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III. Tratamento do corpus: análise de dados, conclusões parcelares

3. Verbos ‘poder’ e ‘dever’: variação do valor modal

3.4. Verbo ‘poder’ – condicional

3.4.2. Condicional

No que se refere à ocorrência do verbo ‘poder’ no âmbito específico da linguagem jurídica e no contexto dos dados do Juriscorpus verificamos que, apesar de parecer estar a cair em desuso na linguagem corrente, o condicional é o segundo tempo mais frequente no

subcorpus Argumenta em polaridade negativa e o terceiro mais frequente nas frases com

polaridade positiva. Apesar de ter poucas ocorrências, ele não é, no entanto, de menor importância no âmbito de uma análise linguística do discurso jurídico expositivo- argumentativo.

Nos textos legais (subcorpus Legis), por sua vez, a frequência baixa ligeiramente em termos relativos: o condicional aparece em quarto lugar, após o presente do indicativo, o gerúndio e o futuro simples. Esta frequência mais reduzida no subcorpus Legis – uma coleção de textos normativos que, como vimos anteriormente, têm uma função prescritiva e organizatória – pode estar relacionada com uma menor capacidade deste tempo verbal para

114 realizar a modalidade deôntica, fortemente ligada aos textos legais. Paralelamente e pela mesma razão, faz sentido que apareça em maior número nos textos argumentativos e sentenciais, mais abertos a realizações epistémicas que surgem da discussão de possibilidades e das potenciais soluções dos casos sub judice. Vejamos alguns casos:

(84) #2f37 «Como ela própria diz, e bem, não poderia fazer face aos seus compromissos básicos, com alimentação, renda de casa, saúde e compromissos financeiros assumidos.»

(85) #4f208 «Conclui afirmando que viu a decisão da 1.ª confirmada contra a Ré BB, com idêntico fundamento, e parcialmente alterada contra a outra Ré, mas em seu benefício, pelo que, tendo sido beneficiado com a decisão recorrida, dela não

poderia recorrer.»

(86) #3f103 «O recorrido respondeu, por um lado, que o recorrente soube da sua classificação de medíocre, [que] lhe foram dados a conhecer os factos que vieram a ser apurados, que a punição a que estava sujeito poderia ser a aposentação compulsiva derivada da sua inaptidão profissional, terem-lhe sido dadas ao longo do processo todas as garantias de defesa e não ter havido violação do princípio do contraditório.»

(87) #5f402 «Refira-se ainda que, contrariamente ao sustentado pelo Autor, não se vislumbra que a circunstância, por ele alegada, de a 2.ª Ré reconhecer para efeitos de diuturnidades a antiguidade do Autor reportada a 1987 (quando, recorde-se, apenas celebrou com o Autor contrato de trabalho em Março de 1990) configure qualquer reconhecimento da existência de um contrato de trabalho com a 1.ª Ré a partir de Fevereiro de 1990: poderia a 2.ª Ré, como empregadora, reconhecer a antiguidade do Autor no sector (ou seja, desde 1987), mas daí não advém qualquer reconhecimento ou interpretação que o trabalhador (também) se mantivesse vinculado ao anterior empregador.»

115 (88) #13f480 «O gerente ou administrador que não tenha exercido o direito de oposição conferido por lei, quando estava em condições de o exercer, responde solidariamente pelos actos a que poderia ter-se oposto.»

(89) #10f1764 «2 - Não podendo o lesado ressarcir-se completamente, nem pelos bens da sociedade, nem pelo património do representante, agente ou mandatário, ser-lhe-á lícito exigir dos sócios o que faltar, nos mesmos termos em que o

poderia fazer qualquer credor social.»

Os exemplos (84) a (87) foram retirados do subcorpus Argumenta, isto é, são decisões judiciais de tribunais superiores. Considerando a utilidade e a função deste tipo de textos, o recurso ao condicional não constitui uma surpresa. Na verdade, textos como a sentença ou o acórdão judicial visam, não apenas proferir uma decisão judicial com vista à resolução de um caso concreto, mas também – e isso é especialmente visível nas sentenças e acórdãos dos tribunais penais – passar para a sociedade mensagens de certa maneira pedagógicas sobre os comportamentos de ordem social sancionados pelo Direito. A chamada doutrina dos fins das penas que se segue em Portugal defende, justamente, que o tribunal que julga um agente deve ter em conta dois objetivos na elaboração da sentença: a ressocialização do condenado, também chamada de “prevenção secundária”, e a manutenção da confiança da comunidade nos valores defendidos pela norma violada, ou “prevenção primária” (Dias, 1993: 22). Ora, estes objetivos exigem uma permanente relação de contraste entre várias realidades: a relação entre os factos que se verificaram e os factos que poderiam ter ocorrido ou entre o que o agente fez e o que poderia ter feito, são apenas dois exemplos que abrem o campo de discussão da utilização do condicional nestes contextos.

