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3. A RELAÇÃO ENTRE MOVIMENTOS E PARTIDOS POLÍTICOS

3.1 A relação entre movimento e partido: resgatando o pensamento de Lênin

3.1.1 Rosa Luxemburgo e a defesa da espontaneidade do movimento

É importante recuperar a visão de Rosa Luxemburgo nesse debate, tendo em vista sua concepção sobre a noção de espontaneidade do movimento, que como veremos, não é nem a expressão preferida por ela. No texto “Greve de Massas, partidos e sindicatos”, depois de criticar a concepção que “a luta sindical é a única ‘ação direta das massas’ e, portanto, a única revolucionária – esta é, como se sabe, a mais nova esquisitice dos ‘sindicalistas’ franceses e italianos” (JINKINGS-SADER, 2012, p.218), Rosa Luxemburgo começa a fornecer elementos de sua crítica à noção de uma ação consciente dirigida, fosse por partidos ou sindicatos.

Ela critica em especial a noção que a “greve de massas” possa ser decidida. Vejamos:

As duas tendências partem da concepção puramente anarquista, comum a ambas, de que a greve de massas é um meio de luta meramente técnico, que pode ser ‘decidido’ ou então proibido ao bel-prazer e conforme a melhor ciência e consciência, um tipo de canivete que se leva dobrado no bolso, preparado ‘para qualquer eventualidade ou que se pode abrir e usar sempre que se decidir faze-lo’ (JINKINGS-SADER, 2012, p.219).

Ela reforça sua argumentação utilizando o exemplo da revolução Russa.

57 Obviamente que existem nuances e gradações e essa dicotomia não se apresenta de forma totalizante nem

Se dependesse da ‘propaganda’ inflamadora dos românticos da revolução ou de resoluções confidenciais ou abertas das direções dos partidos, não teríamos tido, até agora, nenhuma greve de massas séria na Rússia. Como já enfatizei em março de 1905, na Sachsischen Arbeiter-Zeitung (Gazeta Operaria da Saxônia), em nenhum outro país se pensou tão pouco em ‘propagar’ ou até mesmo ‘discutir’ a greve de massas como na Rússia. Os exemplos isolados de resoluções e acordos feitos pela direção do partido russo, que realmente visavam proclamar a greve de massas de livre e espontânea vontade, como a última tentativa em agosto desse ano, após a dissolução da Duma (câmara baixa da Assembleia Federal), malograram quase totalmente. Portanto, se a Revolução Russa nos ensina algo, é sobretudo isto: a greve de massas não pode ser ‘feita’ artificialmente, não pode ser ‘decidida’ a esmo, não pode ser ‘propagada, mas constitui um fenômeno histórico que, em dado momento, resulta das relações sociais por necessidade histórica (JINKINGS-SADER, 2012, p.220).

Aqui fica evidente que o argumento central de Rosa Luxemburgo é que a greve de massas nasce a partir das relações sociais existentes na sociedade, e que não pode ser decidida artificialmente58, se essas relações não construírem as condições históricas para que isso ocorra. De fato, para Luxemburgo greve de massas, revolução, são uma forma exterior da luta de classes e somente ganham sentido em situações políticas bem determinadas (JINKINGS-SADER, 2012). Luxemburgo considera ser inutilidade a criação, segundo ela, artificial da greve de massas.

Se alguém tentasse transformar a greve de massas, em termos gerais, como forma de ação proletária, em objeto de uma autentica agitação, se fosse vencer essa ‘ideia’, visando ganhar pouco a pouco, o apoio do operariado para ela, isso seria uma ocupação tão inútil, quanto maçante e de mau gosto; equivaleria a querer fazer da ideia da revolução ou da luta de barricadas o objeto de uma agitação especifica. A greve de massas foi parar no centro do vivido interesse do operariado alemão e internacional porque representa uma nova forma de luta e, como tal, o sintoma certeiro de uma reviravolta interna profunda nas relações de classe e nas condições da luta de classes (JINKINGS-SADER, 2012, p.221).

