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O Conde que veio da antiga Valáquia, hoje Transilvânia, para viver como um mito

Drácula face à imortalidade: Sob o signo da remitologização

2. Do mito do Drácula ou como um mistério tremendo se pode transformar em fascinante: as delícias do horror

2.1 O Conde que veio da antiga Valáquia, hoje Transilvânia, para viver como um mito

Este ponto assim se inicia: era uma vez um conde vivo-morto, chamado Drácula, que chegou a Whitby (Inglaterra) no meio de uma tempestade e envolto num forte manto de nevoeiro. Vinha dentro de um caixote de terra, e quando a escuna Demeter encalhou o conde vampiro transformou-se num cão. E se no alto mar se alimentou do sangue dos marinheiros, em terra rapidamente procurou saciar-se com o sangue feminino:

verificou-se que a escuna é russa, de Varna, e se chama Demeter. Navega- va com lastro de areia, tendo apenas um pequeno carregamento consti- tuído por um certo número de grandes caixotes de terra. [...] mas o mais estranho de tudo, no instante em que a costa foi tocada, um cão imenso surgiu no convés, como se atirado pela colisão, e, correndo para a frente, saltou da proa para a areia. Indo direito para o penhasco íngreme, onde o cemitério paira sobre a viela que vai dar ao molhe oriental [...] (Stoker, 2014, p. 86, 88).

Desde logo, importa afirmar, como já o enunciamos na nossa introdução, que Drá- cula, não se esgota de todo no chamado “mito literário” (Fierobe, 2005, p. 14), ainda que este conheça um grande sucesso e posteridade, pela simples razão da sua figura mítica transcender, quer os vários géneros literários (romance histórico, ciência ficção, literatura infantil, etc.), quer o personagem histórico, Vlad Tepes, O Empalador, que viveu na Idade Média, reinando na Valáquia, entre os anos de 1456 e 1462 (Cazacu, 1996, 2008, 2011, p. 117-174; Boia, 2005, p.21-33)12. Deste modo, Drácula assume o estatuto de mito porque é transpessoal, universal e transhistórico-cultural e, como tal, é arquetípico no sentido que é radicalmente exemplar no modo como dá conta, como já o dissemos no princípio, de um

dos maiores desejos e obsessões da humanidade de sempre – o da imortalidade: “Ela [a fi- gura do vampiro] exprime o desejo louco de eternidade daquilo que é para o ser humano o escândalo supremo: a morte” (Bozetto; Marigny, 1997, p. II). Para exprimir este tipo de desejo, o mito de Drácula narra um conteúdo que, no nosso caso, corresponde ao próprio romance de Bram Stoker; possui uma estrutura e função próprias, além da natureza da sua substância simbólica implicar um valor pragmático e filosófico de uma amplitude que dá sempre que pensar (Durand, 1984, p. 64; Eliade, 1999, p. 1392-1397; Gurdorf, 1984, p. 57-86, p. 303-352; Wunenburger, 1998, p. 110). Neste contexto, importa sublinhar que a história e o mito, no caso de Drácula, se entrelaçam, visto que este mito encontra as suas raízes históricas em três figuras históricas: em Vlad III (1431-1476), Príncipe da Valáquia, conhecido também por Vlad, o Empalador (em romeno: Vlad Tepes); na condessa “san- guinária” chamada Erzsébet Bathory (1560-1614) e noutro personagem sinistro chamado Gilles de Rais (1400-1440). O denominador comum a estas três figuras sinistras é o seu gosto sinistro e macabro pelo sangue das suas vítimas: Vlad III comprazia-se no meio do sangue de homens, mulheres e crianças; Erzsébet Bathory bebia e banhava-se no sangue de dezenas de mulheres jovens e Gilles de Rais bebeu o sangue de centenas de crianças (Guérin, 2003, p. 91-93)13.

