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As considerações finais desse trabalho não pretendem resumir ou finalizar as discussões realizadas nos estudos anteriores, mas apenas ressaltar determinados elementos que direcionaram a interpretação analítica nos dois estudos. Com isso, entende-se que, inevitavelmente, alguns aspectos potencialmente relevantes foram pouco aprofundados em função dos objetivos e da orientação teórica adotada, mas que podem ser retomados em estudos posteriores.

De início, é preciso lembrar que o campo de estudos em representações sociais traz consigo marcas analíticas características e, dentre essas, está a discussão sobre os processos de objetivação e ancoragem. Esses processos são apontados como cruciais na construção do objeto e, contudo, há poucas menções diretas a eles no tratamento realizado. Por outro lado, é possível entender que apesar de poucas referências explícitas, a análise realizada dialoga estreitamente com esses conceitos.

Como já definido, o processo de objetivação caracteriza-se pelo processo em que se concretizam os elementos abstratos de um objeto, conferindo-lhe familiaridade. Nele, as ideias e formas de pensamento, construídas em contextos específicos, são experimentadas pelos sujeitos como algo palpável, objetivo, da ordem natural do mundo (MOSCOVICI, 2009; SANTOS, 2005).

No contexto jornalístico, por exemplo, a construção da cannabis como uma mercadoria do tráfico é objetivada nas apreensões polícias que descrevem, inclusive, o peso e outras características da droga apreendida; a maconha como um medicamento toma forma nos relatos de tratamento de pacientes com HIV e câncer; como uma droga psicoativa, ela se concretiza a partir dos usos por pessoas famosas e acontecimentos polêmicos; como objeto regulado legalmente, a cannabis é objetivada nas transformações políticas vivenciadas em outros países, principalmente os Estados Unidos. Por último, o movimento da marcha da maconha – um dos objetos co-construídos nos discursos jornalísticos sobre maconha – aparece concretizado nas manifestações públicas.

Nos fóruns do Yahoo, ao seu turno, a maconha, em suas diversas construções, é objetivada a partir dos seus efeitos de uso como o riso, euforia, relacionados ao prazer, assim como outras alterações. Por outro lado, ela também ganha concretude a partir de prejuízos sociais, como a geração de violência urbana, danos orgânicos, dependência e mortes. Além

disso, a cannabis parece ser objetivada na figura do maconheiro, que, por sua vez, é descrito a partir de atributos prioritariamente negativos.

Esses elementos tratam, portanto, de características salientes do objeto – a partir de construções diferentes – que concretizam aquilo que é da ordem simbólica do objeto e decorrem na sua materialização como fatos naturais. Todavia, esses elementos constituem apenas exemplos interpretativos que não esgotam a pluralidade do material. Além disso, são hipóteses que remetem também ao próprio processo de ancoragem, pois essas características de realização do objeto só são possíveis a partir das redes de relações em que ele é inserido.

Como enfatiza Moscovici (2009), “ancorar é, pois, classificar e dar nome a alguma coisa” (p. 61). Nos processos de construção de representações sociais, portanto, os objetos são classificados a partir de sistemas de relações ao mesmo tempo em que ganha características específicas a depender dos contextos em que é produzido. “Sintetizando, classificar e dar nomes são dois aspectos dessa ancoragem das representações. [...] E não simplesmente em seu conteúdo, mas também em suas relações” (MOSCOVICI, 2009, p. 68). Como se pode depreender, o processo de ancoragem lida diretamente com as relações linguísticas, de sentido, construídas em torno do objeto a partir dos diferentes contextos comunicativos em que ele se inscreve.

Nesse sentido, pode-se dizer que ao longo das duas análises realizadas o processo de ancoragem foi, ainda que de forma não explícita, um pressuposto importante. A partir dessa noção foram analisados os campos temáticos em que o objeto foi relacionado, ou seja, como ele foi classificado nas comunicações jornalísticas e do fórum da internet. No entanto, não só importou os elementos de classificação e categorização, mas, sobretudo, as relações de sentido constituídas em torno do objeto em cada um desses campos. Grosso modo, a análise buscou contemplar não só a classificação da maconha como droga proibida, planta, matéria prima, remédio, objeto de prazer, de pecado, entre outros. Mas buscou analisar também como as interações discursivas produziam diferentes sentidos, valores e argumentos a partir de cada um desses contextos.

