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Condições históricas de possibilidade da relação entre partidos e a RSB.

4. A EMERGÊNCIA DA REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA E A RELAÇÕES COM OS PARTIDOS POLÍTICOS.

4.1. Condições históricas de possibilidade da relação entre partidos e a RSB.

O período denominado, na literatura da área de história política brasileira contemporânea, como de “distensão” pode ser entendido tanto quanto uma conjuntura histórica iniciada em 1974, com a chegada de Geisel ao poder, coincidente com a vitória do MDB nas eleições, quanto um projeto militar de transição política, isto é, de mudança “lenta e gradual” do regime político inaugurado com o golpe civil-militar de 1964, tendo em vista a restauração da democracia. As características dos processos políticos que ocorreram neste período, portanto, precisam ser compreendidas para fins do nosso estudo, pois é nesse período que surge a principal entidade da sociedade civil vinculada à RSB, o CEBES, e posteriormente a ABRASCO, em 1979.

A definição de Distensão enquanto processo político, que ocorreu não apenas no Brasil, provem dos trabalhos de O´Donnell e Schmitter (1998), os quais dividem esse processo em dois momentos: o primeiro marcado pela diminuição da repressão, pelo estabelecimento de alguns direitos, e o abrandamento da censura e o segundo momento, que pode ou não ocorrer, caracterizado pela abertura dos canais para a realização de eleições livres. No caso brasileiro, nossa referência principal no estudo da distensão é o trabalho de Mathias “Distensão no Brasil: o projeto militar (1973-1979) (1995) ”81.

As nuances existentes no regime militar foram analisadas por Sebastião Velasco e Cruz e Carlos Estevam Martins (1983). Para o fim de melhor compreender o projeto militar da distensão, Mathias (1995), simplifica a análise, propondo uma dicotomia entre “castelistas” (que seguiam a linha delineada pelo Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco) e o grupo militar da chamada “linha dura”. Para esta autora, o projeto da linha castelista terminou por ser vitorioso, pelo fato de ter se efetivado. O processo político da

81 Esse trabalho utilizou como fontes jornais, como O Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil, revistas,

principalmente a Veja, Visão e Isto é e, além disso, analisou discursos dos parlamentares entre 1972 e 1979, pronunciamentos e entrevistas de militares e textos de auxiliares próximos a Geisel, como Golbery e Hugo Abreu, e discursos de Geisel.

distensão e abertura foi lento e gradual sendo encaminhado pelos castelistas que tinham por estratégia a saída dos militares do exercício direto do poder político, sem que isso significasse a volta dos militares aos quartéis. O que indica não somente a intenção de dotar o processo de uma direção conservadora, mas também o desejo dos militares de continuar participando do poder, ainda que não controlassem o executivo. Institucionalizar diversos mecanismos do regime militar de forma que esses elementos permanecessem no novo governo civil que viria gradualmente (MATHIAS, 1995).

Reconhecer o papel desses setores militares não significa assumir seu ponto de vista, nem significa negar que a luta democrática acelerou o processo e produziu derrotas para a ditadura militar, como as eleições de 1974. Significa, reconhecer que um setor militar, os castelistas, teve por objetivo a distensão, como meio para diminuir as insatisfações com o regime, e buscava manter poder e relevância para os militares em um governo civil.

Luiz Carlos Bresser Pereira, por exemplo, sustenta que:

O processo de redemocratização que ocorreu no País entre meados dos anos 70 e 1984 foi o resultado de um profundo processo político. A democracia resultante não é um presente ou uma concessão do regime militar, mas sim uma conquista da sociedade civil. Baseou-se na consolidação de um tipo moderno de capitalismo, que dispensa o uso da violência direta para apropriação do excedente (BRESSER PEREIRA, 1988, p.48).

O autor reconhece que existem duas interpretações opostas e as caracteriza como segue: Pode-se dizer que, primeiro, a distensão de Geisel e, segundo, a abertura de Figueiredo, demonstram que o processo de redemocratização foi uma iniciativa do regime militar; a sociedade civil pode ter tido algum papel ao protestar ou pressionar pela democracia, mas o processo de redemocratização foi essencialmente o resultado de uma estratégia política do regime autoritário (MARTINS, 1983; DINIZ, 1985). Minha interpretação dirige-se no sentido contrário (BRESSER PEREIRA, 1978; 1985). O que de fato ocorreu no Brasil foi um processo dialético entre a redemocratização exigida pela sociedade civil e a lenta estratégia de abertura conduzida pelo regime militar (BRESSER PEREIRA, 1988, p.48).

