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III. Tratamento do corpus: análise de dados, conclusões parcelares

3. Verbos ‘poder’ e ‘dever’: variação do valor modal

3.5. Verbo ‘poder’ – gerúndio

3.5.3. Gerúndio – polaridade negativa

Relativamente ao comportamento deste verbo em polaridade negativa, podemos ver que o resultado é semelhante ao que se observa nos textos comuns.

Centrando-nos primeiro no que se passa na linguagem corrente, recorremos ao CETEMPúblico para caraterizarmos o comportamento deste modal operado na polaridade negativa do gerúndio. A busca inicial resultou num conjunto de 626 ocorrências, do qual extraímos uma amostra de 40 para análise mais aprofundada. Eis alguns casos ilustrativos desta amostra do corpus:

(116) par=ext5575-soc-95b-2: «Ainda no plano dos sócios, são igualmente admitidos com a categoria de sócios correspondentes (pleno direito de uso das instalações, não podendo, no entanto, eleger ou ser eleitos) os sargentos dos outros ramos das Forças Armadas Portuguesas, assim como sargentos de Marinhas estrangeiras.»

(117) par=ext22388-nd-98b-3: «O Parlamento ficará vinculado à decisão popular e terá mesmo de deixar cair a lei, não podendo decidir politicamente à revelia da sentença referendária.»

(118) par=ext1217644-soc-92a-1: «Com efeito a manutenção da sinalização em causa compete à Câmara Municipal de Lisboa, não podendo a J. C. Decaux proceder à sua remoção ou reparação sem autorização da Câmara.»

(119) par=ext40612-nd-91b-2: «Abstracções essas que, não podendo ser nem comprovadas nem directamente observadas e só dificilmente pressentidas pelo eleitorado, têm uma ressonância messiânica na alma do povo.»

130 (120) par=ext9621-nd-94b-2: «Segundo esclareceu em tribunal, a entidade patronal, ao pagar-lhe o seu salário com um cheque, no dia 31, depois das 15 horas, tinha-a impedido de depositar o cheque na sua conta, “não podendo, por isso, dispor do seu vencimento e impedindo-a de fazer face a compromissos inadiáveis”».

Antes de mais, importará referir que a forma nominal do gerúndio potenciou, em todos os casos analisados, assinaláveis dificuldades no estabelecimento de uma leitura definitiva das modalidades. As interpretações que defendemos decorrem, em grande medida, de um determinado conhecimento do mundo que presumimos existir no enunciatário (aferido por dinâmica analógica) e, quando tal não foi possível, decidimos manter em aberto as diferentes possibilidades de interpretação dos enunciados.

Assim, ao analisarmos os exemplos (116) a (118) deparamo-nos com situações relativamente claras de proibição de comportamentos ou ações. Temos, portanto, um domínio da modalidade deôntica.

Em (116), com um contexto adequado e mais expandido, talvez se aceitasse também uma representação da modalidade interna ao participante, caso se viesse a concluir que a limitação originária estava ligada a uma incapacidade própria associada ao enunciante, mas tal não decorre do texto em concreto. Em (117) a proibição é clara e não nos parece que haja margem para outro tipo de interpretações modais. O caso (118) é semelhante, verificando-se uma proibição condicionada de agir (deôntica): sem permissão da Câmara não pode haver remoção.

O exemplo (119), por seu turno, admite uma interpretação externa ao participante do tipo ‘não possível (que) p’ embora em certos contextos seja também admissível a leitura epistémica de (im)probabilidade. O caso apresentado em (120) aponta para a presença da modalidade externa ao participante – a operação de uma circunstância externa torna impossível a realização da situação.

Passando para a análise do Juriscorpus, analisámos 39 ocorrências deste modal no gerúndio, em polaridade negativa, que apresentaram comportamentos bastante polarizados: na sua grande maioria, representam as modalidades epistémica ou deôntica. Vejamos algumas situações:

131 (121) #3f1089 «Não podendo efetuar-se a citação por via postal registada na sede da

pessoa coletiva ou sociedade (…) procede-se à citação do representante (…)»

(122) #11f3094 «Não querendo, ou não podendo, obter execução provisória da sentença, o apelado que não esteja já garantido por hipoteca judicial pode requerer, na alegação, que o apelante preste caução.

(123) #27f1764 «Não podendo o lesado ressarcir-se completamente, nem pelos bens da sociedade, nem pelo património do representante, agente ou mandatário, ser- lhe-á lícito exigir dos sócios o que faltar, nos mesmos termos em que o poderia fazer qualquer credor social.

(124) #12f3939 «Não podendo ser efetuadas no ato da notificação, as declarações referidas no número anterior são prestadas por escrito ao agente de execução, no prazo de 10 dias.