Além disso, trabalhar analiticamente o processo de ancoragem, como se pode observar, mantém relações diretas com alguns dos posicionamentos teóricos adotados nesse trabalho. Em primeiro lugar, o construcionismo social, com ênfase nas interações discursivas, engendra a compreensão de que a maconha é produzida de diferentes formas a depender dos contextos. Além disso, as construções, ou representações, do objeto não são reflexos do mundo real, mas a própria realidade que se constitui nas interações sociais. Isso significa que

as relações de sentido configuradas em torno do objeto possuem origem na própria realidade social que, experimentada como objetiva, naturaliza o objeto em seus campos de relação.

Além do construcionismo social, partiu-se de uma dupla proposição teórica da pragmática linguística: o significado é produzido no uso concreto da linguagem e esse uso provoca efeitos na realidade. Com isso, é possível dizer que as construções discursivas analisadas tratam de uma atividade de interpretação a partir de interações comunicativas circunscritas em suas características, tomadas sempre como produtoras de sentido sobre o objeto. Além disso, não se tratam de construções neutras, pois elas parecem desempenhar funções diferenciadas nos diversos campos.

Sobre tais funções, cumpre retomar brevemente as de saber, de orientação, justificadora e identitária, como sintetizadas por Santos (2005), com a finalidade de levantar algumas hipóteses de discussão futura. A partir do encontro com o material analisado, é possível observar que determinadas construções discursivas estão mais vinculadas a algumas funções do que a outras. Por exemplo, a construção da maconha como um remédio em potencial, além de cumprir uma função relacionada ao conhecimento sobre formas de uso da maconha (função de saber), parece se inserir como uma justificativa para determinadas mudanças na legislação ocorridas no mundo (função justificadora), marcando, em muitos casos, a legitimidade do seu uso com finalidades terapêuticas. De forma distinta, a construção da maconha como uma droga perigosa e estigmatizada tem relações mais claras com a orientação de comportamentos – como no caso das relações interpessoais que são reconfiguradas pela presença do objeto – e com a função identitária. Essa última é explicitada, por exemplo, no conflito intergrupal que envolve maconheiros e não maconheiros, culminando na marginalização dos primeiros. É claro, contudo, que essas hipóteses devem ser aprofundadas, assim como se deve ter em conta que mesmo que uma representação se relacione mais caracteristicamente com uma função, isso não significa que ela não possua desdobramentos igualmente importantes em outras.

Além disso, a discussão sobre as funções das representações sociais pode movimentar uma questão teórica importante. Ao discutir a perspectiva discursiva da TRS foi evidenciado o desacordo com uma distinção entre a representação e o objeto social, chegando-se ao final a um entendimento do objeto construído como a própria representação social (WAGNER, 1996, 1998). Essa última, por sua vez, passou a ser entendida como uma construção social/discursiva, em um contexto de produção específico, com implicações na produção de comunicações e outras práticas cotidianas. Apesar de o trabalho realizado partir dessa

perspectiva, levanta-se a seguinte pergunta: existe especificidade teórica na noção de representação social em relação à de objeto social?

Em direção a essa discussão, cumpre relembrar que o que se chama de objeto social é toda e qualquer entidade construída como material ou imaginária que é nomeada e a ela se atribuem características, práticas, valores, etc.. Diante dessa definição, todo objeto social, assim como uma representação social, trata de uma elaboração social e discursiva, que toma formas específicas a depender do contexto. Além disso, quando falamos sobre ele concretizamos determinadas características, ao mesmo tempo em que o ancoramos em relações sociais e linguísticas específicas, tal e qual a noção de objetivação e ancoragem. Essas características, de fato, remetem a uma igualdade teórica entre a noção de objeto e de representação social.