Tendemos a concordar com a última parte do texto de Pereira. Assim, consideramos que ao mesmo tempo que a distensão foi um projeto militar, mais especificamente dos castelistas, a implementação desse projeto não esteve imune às pressões da sociedade civil, e foi na relação entre essas forças que foi sendo modificado, construindo-se o caminho para o retorno ao regime civil. Assim, não foi nem exclusivamente um projeto da sociedade civil, interpretação que transformaria a ação dos militares uma reação sem um

projeto, nem o projeto desse setor militar se deu no vácuo, já que teve que lidar com os desgastes do regime e as derrotas promovidas pela ação popular contrária ao regime, como foi o caso das eleições parlamentares de 1974.

Ao estudar o período da distensão é relevante ter clareza em relação à distinção entre liberalização e democratização. Liberalização pode implicar em, por exemplo, “menos censura da mídia; um espaço um pouco maior para a organização de atividades autônomas da classe trabalhadora”, salvaguardas jurídicas, como habeas corpus, libertação dos presos políticos, retorno dos exilados e tolerância para com a oposição. Já a democratização implica na liberalização, porém requer também a competição aberta pelo direito de conquistar o controle do governo, o que, por sua vez, exige eleições competitivas livres, cujo resultado determinará quem irá governar. Assim sendo, pode ocorrer liberalização em um regime ainda autoritário, e foi o que aconteceu durante a distensão no Brasil. Parte dessa liberalização veio a se completar apenas na abertura a partir de 79. A democratização efetivamente ocorreu apenas quando eleições livres decidiram o controle do poder executivo, seguindo essas definições (LINZ,1999).

Vale apontar que nem todos os autores usam essa distinção. Bresser Pereira, por exemplo, chama todo o período de distensão e abertura, de um processo de redemocratização. Entendemos que houve foi um processo de liberalização e de defesa da democratização, como Mathias. A partir de 1984, com as “Diretas Já”, a luta pela democratização se intensifica, e a democratização ocorre apenas com a elaboração da Constituição cidadã, em 1988 e, efetivamente, com eleições livres em 1989.

Parte dessa luta pela democratização ocorreu pela via eleitoral, ainda que, neste período existissem apenas dois partidos legalizados, a Arena e o MDB. O MDB, partido da “oposição consentida”, saiu vitorioso das eleições parlamentares de 1974. Vale a ressalva que esta vitória deve ser compreendida no sentido das expectativas frustradas da Arena e do crescimento significativo obtido pelo MDB. O MDB obteve 16 das 22 cadeiras do Senado em disputa, crescendo também na Câmara, pois em 1970 obteve 87 cadeiras e em 1974 conquistou 161, enquanto a Arena desceu de 233 para 203 cadeiras na Câmara dos Deputados (ALVES,1985). O crescimento do MDB em 1974, especialmente quando comparado ao das eleições de 1970 foi significativo. Se isso significava identificação com o partido, uma oposição à ditadura, ou apenas o comportamento eleitoral típico do brasileiro quando votando em condições de menor excepcionalidade, como argumenta Santos (1978), há debate.

Em síntese, as eleições de 1974 sinalizaram uma insatisfação popular para com o regime, mas elas também aconteceram em um clima, que embora ainda fosse de exceção, era, na avaliação de Santos (1978) menos repressivo em termos eleitorais do que o existente em 1970. Avaliamos que nem as eleições de 1974 significaram um repúdio total ao regime, nem podem ser explicadas inteiramente apenas por teorias como a da tendência oposicionista do eleitor brasileiro. Elas indicam uma relativa insatisfação, mas seus resultados somente são extraordinários se comparados com os de 1970, cujas vitórias da Arena estavam profundamente vinculadas à repressão vigente nos chamados “anos de chumbo” (JACOBINA, 2010)82.

A análise dos partidos criados pela ditadura, MDB e Arena, tem relevância em nosso estudo, principalmente o MDB e posteriormente o PMDB, porque contaram com participação de militantes da RSB que ingressaram no campo político, a exemplo de Luiz Umberto Pinheiro e Antonio Sergio Arouca, que fizeram carreira política no âmbito do Legislativo. Luiz Umberto Pinheiro, por exemplo, define como atuava o PCB, então na ilegalidade, dentro do MDB.

