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CAPÍTULO

PRÁTICAS, PESQUISAS E MATEMATIZAÇÕES EM COMUNIDADES RURAIS

1.4 Conexão de saberes por meio dos interlocutores da pesquisa

Ao propormos uma pesquisa pautada nas experiências matemáticas inserida na cadeia produtiva de um grupo específico, sabemos que existe saberes radicado às questões de sobrevivência e transcendência e, que na sua maioria, são passíveis das múltiplas cegueiras de um sistema que insiste em não valorizar as mais variadas formas de matematizar (conhecer, identificar, computar, explicar). “Reconhecer, identificar, categorizar, computar são operações que em si mesmas constituem uma experiência da experiência”, de acordo com Vergani (2003, p. 29); e as experiências vetoriais presentes no saber/fazer dessas populações tradicionais são, muitas vezes, alheias aos conhecimentos escolares, e mesmo quando a escola está inserida no campo, o que se observa é um currículo que descaracteriza a realidade e que uniformiza a escola rural e urbana. “A experiência hermenêutica tem a ver com a tradição. E esta que deve chegar à experiência”, Gadamer (1997, p. 528).

Para Vergani (2003), essa hermenêutica pode se comportar em três níveis ou graus de profundidade crescente:

Metodológico, que tem como objetivo fazer emergir o sentido latente de um discurso e em termo mais lato compreende os diferentes modos de interpretação de textos e na sua forma restrita, segue o modelo exegético (modelo de interpretar);

Epistemológico é a reflexão sobre os métodos que visa obter um fundamento justificativo dos mesmos e incide nos princípios da metodologia da decodificação;  Filosófico debruça-se sobre a reflexão epistemológica e procura a sua significação a

partir de determinados conceitos, tais como a existência, a razão e consciência.

Em relação à epistemologia, em seu sentido lato, essa corresponde a uma disciplina que busca elucidar os fenômenos naturais e os processos cognitivos; em contrapartida, no seu sentido restrito, a epistemologia tende a se identificar com as práticas cognitivas particulares e científicas.

Vergani (2003), em contribuições sobre as experiências, afirma que “existem dois domínios diferentes de experiência cognitiva: um diz respeito à constatação dos dados/fenômenos/leis que constituem o objeto de estudo das ciências naturais; o outro concerne ao campo das possibilidades de ação, que polariza os objetos de estudo das ciências sociais e humanas” (VERGANI, 2003, p. 40).

O caminhar teórico e investigativo sobre as experiências matemáticas ao serem desenhadas sobre o cenário que envolve a Educação Matemática do campo, pelo viés da Etnomatemática, requer o pensar sobre os três níveis apresentados pela autora.

O metodológico: refletir e interpretar os mais diversos discursos socioculturais alicerçados nas práticas empreendidas nas experiências matemáticas dos assentados;  O epistemológico: refletir sobre o método que será usado para decodificar essas

experiências matemáticas (conhecimento), de forma a conectar através da Etnomatemática ao processo de ensino oficial;

O filosófico: o qual se debruçará sobre os processos relacionados à sobrevivência e transcendência (comportamento e conhecimento) emergidas dessas experiências matemáticas.

A teoria sociocultural de Luis Radford (2011), inserida como delineadora da pesquisa em questão defende o ensino e a aprendizagem alicerçada nas atividades sociais, enraizadas na forma de pensar e ser historicamente constituídas, ou seja, neste caso específico, nas relações de sobrevivências e transcendência dos assentados. Os seus princípios estão interligados em cinco conceitos propostos por Radford (2011, p. 333):

1. Ordem psicológica: Baseia-se no conceito de pensar, elaborados em termos não- mentalistas (o pensamento é entendido como uma espécie de vida interior, onde os processos mentais estão relacionados às ideias que o indivíduo vivencia);

2. Ordem sociocultural: O processo de aprendizagem é o resultado da significação dos objetos conceituais e das formas de raciocínios que o individuo encontra na sua cultura em contextos formais ou informais;

3. Natureza epistemológica: Aquela em que a aprendizagem está emoldurada nos sistemas semióticos de significação cultural (relacionados às formas ou modos de atividades e de conhecer dos indivíduos);

4. Natureza ontológica: Refere-se aos conceitos impregnados aos objetos matemáticos, definidos por padrões fixos da atividade reflexiva da relação mundo e prática social mediada por artefatos;

5. Natureza semiótico-cognitiva: refere-se à consciência subjetiva do objeto cultural. Neste processo de aprendizagem, o indivíduo objetifica (materializa, sobrevive) o conhecimento cultural (experiências matemáticas) e ao fazê-lo encontra-se objetivado; nesse movimento reflexivo, assume as características da subjetificação (transcendência).

Ao analisarmos o posicionamento de Gadamer (1997) sobre a experiência hermenêutica ter relação com a tradição e Vergani (2003) ao caracterizá-la em três níveis de profundidade, o metodológico, epistemológico e o filosófico, foi possível encontrar convergências com os princípios elencados por Radford (2011). O principal diferencial está em que os cinco princípios defendidos por Radford estão voltados diretamente para uma teoria de ensino e aprendizagem alicerçada no contexto sociocultural e “suas premissas teóricas fundamentais apontam que o pensamento matemático compartilha um mesmo sistema simbólico com outras formas culturais de pensamento, como o pensamento ético, artístico, politico e científico” (ibidem, p. 8).

Desta forma, reforça-me a tese, que as racionalizações e matematizações emergidas das práticas socioculturais dos assentados e mediados aqui pela Etnomatemática possam contribuir no processo de diálogo entre os saberes subjacentes dessas práticas (roçado, hortas, comercialização, mensuração, dentre outras) com os conteúdos da matemática escolar e com outras áreas do conhecimento.

Ao pesquisar os saberes matemáticos emergidos dessas práticas socioculturais e fazer com que essas racionalizações dialoguem com os saberes escolares e ao mesmo tempo com os aportes teóricos da investigação, tais como as reflexões de Luis Radford com a teoria sociocultural de aprendizagem, Paulo Freire e Iran Abreu Mendes com o estudo da realidade foi que possibilitou os desdobramentos e elaboração dos dois seminários através de temas geradores e problematizações na busca da materialização da proposta apresentada no quinto capítulo desta pesquisa.

No capítulo a seguir apresento a história do assentamento, sobre duas óticas, mas simultânea, a primeira sobre o olhar de um assentado que participou desde a fundação e na

pesquisa têm um papel importante como colaborador participante e o segundo a partir das leituras obtidas de trabalhos de pesquisa, documentos do INCRA (MA) e outros materiais. A sistemática dos meios de sobrevivência dos assentados na cadeia produtiva, o processo educacional e outras necessidades da comunidade.

CAPÍTULO - 2