A conjunção destas três personagens sinistras conferiu à figura de Drácula do ro- mance de Bram Stoker o seu caráter diabólico e horripilante. Se a este caráter acrescentar- mos os elementos do décor sombrio da Transilvânia e dos Cárpatos, onde Stoker situou o castelo do Drácula, e, muito especialmente, a figura sinistra e hedionda do conde Drácula com todos os seus poderes, nomeadamente de metamorfose (lobo, morcego, qualidade de aumentar e de diminuir etc.), as suas limitações, a sua adoração pelo sangue, que bebia das suas vítimas particularmente femininas e belas, assim como a trilogia do crucifixo, da hóstia sagrada, e da água benta, além da sua relação com o mundo infernal teremos então pistas suficientes para encararmos Drácula como um mito. Por outras palavras, este mito foi elaborado modelado pela tradição histórica, literária, popular na base, como atrás o dis- semos, das ações cruéis e sanguinárias extraordinárias cometidas por Vlad Tepes (o per- sonagem histórico enquanto tal), nomeadamente contra os húngaros, da condessa “sangui-

nária” e do assassino de crianças inocentes14 e na sua relação com chamado “inframundo” (l’Immonde em francês e Underworld em inglês)15 ou, se se quiser, com o “mundo infernal”, o “nundo das trevas” (reino de Hades: o deus do mundo inferior e dos mortos): “O drac, é o diabo, é o Satanás. É a razão de Vlad Dracul e seu filho, Vlad o Empalador, dito Drácula, fazerem pensar no Inframundo” (Boia, 2005, p. 25). Daí o Drácula histórico ser encarado como uma lenda gótica de um vampiro é um passo, ainda que esta passagem se opere na maior complexidade (Ermida, 2015; Bozzetto, 2015, p. 167-174). O Príncipe da Valáquia entrou no imaginário coletivo transfigurando a mera realidade histórico-social do homem comum para aceder ao estatuto de um herói universal e transhistórico-cultural (Campbell, 2007). Drácula não é um herói apolíneo e luminoso, à semelhança de Teseu ou de Hércules (estruturas heroicas do imaginário do regime diurno na classificação de Gilbert Durand), mas é um herói místico (estruturas místicas do imaginário do regime noturno na classifi- cação de Gilbert Durand) o que significa noturno e, neste sentido, uma espécie de filho de Hades (Séchan, 1963, p. 2203; Lévêque & Séchan, 1990, p. 117-129)16:

A essência diabólica do vampiro, o caráter maniqueísta desta luta de- sigual são reforçadas pela permanência, em filigrana, de um combate simbólico entre luz e trevas. Esta ideia recorrente através das idades é reveladora do aspeto cristão do mito que prolonga as suas raízes nas insondáveis profundezas do espírito humano, entre as esperanças e os medos fundamentais instintivos e eternos. Ora o vampiro é um ser da noite, e a luz, símbolo do poder e da pureza do Criador, encarna o limite dos seus poderes que devem cessar, como os de todos os seres maléficos, com a primeira claridade do amanhecer (Guérin, 2003, p. 99).

Com este estatuto não pertence mais à história dos homens mortais: ele move-se num tempo e num espaço outros que não aqueles que medem a história comum. Por isso mesmo é que Vlad Tepes deixou a sua mera condição humana heroica para tornar-se um vampiro e, como tal, imortal numa espécie de terra de ninguém, a das trevas, ao contrário dos heróis míticos tradicionais (os gregos por exemplo) que têm o privilégio concedido pelos deuses de repousar na Ilha dos Bem-aventurados, Ilhas Afortunadas ou nos Campos Elísios (Comte, 1993).

Drácula, recentemente transformado em herói romântico por Francis Ford Coppola no seu filme sobre o vampiro, seduz mais que aterroriza assumindo-se mesmo como um herói romântico (Menegaldo, 1999, p. 106-111):

Num mundo como o nosso, onde perdemos as certezas do passado, onde as noções de bem e de mal são muito relativas, Drácula tornou-se um herói tal como hoje em dia os amamos, não sendo necessariamente bom, mas com o qual nos podemos identificar, ou seja, uma criatura ambi- valente e complexa, um vez que representa os nossos próprios limites e contradições (Marigny, 1999, p. 67, ver também p. 62-66).

Nos nossos dias, os vampiros possuem doravante a palavra e podem-nos dizer aquilo que eles ressentem. Nós descobrimos, entretanto, que são por vezes seres sensíveis, capazes de amar e de sofrer. [...] O vampiro tornou-se um ser próximo de nós, que podemos compreender e que não julgamos mais de modo sumário na medida em que nos podemos identi- ficar com ele (Bozetto; Marigny, 1997, p. XII).

