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Os verbos ‘poder’ e ‘dever’ como instrumentos de realização das modalidades

III. Tratamento do corpus: análise de dados, conclusões parcelares

1. Análise e caraterização da ocorrência dos verbos em estudo

1.1. Os verbos ‘poder’ e ‘dever’ como instrumentos de realização das modalidades

Das várias formas disponíveis para exprimir a modalidade – v.g. através de recursos adverbiais ou através da gestão do modo e de alguns tempos verbais na frase – uma das que gera questões de interpretação mais complexas deriva da utilização dos verbos ‘poder’ e ‘dever’ como verbos desprovidos de significado pleno (Duarte, 2003: 316).

A perceção da plenitude ou auxiliaridade daqueles verbos depende, antes de mais, da sua contextualização semântica. O recurso a ‘dever’ e ‘poder’ como verbos plenos acontece poucas vezes, quando avaliado em termos relativos com o seu surgimento com valor não- pleno47. É possível encontrar exemplos para ambos como verbos plenos, embora não sejam comuns, sendo até possível que um falante nativo perceba um desconforto na sua enunciação, mormente no caso do verbo ‘poder’, dado que a sua utilização não é muito vulgar no discurso corrente. É o que acontece, por exemplo, quando dizemos:

- ?“Vá, pode lá com isso tudo para não teres de cá voltar!” - “Ajuda-me aqui. Não posso com este saco.”

- “Ainda devo trinta Euros ao João.”

No que diz respeito ao seu uso como verbos não-plenos, há, como vimos anteriormente, uma discussão em aberto sobre a real auxiliaridade ou semiauxiliaridade de ‘poder’ e ‘dever’. Campos, cujas ideias sobre o assunto acima descrevemos de forma sumária, defende que “um verbo passa a ser auxiliar quando deixa de ter uma estrutura argumental própria” (1998: 70), o que seria compatível com a representação mais abstrata dos dois enunciados apresentados, com ‘poder’ e ‘dever’. Duarte (2003: 315), por seu lado, classifica como verbos semiauxiliares os que, respondendo afirmativamente a alguns critérios de auxiliaridade48, deixam os demais critérios de fora, classificação que permite enquadrar de forma mais rigorosa os dois verbos que nos propomos trabalhar, dado que, quer ‘poder’, quer ‘dever’ «apenas respondem afirmativamente aos dois primeiros critérios de auxiliaridade [impossibilidade de completiva finita; um só advérbio de tempo de cada tipo]. Com efeito,

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A opção pelo qualificador ‘não-pleno’, nesta fase, tem a ver com a dificuldade e disparidade de opiniões sobre a classificação destes verbos como auxiliares (o que sucede, por exemplo, na língua inglesa) ou como

semiauxiliares (para a língua portuguesa). 48

Impossibilidade de completiva finita; um só advérbio de tempo de cada tipo; uma só negação frásica, precedendo o auxiliar; atração obrigatória do clítico pelo verbo auxiliar.

58 aceitam mais do que uma instância de negação frásica, podendo o operador de negação frásica precedê-los ou ao verbo auxiliado e não atraem obrigatoriamente o pronome clítico». (Duarte, 2003: 316).

Oliveira nota, aliás, a existência de uma semiauxiliaridade especial associada ao comportamento atípico destes dois verbos modais. Nas suas palavras:

«Embora os verbos como poder e dever sejam habitualmente verbos auxiliares, em português esta questão não é linear. De acordo com Gonçalves, estes verbos são um tipo especial de verbos semiauxiliares na medida em que apresentam um comportamento duplo. Por um lado, são verbos que podem formar um predicado complexo verbal com o verbo da frase encaixada, comportando-se como não auxiliares, pois o clítico é mantido na frase em que o verbo é gerado e também porque é possível a negação do predicado verbal encaixado. Por outro lado, comportam-se como auxiliares em construções em que o clítico sobe para a esquerda do primeiro verbo» (Oliveira, 2003: 247)

A interpretação do valor destes verbos no discurso é o segundo problema com que nos deparamos. Na verdade, não são raras as vezes em que a mera observação da estrutura frásica não permite aferir a correta intenção modal do locutor, ocorrendo com frequência situações de ambiguidade na interpretação.

Observem-se os seguintes exemplos (adap. de Oliveira, 2003: 248, 249):

(1) Ele pode correr cinco quilómetros sem se cansar.

(2) Para ir para a Universidade, podes apanhar o autocarro 20. (3) Para ir para a Universidade, deves apanhar o autocarro 20. (4) O Rui pode sair já.

(5) O Rui deve sair já.

(6) O Jorge deve ter chegado há minutos.

Em (1), estamos perante um tipo de modalidade interna ao participante, sendo possível aferir do enunciado uma competência ou capacidade interna do sujeito que lhe permite cumprir a ação. Em (2) e (3), por outro lado, verifica-se uma condição externa, independente da vontade ou de qualquer outro fator associado ao íntimo do agente: trata-se da modalidade externa ao participante. Os exemplos (4) e (5) determinam situações em que a verificação da realidade está dependente de uma permissão ou de uma ordem, enquanto em (6) existe um

59 fator probabilístico, frequentemente apurado em função de um conhecimento prévio ou experiência anterior de uma realidade estável e previsível (cf. Oliveira, 2003: 249). Ao longo deste trabalho centrar-nos-emos essencialmente na materialização das variantes deôntica e epistémica pelos verbos em estudo.

Sucede, todavia, que esta interpretação não resulta líquida da simples leitura dos textos. Repare-se que em (5), por exemplo, é-nos permitida quer a interpretação deôntica – o Rui é obrigado a sair já, quer a interpretação epistémica – há uma probabilidade de que o Rui saia já. O mesmo acontece com o exemplo (4), estando aqui em causa um valor de permissão ou de possibilidade.

Perante esta dificuldade, autores como Hofman (apud Campos 1989: 126) defendem a existência de uma estratificação de valores de certeza associados a estes verbos, dividindo-os em epistémicos e não-epistémicos (estes últimos deônticos ou modais de raiz), em que o verbo ‘poder’ surgiria associado à incerteza e o verbo ‘dever’ a uma quase-certeza de verificação da proposição.

A baixa fiabilidade destas escalas de certeza relativamente à interpretação dos modais, tem levado a generalidade dos autores a afirmar que o tipo de modalidade associada a uma determinada estrutura discursiva é melhor identificada através do contexto. O mesmo é dizer que, para estes autores e num ambiente de múltiplos mundos possíveis (Kratzer, 1991), “(…) o caráter semântico-pragmático da modalidade que é interpretada no contexto discursivo passa a ser de extrema importância (…)” para a sua identificação (Costa, 2009: 9). Isto acontece porque «tanto um tipo de modalidade pode ter diversas representações, como uma construção linguística pode representar vários tipos de modalidade.» (Czopek, 2008: 259)