Os dois primeiros exemplos, (84) e (85), referem-se a uma utilização do verbo em polaridade negativa, pelo que os comentaremos um pouco mais adiante. Os casos (86) e (87), têm um valor claramente epistémico, verificando-se um paralelo com o que acontece nos textos comuns. Na verdade, em (86) antecipa-se uma possibilidade de punição que poderia passar pela “aposentação compulsiva”, mas não era necessário que assim fosse; quer o nosso conhecimento do mundo quer a própria estrutura da frase permitem subentender a existência de punições alternativas. Por outro lado, a expressão “a que estava sujeito” permite-nos incluir no leque de possibilidades a própria não-aplicação de uma sanção. Estamos, portanto, no campo da hipótese e da eventualidade, marcando uma atitude possível mas não necessária por

116 parte do enunciador. Da mesma forma, em (87) o valor mais provável é o de possibilidade epistémica, antecipando-se que a Ré em questão poderia reconhecer ou não reconhecer a antiguidade do Autor, não havendo razões para crer que tal expressão atitudinal implicasse um caráter de obrigação ou necessidade. Temos assim, quer em (86) quer em (87), a perceção de possibilidade, marcada pelo uso do condicional. No primeiro caso, é até possível ver a relação da interpretação subjacente à teoria semântica de mundos possíveis de Kripke, que, como já antes referimos, tem merecido a atenção de vários linguistas (v.g. Kratzer, 1978; 1991; e.o.), relação que se torna mais clara se reescrevermos a parte relevante com recurso a um operador condicional. Veja-se (87’):

(87’) ?Se a 2ª Ré reconhecesse a antiguidade do autor no sector, ainda assim não adviria qualquer reconhecimento.

Em qualquer das transformações estamos perante frases que merecem interpretações de modalidade epistémica, e a mesma nota de possibilidade (mais comum)/ probabilidade não confirmada (menos comum) da verificação do resultado pode ser observada no caso (86).

Os casos (88) e (89) são mais interessantes na medida em que apresentam um comportamento, atípico no verbo ‘poder’ dado que este verbo se encontra mais associado ao que se convencionou chamar uma “modalidade epistémica fraca”. E, em princípio, também aqui não haveria razões nem de contexto situacional nem de contexto linguístico que nos levassem a retirar destes dois exemplos a expressão de uma modalidade deôntica (forte): em (88) há a possibilidade de opção por uma oposição ou não-oposição (por parte do gerente ou administrador referido na frase) e em (89) fala-se numa possibilidade (que está na disponibilidade dos credores sociais) de exigirem ou não exigirem ressarcimento por perdas. Sucede que, mais uma vez, teremos de atender ao contexto nomológico que enforma recorrentemente os textos legais e que condiciona o que seria uma eventualidade disponível do agente a uma permissão, autorização ou imposição do legislador (enunciador). É exatamente o que sucede em (88): a lei permite (autoriza) que o gerente ou administrador de uma empresa se oponha a determinado ato jurídico (normalmente, nestes casos, uma execução), conferindo-lhe legitimidade para agir; mas a norma vai ainda mais longe: não o tendo feito, o gerente vê o seu património ser mobilizado para responder a eventuais consequências desse ato (por exemplo, um contrato de onde tenham resultado dívidas para a empresa). Ora, temos aqui, numa hipótese conservadora, um valor deôntico de permissão, mas

117 numa hipótese extrema quase poderemos considerar que há uma intencionalidade do legislador em obrigar o gerente/ administrador a reagir através do mecanismo da oposição, sob pena de ser penalizado através da resposta solidária dos seus bens a eventuais dívidas. É uma inversão do que normalmente se passa em termos de comportamento modal: o verbo ‘poder’, que normalmente traduz modalidade fraca de permissão (Oliveira e Mendes, 2013: 630), surge aqui como operador de modalidade forte, deôntica. É novamente o conceito de poder-dever a que nos referimos anteriormente e que surge amiúde, nomeadamente no contexto do direito civil. Em (89) temos o mesmo caso, embora de forma bastante menos clara. Aliás, o recurso à expressão «ser-lhe-á lícito exigir» indicia o valor deôntico de permissão representado na intencionalidade global da frase.

Finalmente, também no âmbito dos textos legais, na sua formulação normativa, encontrámos três casos de frases suscetíveis de interpretação epistémica por influência da passiva de ‘se’. É o que sucede no seguinte exemplo:

(90) #4f988 «Os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito informações relativas (…) à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam

perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária.»

Nestes casos, há um claro afastamento relativamente ao resultado. Ora, sabendo que a modalidade epistémica se refere à atitude de um locutor relativamente à verdade ou falsidade do conteúdo do seu enunciado e que essa atitude é tanto mais reforçada quanto maior for o conhecimento que está na origem do juízo emitido, os casos ilustrados por este exemplo representam interpretações de um valor de possibilidade (fraco) associado ao modal ‘poder’. Ainda assim, não nos parece que a composição passiva seja, por si só, determinante para, em abstrato, emprestar à frase uma modalidade epistémica dominante.