Esses trechos, vistos fora de contexto, poderiam levar o leitor a imaginar que Rosa Luxemburgo não dava grande importância aos partidos políticos. A primeira pista de que isso não procede aparece no mesmo capitulo, quando diz: “No que se refere à aplicação prática da greve de massas na Alemanha, sobre isso a história decidirá, assim como decidiu sobre ela na Rússia, história na qual a social-democracia, com suas decisões, sem dúvida, é um fator importante, mas apenas um fator, entre muitos” (JINKINGS-SADER, 2012,

58 Vale destacar que Lenin não dizia o contrário. Destacava que a deflagração de uma greve dependia de

condições objetivas (as condições históricas) e das condições subjetivas – a propaganda e o trabalho ativo do partido.

p.222). Mas foi no texto “Sobre a Revolução Russa” que seu reconhecimento ao papel do partido foi ainda mais contundente:

O partido de Lenin foi o único que compreendeu as exigências e os deveres de um partido verdadeiramente revolucionário e que assegurou a continuidade da revolução com a palavra de ordem de todo o poder às mãos do proletariado e do campesinato. Os bolcheviques resolveram assim a célebre questão da ‘maioria do povo’, pesadelo que sempre oprimiu os sociais-democratas alemães. Pupilos incorrigíveis do cretinismo parlamentar, eles simplesmente transpõem para a revolução a sabedoria caseira do jardim de infância parlamentar: para fazer alguma coisa, é preciso ter antes a maioria. Portanto, também na revolução, conquistemos primeiro a ‘maioria’. Mas a dialética real das revoluções inverte esta sabedoria de toupeira parlamentar: o caminho não leva à tática revolucionária pela maioria, ele leva à maioria pela tática revolucionária. Só um partido que saiba dirigir, isto é, fazer avançar, ganhará seus seguidores no ímpeto. A resolução com que Lenin e seus companheiros lançaram no momento decisivo a única palavra de ordem mobilizadora – todo o poder ao proletariado e campesinato! – fez de uma minoria perseguida, caluniada, ‘ilegal’, cujos dirigentes, como Marat, precisavam esconder- se nas caves, praticamente de um dia para o outro, a dona absoluta da situação (JINKINGS-SADER, 2012, p. 245).

A visão positiva da ação dos bolcheviques segue:

Tudo o que, em um momento histórico, um partido pode dar em termos de coragem, energia, perspicácia revolucionaria e coerência, foi plenamente realizado por Lenin, Trotski e seus companheiros. Toda a honra e capacidade de ação revolucionária, que faltaram à social-democracia ocidental, encontravam-se nos bolcheviques. Com sua insurreição de outubro não somente salvaram, de fato, a Revolução Russa, mas também a honra do socialismo internacional (JINKINGS- SADER, 2012, p.245-246).

À primeira vista pode parecer uma contradição, mas de fato não é. No nosso entendimento, Rosa Luxemburgo reconhecia o papel do partido, porém entendia que esse fator, importante, não atuava no vácuo, e que eram as relações sociais existentes na sociedade, na dinâmica da luta de classes, que forneciam ou não as condições para a Revolução ou para Greve de massas, algo presente em Marx e Lenin também. Em outras palavras, as relações sociais existentes são uma pré-condição, mas se não houver um partido político, que tenha a perspicácia necessária, para galvanizar essas forças, tais condições podem não ser suficientes.

Com efeito, nesse particular, embora existam diferenças entre Lenin e Luxemburgo, muito mais de ênfase, ou no partido ou nas massas, não é essa questão, o epicentro de sua

polêmica, é ao contrário, na questão da ditadura e da democracia59. Rosa Luxemburgo defende a ditadura da classe operária, não a ditadura de um partido, e isso significa para ela uma ampla participação das massas populares, em uma democracia sem limites.

Na sequência, Rosa Luxemburgo, ao discutir os limites da democracia formal, exprime sua defesa da democracia socialista e aí aparece a grande polêmica entre ela e Lenin a que nos referimos.

‘Nunca fomos idólatras da democracia formal’ só pode significar que sempre fizemos a distinção entre o núcleo social e a forma política da democracia burguesa; que sempre desvendamos o áspero núcleo de desigualdade e da servidão sociais escondido sob o doce involucro da igualdade e da liberdade formais – não para rejeitá-las, mas para incitar a classe trabalhadora a não se contentar com o involucro, incita-la a conquistar o poder político para preenchê-lo com um conteúdo social novo. A tarefa histórica do proletariado, quando toma o poder, consiste em instaurar a democracia socialista, no lugar da democracia burguesa, e não em suprimir toda democracia (JINKINGS-SADER, 2012, p.247).