É. E aí nós então saímos, mas nós atuávamos dentro, os partidos comunistas, atuavam dentro. E aí nós então, resolvemos, quando todos saíram se identificaram, porque eram clandestinos, você não sabia a maioria das pessoas que participavam e quando nós saímos, reunimos saí todo mundo foi chamado: - “quem conhecia quem, quem conhecia quem? ” Juntou todo mundo e teve uma discussão que foi aquela famosa lei de que quando você atua em partido clandestino, quando você sai fazendo a crítica aos que ficaram, você tenta demonstrar mais força do que o que ficaram para mostrar que eles é que estavam errados. E realmente nós saímos e se definiu a candidatura e a disputa para Deputado Federal, dois para estadual e três para Vereador da Capital. Elegemos todos. E o que ficou (PCB) só elegeu um Deputado Federal que já existia, era Fernando Santana e um Deputado Estadual e um Vereador. Quer dizer, os que saíram tinham mais força na sociedade. Aí eu fui um dos dois Estaduais (Luiz Umberto Ferraz Pinheiro, entrevista, 2014).

Perguntamos na sequência se essa eleição foi pelo PMDB em 1982, ao que Luiz Umberto respondeu que “o MDB inicialmente era a única avenida eleitoral possível nos anos 70 para os membros dos partidos comunistas, já que a Arena era o partido que apoiava a ditadura militar” (Luiz Umberto Ferraz Pinheiro, entrevista, 2014). Mas, em

82 As eleições parlamentares de 1974 foram parte central da nossa investigação na dissertação de mestrado

“Clivagens Partidárias: Arena e MDB baianos em tempos de distensão”. Trabalhamos com fontes dos jornais “A tarde”, “Jornal da Bahia”, “Tribuna da Bahia”, assim como discursos dos parlamentares da Assembleia Legislativa, e entrevistas.

1979, com o fim do bipartidarismo, novos partidos surgiram, porém, os de matriz marxista só se tornaram legais em 1985.

Depois do crescimento do MDB em 1974 os militares e a Arena estavam determinados a evitar que o fato se repetisse na eleição seguinte. A Lei Falcão, que levava o nome do ministro da justiça Armando Falcão, foi um exemplo dessa intenção. Essa lei levou à redução drástica da propaganda eleitoral na televisão e rádio. O objetivo era diminuir o espaço para que a oposição continuasse suas críticas ao regime, além de esfriar o debate político. Algo que colunistas veiculados pelo jornal A Tarde83, como Marcos Sá Correia, admitiam sem problemas84. A experiência de 1974 demonstrara que, quando houve maior debate, grande parte da população fora em peso às urnas, especialmente nos centros urbanos, para votar no MDB.

As eleições apresentaram, nos resultados, vantagem para a Arena, porém uma vantagem pequena, o que acabou demonstrando que as iniciativas do governo e do seu partido de sustentação não foram nacionalmente suficientes para conter a insatisfação que progressivamente ia se acumulando. O MDB manteve e fortaleceu sua presença nos centros urbanos. A vitória da Arena veio em grande medida de áreas mais empobrecidas e por isso mais dependentes do governo, notadamente das regiões Norte e Nordeste. Embora a votação tenha sido equilibrada em outros Estados, a Arena teve um desempenho mais forte nas regiões mais dependentes do governo (OLIVEIRA, 1994).

Depois da derrota em 1974, especialmente nas eleições para o Senado, e do crescimento do MDB em 1976, mesmo com o advento da Lei Falcão e do envolvimento do presidente Geisel, os militares perceberam que a estratégia da realização de eleições para busca de legitimidade estava ameaçada. Em 1º de abril de 1977, utilizando como pretexto o não apoio do MDB a uma lei de reforma do Judiciário, Geisel fecha o Congresso e anuncia uma série de medidas que ficariam conhecidas como o “Pacote de Abril”. Essas medidas foram a resposta dos militares à possibilidade de vir a se configurar um governo com maioria emedebista no Legislativo. Esse “pacote” era composto de 14 emendas, três artigos novos e seis decretos-leis que tinham por objetivo manter a maioria governista na Câmara e no Senado, incluindo medidas como eleição indireta para 1/3 dos senadores, eleições

83 Jornal diário publicado em Salvador, Bahia, utilizado como fonte na pesquisa anteriormente referida

(JACOBINA, 2010)

indiretas para governadores ampliando o colégio eleitoral e extensão das restrições de propaganda eleitoral da Lei Falcão às eleições estaduais e federais85.

