvimento econômico do país deficiente.

(Vieira Pinto 2005, p. 253)

Esta seção visa apresentar como o Estado brasileiro desenvolveu essa modalidade de educação e problematizar se realmente ela constituiu-se como uma educação tecnológica, ou apenas como um ensino profissional, que não oportuniza aos brasileiros a perspectiva de uma formação humana.

Considera-se relevante, segundo o propósito estabelecido com relação ao movimento de resgate histórico, apresentar a visão de autores brasileiros que pesquisam, de uma forma geral, a educação brasileira e desenvolver articulações histórico-sociais que explicitem como o Estado brasileiro chega ao respectivo modelo educacional, da formação de tecnólogos. Nesse sentido, avalia-se que a manifestação de autores brasileiros e suas convicções contribuem significativamente para confrontar o trabalho de rastreamento histórico realizado sobre a educação profissional, principalmente no que se refere ao modelo de educação superior forjado por dentro do Estado brasileiro burguês, relativo à modalidade Educação Tecnológica, em face de verificar-se, de acordo com as evidências apontadas na seção 2, que se trata de formar homens para o sistema produtivo.

Para realizar esse resgate histórico, parte-se da premissa de que o modelo contemporâneo de educação que suporta os CSTs tem origem numa perspectiva de ensino historicamente modelada com vistas a outros fins, porém que foi apropriada e reformada para a formação de

tecnólogos. Assim sendo, avalia-se apropriado desenvolver-se um recorte na historicidade da educação brasileira de forma a buscar-se apresentar estas referências, iniciando com o ensino de ofícios por este constituir-se, historicamente, como uma preparação para uma determinada condição de trabalho.