Por fim, a crítica final de Rosa Luxemburgo, nesse texto, passa por dois aspectos, a transplantação da tática, e o esconder do mérito de Lenin e seus companheiros, elementos interligados.

Pode-se compreender tudo o que se passa na Rússia como uma cadeia inevitável de causas e efeitos, cujos pontos de partida e de chegada consistem na omissão do proletariado alemão e na ocupação da Rússia pelo imperialismo alemão. Seria exigir de Lenin e seus companheiros algo de sobre-humano pedir-lhe que, nessas circunstancias, ainda criassem, por um passe de mágica, a mais bela democracia, a mais exemplar ditadura do proletariado e uma economia socialista florescente. Com sua atitude decididamente revolucionaria, sua energia exemplar e sua inabalável fidelidade ao socialismo internacional, eles, na verdade, realizaram o que era possível, e condições diabolicamente difíceis. O perigo começa quando querem fazer da necessidade uma virtude, fixando em todos os pontos da teoria uma tática que lhes foi imposta por essas condições fatais e recomendando ao

59O erro fundamental da teoria de Lenin-Trotski consiste precisamente em opor, tal como Kautsky, a ditadura

à Democracia. ‘Ditadura ou democracia’, assim é posta a questão tanto pelos bolcheviques quanto por Kautsky. Este se decide naturalmente pela democracia, isto é, pela democracia burguesa, visto que é a alternativa que propõe à transformação socialista. Em contrapartida, Lenin-Trotski se decide pela ditadura em oposição à democracia e, assim sendo, pela ditadura de um punhado de pessoas, isto é, pela ditadura

burguesa. São dois polos opostos, ambos igualmente muito afastados da verdadeira política socialista. Quando o proletariado toma o poder, não pode nunca, seguindo o bom conselho de Kautsky, renunciar à transformação socialista, com o pretexto de que ‘o país não está maduro’, e consagrar-se apenas à

democracia, sem trair a si mesmo e sem trair a Internacional e a Revolução. Ele tem o dever e a obrigação de toma imediatamente medidas socialistas da maneira mais enérgica, mais inexorável, mais dura, por

conseguinte, exercer a ditadura, mas a ditadura da classe, não a de um partido ou de uma clique (sic, provavelmente claque); ditadura de classe, isto significa que ela se exerce no mais amplo espaço público, com a participação se entraves, a mais ativa possível, das massas populares, em uma democracia sem limites (JINKINGS-SADER, 2012, p.246).

[proletariado] internacional que a imite como modelo de tática socialistas. Assim, põem-se desnecessariamente como exemplo e escondem seu mérito histórico, que é real e incontestável, sob os passos em falso impostos pela necessidade; ao querer fazer entrar em seu arsenal, como novas descobertas, todos os equívocos introduzidos na Rússia por necessidade e coerção, e que, no fim das contas eram apenas irradiações da falência do socialismo internacional nesta Guerra Mundial, prestam um mau serviço ao socialismo internacional, por amor do qual lutaram e sofreram (JINKINGS-SADER, 2012, p.248).

Foram as condições, as necessidades, que forçaram o partido e o regime ao endurecimento, ao negar isso, e defender a tática na Rússia como modelo, para Luxemburgo, Lenin-Trotsky estariam cometendo um grave erro, erro que esconde o mérito de ter conseguindo lidar com circunstâncias tão adversas. Essa polêmica é muito mais aguda, especialmente nos escritos de Luxemburgo que nos debruçamos, do que a questão da direção consciente e espontaneismo.

A divergência entre Lenin e Rosa Luxemburgo, quando se trata do papel do partido, é de importância ou ênfase. Enquanto Lenin vê o Partido como central para imprimir direção consciente, e sistematiza noções de educação para as massas, com atuação do partido, dedicando esforços inclusive detalhando essa educação, Rosa Luxemburgo enfatiza a noção de relações sociais, de condições, necessidades históricas, recuperando Marx, para destacar o aspecto espontâneo, embora reconheça o partido enquanto um fator importante, que pode, como foi o caso da Revolução Russa, galvanizar essas forças que nascem espontaneamente da luta de classes existente na sociedade. Já a divergência na questão democracia-ditadura, e a divergência no que tange modelo e tática, para se pensar a construção do socialismo, são mais profundas, e os trechos destacados demonstram isso.