A luta pela democracia, pela liberdade de expressão, de imprensa, foi gradualmente se intensificando, e é nessa conjuntura que surge o CEBES, em 197686. O movimento sanitário, e a RSB, tem como aspecto central, a adesão à luta pela democratização, e soma forças com as demais forças democráticas da sociedade. O MDB, por concentrar tanto os protestos contra o regime, e constituir um espaço para a luta democrática (PCB, [1975],1980, p.239), sendo o partido que viabiliza uma oposição, acaba beneficiado, cresce e se fortalece.

Apesar disso as mudanças nas leis eleitorais existentes no Pacote de Abril conseguiram seu intento e evitaram que o MDB alcançasse a maioria no Congresso. A Arena manteve controle sobre as duas casas, bem como sobre a indicação dos Senadores conhecidos como “biônicos”, como eram designados os políticos que assumiam estes cargos dessa forma (SKIDMORE, 1988).

Geisel continuou afastando membros da linha-dura, e no final de 1978, o Ato Institucional nº 5 (AI-5), dispositivo que fornecia uma série de instrumentos autoritários de exceção (como cassar congressistas, declarar recesso do congresso, etc.) foi abolido. Geisel assumiu medidas liberalizantes como parte de uma estratégia cujo objetivo era a transição lenta e gradual para um regime civil, transição essa que deveria manter diversas das conquistas da “Revolução”87, além de evitar que grupos de extrema esquerda chegassem ao poder. Ou seja, o objetivo era institucionalizar aspectos da ditadura que iriam permanecer em um regime civil, assim como a permanência da influência do alto comando militar na vida política, sem que esse exercesse diretamente o poder executivo (MATHIAS, 1995).

O fim do bipartidarismo e a liberação para criação de novos partidos, ainda que limitada, já que os partidos de matriz marxista puderam se legalizar apenas posteriormente, e especialmente a Anistia, é de grande relevância para o nosso estudo da relação entre partidos políticos e movimento sanitário, pois em nossa investigação temos evidências que essa nova conjuntura implicou em alterações nessa relação, particularmente com a Anistia. No contexto político nacional apareciam novas lideranças como o presidente do Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Luis Inácio “Lula” da

85 MOTTA, Marly, “O Pacote de Abril”, em (consultado pela ultima vez 08/01/2016:

https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/PacoteAbril

86 Isso já foi analisado em PAIM (2008), ESCOREL (1998) E FLEURY (1989).

87Obviamente que o termo “Revolução” fazia parte a terminologia militar. Entendemos que houve um golpe

Silva. A liderança sindical deixa claro que não adianta o governo propor um pacto social com o trabalhador, sem que este tenha primeiro, liberdade e autonomia sindical. O espaço conquistado por Lula é indicativo da força que novos atores sociais começavam a adquirir no final da década de 70. A sociedade civil organizada começava a dar os primeiros passos para, posteriormente, de forma mais unificada, organizar o movimento em defesa das eleições diretas.

A proposta das “Diretas já”, que ganha força nos 80 até culminar em 1984 com maciça mobilização representava:

... um rompimento radical com a abertura limitada e pactuada que o regime vinha implantando e levaria, através da eleição pelo voto direto, com uma Constituinte, a uma ruptura institucional extremamente desfavorável para as forças que implantaram a ditadura militar no país (SILVA, 2010, p. 273).

As massas tomavam as ruas e o regime parecia não ter projetos para lidar com as transformações que ocorriam no país. Para Silva a transição final entre a ditadura e um regime democrático-representativo organizou-se em um contexto no qual o “governo perdia toda a iniciativa e permitia, por inércia e inapetência, que os partidos de oposição e as ruas das grandes cidades ditassem o ritmo da abertura”. (SILVA, 2010, p. 273). Essa visão é, em boa medida, compartilhada por Skidmore, segundo o qual, nem Figueiredo, nem a liderança do PDS (Partido Democrático Social, herdeiro da Arena) pareciam ter formulado alguma estratégia viável em longo prazo (SKIDMORE, 1988).

Foi na conjuntura caracterizada pela implementação do projeto de distensão do setor militar castelista, pelo crescimento eleitoral do MDB, enfraquecimento do regime militar, fortalecimento da sociedade civil organizada, e início de uma luta pela democracia, que nasce o CEBES e a Revista Saúde em Debate, ambos centrais para o movimento sanitário. Já na conjuntura da abertura, da Anistia, das “Diretas Já”, dos anos 80, o movimento sanitário se fortaleceu, até o marco da 8ª Conferência Nacional de Saúde, evento que sinalizou o projeto do movimento para o Estado Brasileiro e para a saúde.