Por outro lado, quando se reflete sobre as funções referidas anteriormente, a função identitária parece não se submeter a tal ordem de igualdade. Não parece válido, portanto, que todo e qualquer objeto social desempenhe funções nos processos de construção identitária que ocorrem nas relações grupais e intergrupais. Com isso, esse é um dos argumentos que podem ser levantados na distinção entre a noção de representação social e de objeto. Por outro lado, a atribuição da existência ou não dessa função relacionada a determinado objeto parece ser dependente da construção científica argumentativa que o interpreta. Em outras palavras, analisar um objeto social e suas funções implica na sua contextualização, isto é, na interpretação dos processos que a ele se coaduna, incluindo a sua relação com construções identitárias. Com isso, não se pretende tratar aqui de representações como fenômenos empíricos, mas como uma construção teórica, específica a um campo da psicologia social, que serve a operações analíticas de processos psicossociais relacionados a dado objeto social ou campo de relevância cultural.

Decorrente desse posicionamento é possível concordar com Ibañez (1994) quando ele diz que as pessoas não vivem em um mundo de representações sociais, mas de produções discursivas. No entanto, isso não significa que as representações sociais não tenham existência, pois elas emergem como um constructo teórico que – dentre outros, é claro – lida com a análise de determinadas produções discursivas. Isto é, aquelas produções que têm desdobramentos sociais além da “simples” domesticação linguística do mundo. Trabalhar com representações sociais é, grosso modo, fazer uso de um campo teórico cuja utilidade reside na análise da construção social de determinados objetos sociais e suas funções práticas, incluindo os seus efeitos de construção identitária. A partir dos argumentos anteriores, talvez, o problema da relação entre objeto social e representação encontre diferenças conceituais, ainda

que, do ponto de vista analítico, uma representação continue sendo compreendida como a própria construção social do objeto, assim como se implica a compreensão de que nem todo objeto emerge como uma representação social na interpretação científica.

Por fim, a análise empreendida buscou discutir alguns dos processos relacionados à construção da maconha no Brasil. Os estudos realizados não pretendem, todavia, ser representativos de toda uma cultura ou, menos ainda, de todas as dinâmicas de produção do objeto. Os resultados, portanto, tratam de procedimentos interpretativos com limites bem marcados tanto no material como na perspectiva teórica de base.

Por exemplo, assumiu-se que as diferentes maneiras de nomear o objeto – como erva do diabo, remédio, marijuana, diamba, maconha, fumo, planta sagrada, etc. – são de fundamental importância para se entender como ele é vivido nas dinâmicas sociais. Por outro lado, por uma exigência metodológica, reconhecendo que não é necessariamente a melhor ou a mais proveitosa saída, foi preciso uniformizar o material a ser trabalhado. Foram então demarcados termos específicos para a constituição do corpus de análise, tais como maconha, cannabis e suas variações ortográficas. É certo que esse tratamento enquadra a complexidade dos discursos relacionados ao objeto, pois se sabe que há inúmeras formas de construí-lo. Argumenta-se que atentar para esse limite, entretanto, não é invalidar o que se produz. Ao contrário, uma vez que se entende que as ações do pesquisador são constituintes daquilo que é estudado, tomar em consideração aspectos como esse potencializam a reflexão sobre os contextos de produção dos dados.

Isso significa dizer que dados de pesquisa são verdadeiras produções que precisam ser contextualizadas. A maconha trabalhada aqui tanto é particular a determinadas formas de análise – que inscrevem a interpretação científica na sua produção – como encontra limites materiais de conteúdo. Assim, seus conteúdos são específicos a uma forma de comunicação jornalística, por um lado, e a textos produzidos por sujeitos que interagem em um ambiente digital online, por outro. Essa produção circunscrita (e qual não é?) faz com que esse objeto não possa ser endereçado, necessariamente, a nenhum grupo social restrito. Por outro lado, pode ter muito a dizer sobre os discursos que, cotidianamente, (re)constroem a maconha, seus usos, usuários e seus campos de relação.