O lado sedutor do Drácula aparece como uma espécie de “avatar de Don Juan, a par da sua elegância aristocrática e da sua sedução irresistível” (Menegaldo, 1999, p. 94, 102- 106). Por outras palavras, é uma figura ambivalente, na sua alteridade monstruosa (1999, p. 98-102)17, que associa beleza e fealdade, atração e repulsa. Neste contexto, Drácula aparece aos olhos das suas vítimas como uma espécie de criatura monstruosamente sedutora. Ou seja, é uma personagem ao mesmo tempo irresistivelmente sedutora e terrífica (atente-se à natureza oximórica desta frase):

Com um sorriso trocista, pousou-me uma das mãos no ombro e, agar- rando-me com força, desnudou-me a garganta com a outra, dizendo: ‘Primeiro, um pequeno refresco como recompensa dos meus esforços. É melhor ficar imóvel. Não é a primeira vez, nem a segunda, que as suas veias me acalmam a sede!’ Eu já estava atordoada e, por muito estranho que pareça, não queria fugir dele. Suponho que isso faz parte do seu te- mível poder, quando toca a sua vítima. E, oh, meu Deus, meu Deus, tem piedade de mim! Ele encostou à minha garganta os seus lábios asquero- sos! [...] – Senti que as forças me abandonavam e estava quase a desfale-

cer. Não sei quanto tempo aquela cena horrível durou, mas pareceu ter passado muito tempo até que ele retirou a sua boca horrível, asquerosa e zombeteira. Vi gotejar dela sangue fresco! (Stoker, 2014, p. 311-312).

É precisamente devido a este tipo de ambivalência que a figura de Drácula marca o imaginário coletivo do leitor e do espetador de cinema e de teatro: “Drácula tornou-se no século XX um mito verdadeiro que o cinema e a literatura perenizaram” (Marigny, 2005, p. 10). Um mito verdadeiro no sentido que ele é pregnante simbolicamente, ou seja, que, pela sua narrativa, constelada de arquétipos e de símbolos, trata e ensina temas fundamen- tais para a humanidade do passado, do presente e do futuro: “Reunião de dois mitos com- plementares, Fausto e Don Juan, ele representa os dois maiores fantasmas da humanidade: a imortalidade (Fausto) e a sedução incomparável (Don Juan)” (Pozzuoli, 2005, p. 13). Neste contexto, Drácula, enquanto vampiro, é uma figura mítica e as questões sobre as quais este tipo de figura versa têm a ver com o “sentido da vida, da morte e do amor” (Bozetto; Marigny, 1997, p. I). A figura mítica de Drácula, como se aceita, versa sobre os temas fun- damentais da vida e da existência, ainda que temas como os da sexualidade e da sedução (Eros), da contaminação através do sangue (os casos da toxicomania, da hepatite e do HIV), da violência, da luta entre o bem e o mal, da xenofobia, entre outros, não sejam de somenos importância (Marigny, 2003, p. 109-208, 225-266, 267-268).

A este respeito, poderíamos dizer que quer a imortalidade quer a sedução exerciam uma forte atração no imaginário coletivo da sociedade vitoriana, sujeita a códigos morais e modelos comportamentais restritos, assim como acontece hoje, ainda que de um modo diferente, como se entende. A razão disso é que os pares mortalidade/imortalidade e amor/ sexo (sedução-animalidade) sempre constituíram grandes interrogações e preocupações humanas de fundo. Se associarmos a estes dois temas um conjunto de sentimentos va- riados, que a figura de Drácula desperta em cada um de nós, tais como o facto de ele ser maquiavélico, diabólico, patético, solitário, perigoso, sedutor, perturbador, entre outros atributos, podemos então afirmar que Drácula é um símbolo universal das profundezas da alma humana: “Ele é completo porque simultaneamente é o símbolo dos nossos medos e das nossas inibições, assim como o é das nossas aspirações mais secretas, dos nossos

desejos escondidos, das nossas cobardias profundas como das nossas coragens possíveis” (Pozzuoli, 2005, p. 13). Mas, particularmente, é símbolo da morte e da vida que procura ser eterna. Daí o seu fascínio e o seu lugar definitivamente assegurado no seio do imaginário coletivo dos povos do mundo.