(125) #5f1623 «Os assistentes gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres que a parte assistida, mas a sua atividade está subordinada à da parte principal, não podendo praticar atos que esta tenha perdido o direito de praticar (…)»

(126) #24f1085 «Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.»

(127) #13f4136 «O requerente deve indicar o preço que oferece, não podendo a oferta ser inferior ao valor a que alude o n.º (…)».

As situações representadas pelos exemplos (121) a (124) são indicativas de uma modalidade externa ao participante ou epistémica. Na verdade, em cada um dos exemplos apontados a interpretação mais adequada é representada pelo paradigma ‘se não possível que

p [então x]’. Isto permite as duas leituras, devendo a prioritária ser aferida em face de um

132 Por seu turno, nas situações representadas em (125), (126) e (127) o verbo modal introduz limites à realização da ação proposta. O resultado é uma proibição de p, em todos os casos. É curioso observar que, nos primeiros quatro casos, a oração que inclui o modal em polaridade negativa surge sempre no início da frase como subordinada adverbial (condicional ou causal) reduzida de gerúndio. Após analisarmos no CETEMPúblico 81 ocorrências semelhantes, verificámos que na linguagem corrente surge a mesma situação:

(128) par=ext129517-des-96a-4: «Não podendo perder os dois, o sacrificado seria o Chaves.»

(129) par=ext187072-soc-98a-1: «Não podendo ser confirmado, o exagero torna-se credível.»

(130) par=ext187492-soc-91b-1: «Não podendo justificar a posse dos objectos, terminou por confessar tê-los furtado.»

(131) par=ext887014-soc-92b-1: «Não podendo prendê-lo, o mais eficaz é mantê-lo no Governo...»

Neste tipo de produções, não encontrámos casos de modalidade deôntica, sendo quase todas as situações que analisámos exemplos de modalidade externa ao participante ou, em muito menor número, exemplos de modalidade epistémica. No entanto, nestes dois últimos casos a mera exploração dos excertos do corpus não faculta contexto suficiente para obtermos uma interpretação definitiva segura, pelo que teremos de manter algumas reservas e uma postura conservadora relativamente à classificação definitiva das modalidades operadas, já que o potencial de ambiguidade é muito elevado.

Gráfico 22:

Estrutura Polaridade

δ

EP

ε

Compromisso com o resultado (força dominante)

probabilidade possibilidade permissão proibição

Podendo [+] x? x? x? + ++ ++

133

3.5.4. Conclusões parcelares

Sistematizando esta análise, podemos extrair as seguintes conclusões:

1) contrariando as expectativas iniciais e a nossa própria intuição, foi possível observar que o gerúndio surge como um tempo com elevado número de ocorrências, nomeadamente se comparado com o pretérito imperfeito ou o futuro simples. Apesar de se tratar de uma forma nominal do verbo, frequentemente usada no discurso legislativo, não esperávamos um tão grande número de ocorrências.

2) Na operação deste modal, em gerúndio e em polaridade positiva, há uma recorrência do valor de permissão deôntico, especialmente visível nos textos legais.

3) No caso das decisões judiciais, textos com caraterísticas mais argumentativas, a utilização do verbo com uma interpretação modal deôntica decresce significativamente e concorre com a modalidade externa ao participante e, em certos casos, até com a modalidade epistémica. Os casos de ambiguidade de leituras e mesmo algumas ocorrências de fusão podem ser ultrapassados apenas pelo facto de conhecermos as fontes enunciativas.

4) Quando operado em frases de polaridade negativa, este verbo no gerúndio favorece leituras deônticas, nomeadamente nos textos legais, possuindo o mesmo comportamento modal que já havíamos identificado para a sua utilização em polaridade positiva. No entanto, a leitura externa ao participante com valor de possibilidade também pode ocorrer, principalmente nos textos legais e em orações condicionais (ou condicionais-temporais73).

5) Também no contexto das frases produzidas com polaridade negativa, verifica-se que sempre que encontramos a estrutura ‘não podendo’ em posição inicial, esta parece conduzir a uma interpretação diversa da descrita no número anterior: quando a frase abre com este tipo de subordinada condicional (ou causal) reduzida de gerúndio, a

73

Sobretudo se o uso do gerúndio puder ser substituído por ‘quando’ seguido da operação negativa. Ex.: «Não podendo ir de carro, vou a pé»/ «Quando não puder ir de carro, vou a pé». (Cf. Brito, 2004: 723 – nota (33)).

134 leitura dominante deve ser [não sendo possível p (então x)], ou seja, o verbo favorece uma leitura epistémica ou, nalguns casos, externa ao participante. Tal situação também se encontra na linguagem corrente.