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Um estudo do mito moderno de Drácula não ficaria completo se fosse omitido um dos aspectos mais controversos, que é o da dimensão cômica. De todos os heróis da literatura popular, Drácula é, de longe, aquele que foi mais escarnecido. Já sem contar com os desenhos humorísticos, os filmes burlescos ou os romances e novelas que desmontam de uma forma divertida a personagem do vampiro, designando tudo o que nele possa parecer extravagante, absurdo e ridículo. Basta o simples nome de Drácula para fazer vir ao espírito toda a espécie de jocosidades e tropelias mais ou menos espirituais. Certos espíritos mais sisudos veem neste fenômeno uma prova indiscutível de declínio. Semelhante àqueles espantalhos que já não afugentam os pássaros, de tal modo lhes são familiares, hoje em dia Drácula já só seria capaz de nos fazer rir. Esta evolução traduziria, afinal, a asfixia de uma personagem utilizada até à exaustão, que tentaria a bem ou a mal sobreviver a si mesma.

Falta talvez referir que, contrariamente a algumas ideias feitas, a comédia não é um gênero menor e que, no caso de Drácula, longe de votar a personagem a um inevitável esquecimento, ela deu-lhe um novo carisma que reforçou ainda mais a sua popularidade. Um filme hilariante como Le Vampire de ces dames contribuiu de tal modo para consolidar a reputação de Drácula como outros filmes contemporâneos e mais sérios, como o Nosferatu,

o Fantasma da Noite, de Werner Herzog, ou o Drácula, de John Badham. E um romance

satírico ou iconoclasta como As confissões de Drácula, de Fred Saberhagen, permitiu à personagem imaginada por Stoker conhecer de novo uma frutuosa carreira no domínio literário. O riso, como se sabe, tem uma virtude catártica e permite, portanto, aos adultos e às crianças exorcizar os seus medos. Assim, a dimensão cômica de Drácula atraiu um público infantil, porque dava dele uma imagem sorridente e desdramatizada.

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Ao fazer-se o balanço do século que decorreu entre a aparição de Drácula e os nossos dias, é possível verificar que a personagem conheceu altos e baixos. Se é verdade

que os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, a década de oitenta, não foram de glória para a personagem, na medida em que deram dela uma imagem algo degradada, tal não a impediu de continuar em primeiro plano e de inspirar, esporadicamente, obras merecedoras de respeito, tanto no domínio da literatura como do cinema. Pense-se dele o que se quiser, Drácula ocupa, entre as personagens da literatura popular e do cinema, um lugar privilegiado. Mundialmente conhecido, pulverizou todos os recordes no que diz respeito ao número de filmes, peças de teatro, romances e novelas que inspirou, e, em definitivo, a imagem que tem dado de si, após um século de existência, é extremamente diversificada: personagem proteiforme, adapta-se a todos os gêneros.

É obviamente impossível saber, no momento atual, se Drácula, personagem histórica ou de ficção, continuará por muito tempo a inspirar filmes e romances. O que é possível dizer, em contrapartida, é que está sempre presente no nosso imaginário, onde conserva um lugar de eleição.

Mórbida encarnação do indescritível, Drácula mergulha-nos no “coração do fantástico”. Os olhos do vampiro, diz-se, têm o poder de fascinar; se não podem ser o espelho da sua alma, é a nós que ele estende o espelho das vaidades, onde, arrepiados, contemplamos a nossa miséria e, por detrás da ilusão da vida, a realidade da morte. Passado para o outro lado do espelho, ele é o duplo do nosso inverso, mostrando-nos a vida onde existe a morte, amor onde existe depredação, eternidade onde existe danação. Verdadeiro negativo da nossa existência, revela-se no entanto sempre que se alimenta dos nossos fantasmas, mais que do nosso sangue.

Notas

1. Drácula – Jean Marigny. Tradução Fernando Antunes. Revisão da tradução de Anabela Mesquita. Lisboa: Editora Pergaminho, 1998. Autorização de reprodução do capítulo de Jean Marigny intitulado “Um Vampiro renasce das suas cinzas”, p. 9-70, cedida graciosamente pela Bertrand Editora e pelo autor a quem os organizadores agradecem.

2. O nome desta sociedade era The Hermetic Order of the Golden Dawn in the Outer.

3. Clive Leatherdale, Dracula: The Novel and the Legend, Wellingborough, The Aquarian Press, 1985, p. 85-86. 4. Daniel Farson, The Man Who Wrote Dracula: a Biography of Bram Stoker, Londres, Michael Joseph, 1975. 5. Citado por David Skal na introdução a Dracula, the Ultimate: Illustrated Edition of the World-Famous Vampire

Play, Nova Iorque, S. Martin’s Press, 1993.

6. Em I Am a Legend (1954), para o primeiro, e Interview with the Vampire (1976), para a segunda. 7. Respectivamente em The Hunger (1983) e Near Dark (1987).

8. Expressão portuguesa cujo equivalente no Brasil seria “jogo de cintura” (Nota dos Organizadores). 9. Há neste título um trocadilho com as palavras inglesas Count (Conde), Down (baixo; para baixo; abaixo

etc.), Doom (condenação; perdição; ruína etc.). Em termos de sonoridade, as palavras Count e Down podem formar uma única palavra, Countdown (contagem decrescente), tornando possível uma outra interpretação do título deste filme como “Contagem Decrescente para a Ruína” (Nota do Tradutor).

10. Adrien Cremene, La Mythologie du vampire en Roumanie, Monaco, Le Rocher, 1981, p. 12-13. 11. Ibidem, p. 14.

12. Tony Faivre, Les Vampires, Paris, Éric Losfeld, Le Terrain vague, 1962, p. 25.

13. Bram Stoker, Dracula (tradução francesa de Jacques Finné), Paris, Presses Pocket, 1992, p. 448. 14. Gabriel Ronay, The Dracula Myth, Londres, Allen, 1972, p. 166.

15. Ibidem, p. 167.

16. Bram Soker, Dracula, op. cit., p. 421-422. 17. Ibidem, p. 421.

1. Fazendo as malas…

Este é um convite para uma viagem pela geografia de temas e questões que o romance Drácula de Bram Stoker pode suscitar. Este mapear de temas e questões insere- se num trabalho colectivo, entre várias universidades e investigadores de vários países, sobre os Mitos da Pós-Modernidade, cujo primeiro volume, O mito de Frankenstein, já foi publicado.3

Bram Stoker é um autor actual graças ao seu Drácula. Numa série televisiva do canal AXN, Doyle & Houdini, passada em Portugal em Maio de 2016, aparece-nos um Bram Stoker perseguido por caçadores de vampiros, com um aspecto macilento, doente e visivelmente maquilhado – para disfarçar a sífilis terciária de que supostamente sofria –, a pedir ajuda à dupla Houdini e Conan Doyle. Como o monstro que criou, que rejuvenescia sempre que se alimentava de sangue humano, assim também Drácula se tem rejuvenscido pelo medo, pelo terror e pelo horror que o seu vampiro continua a provocar.4

Da Transilvânia a Londres: