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III. Tratamento do corpus: análise de dados, conclusões parcelares

3. Verbos ‘poder’ e ‘dever’: variação do valor modal

3.4. Verbo ‘poder’ – condicional

3.4.3. Condicional – polaridade negativa

Começamos por constatar que o verbo ‘poder’, no condicional e em polaridade negativa não se encontra no subcorpus Legis. Todas as ocorrências deste modo possuem, aqui, polaridade positiva, à exceção de um exemplo cuja existência possui uma justificação que adiante avançaremos. Parece-nos também oportuno deixar claro que, sendo o texto normativo-legal um instrumento de ordenação, não surpreende que a modalidade deôntica aqui ocorra em maioria, uma vez que esta interpretação expressa, «de um modo geral,

118 diretivos (cf. Ross, 68) [e] a atitude do locutor revela-se sempre através de uma tentativa de agir sobre o interlocutor em função de determinados objetivos.» (Oliveira, 1988: 256): assim sendo, é normal que o condicional seja um modo ausente do texto normativo, dada a sua incapacidade de formar proposições deônticas fortes com as caraterísticas necessárias à operacionalização da lei. A exceção verifica-se no exemplo seguinte:

(91) #2f33 «Na verdade, de uma qualquer tentativa de revisão parcial da codificação ainda vigente mais não poderia esperar-se que o aumento da complexidade e a multiplicação das aporias, tanto no plano teórico como no da aplicação da lei.»

A existência de uma construção deste tipo (91) no grupo dos textos legais, apesar de serem claras as diferenças formais, estilísticas e estruturais do texto, tem uma explicação algo paralela às questões técnicas e mais relacionada com a própria estrutura do texto legal. Na verdade, a produção de uma lei (em sentido amplo), de um regulamento ou de outro normativo complexo pode incluir duas tipologias textuais: a dispositiva, maioritária, que configura a regra em si mesma e surge enquadrada por um número de artigo ou subdivisão relacionada, e uma outra, mais explicativa, que constitui uma espécie de introdução à coleção de regras ou à norma com que se relaciona. Esta segunda tipologia encontra-se em textos específicos, alguns menores, de entre os quais se destacam os títulos, as denominações sistemáticas, as epígrafes, às fórmulas iniciais e finais e, em certos casos, o texto introdutório conhecido por preâmbulo, que não é mais do que um enquadramento das ditas normas no contexto da ordem jurídica. Ora, o exemplo (91) encontra-se justamente entre os textos deste último grupo, não configurando, portanto, uma regra pura no sentido em que temos vindo a considerar os textos legais, mas antes um texto explicativo, mais próximo até do argumentativo do que das normas. Daí, também, o seu caráter excecional.

Os exemplos (84) e (85), por seu turno, parecem conduzir a interpretações alternativas da modalidade: em (84), apesar de termos a sensação de que falta um elemento contextual clarificador do sentido, não nos parece excessivo presumir que, perante a verificação de determinada circunstância (ausente na frase mas que pode ser a falta de meios de subsistência, o desemprego ou qualquer outra condição material) não seria possível a determinada pessoa honrar compromissos assumidos, em (85) há uma circunstância bem definida (o benefício da decisão recorrida) que determina a operacionalização do modal ‘não poder’. Quer num caso

119 quer no outro estamos, portanto, perante situações externas que definem o comportamento modal das frases, o que nos coloca perante a realização da modalidade externa ao participante.

3.4.4. Resumo geral

O uso do condicional nos textos jurídicos resulta numa interpretação epistémica da modalidade nas frases com ele compostas. Nos exemplos trabalhados do nossos corpus, foi possível verificar que a modalidade epistémica é maioritária quer nos textos jurisprudenciais, quer nos textos legais, quando estes recorram a este modo. No entanto, verifica-se também a ocorrência da modalidade externa ao participante e da modalidade deôntica.

Gráfico 21:

3.4.5. Conclusões parcelares:

As conclusões mais importantes que podemos retirar desta análise são as seguintes:

1) apesar da tendencial substituição do condicional pelo imperfeito do indicativo que se tem vindo a verificar na língua portuguesa, foi-nos dado comprovar que, na linguagem jurídica, o condicional continua a ser bastante utilizado. O facto de a linguagem jurídica ter tendências arcaizantes pode estar na base deste fenómeno.

2) O verbo ‘poder’ no condicional parece aparecer essencialmente associado à realização da modalidade epistémica com valor semântico de possibilidade.

Estrutura Polarid

ade

δ ε

Compromisso com o resultado (força dominante)

possibilidade possibilidade permissão proibição

Obrigação Poderia [+] x ++ ++ Não poderia [-] ? ++ ++ +? Poderia não Não poderíamos Poderiam [+] x ++ ++ + Não poderiam Poderiam não

120 3) A operacionalização do condicional verifica-se mesmo em situações em que, pela tipologia e pelos objetivos do texto, tal situação não seria expectável. É o caso de determinadas estruturas normativas que constituem regras de ‘fazer’/’não fazer’. Nestes casos, muito contados, é certo, o verbo ‘poder’ surge no condicional com a capacidade de realizar uma modalidade deôntica com valor semântico de permissão. Estes casos, que surgem essencialmente em situação de concessão de autorizações, justificam-se no contexto de um conceito nomológico de poder- dever, em que o verbo modal surge como uma prerrogativa atribuída pela ordem jurídica a um determinado agente que, estando autorizado a tomar certas atitudes, não pode deixar de as tomar em virtude da defesa de um bem jurídico superior. É o que acontece, por exemplo, no contexto das ações de autoridade ligadas ao poder paternal, em que os poderes conferidos a quem exerce essas funções não estão na disponibilidade discricionária do agente. Neste contexto, o ‘poder fazer’ escrito na norma é um real ‘dever fazer’, sob pena de incumprimento e perseguição por negligência; o ‘poder fazer’ é uma real autorização normativa de usar todos os recursos para alcançar o objetivo legalmente estatuído. Assim, como vimos pelos casos ilustrativos, estamos perante o raro caso em que um modal fraco tem uma interpretação de modalidade forte.

4) A polaridade negativa com subida do operador de negação ‘não’, anteposta ao modal ‘poder’ no condicional, conduz-nos ao predomínio da interpretação da modalidade externa ao participante, subalternizando a interpretação epistémica e, até certo ponto, a interpretação deôntica com valor modal de permissão que tal estrutura, intuitivamente, nos levaria a antecipar.