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3.11 O encontro com as crianças

3.11.1 Conhecendo o Ricardo

Ricardo é uma criança com 3 anos e 5 meses. O primeiro momento com ele e a pesquisadora foi nos primeiros dias de adaptação à creche. A pesquisadora estava com um grupo de crianças brincando com a massinha de modelar e M131 a perguntou se poderia ficar também com ele. Passaram um

tempo brincando e confeccionando bolinhas, cobras, cestinha de frutas e outras coisas. Do jeitinho dele ia confeccionando e mostrando o que estava produzindo. Riram muito durante a modelagem, depois que saíram dali, Ricardo não desgrudou mais da pesquisadora. Ela foi com ele no refeitório, ao parque e até a hora do soninho. Em todo o tempo, demonstrou ser uma criança carinhosa e que gostava de muita atenção. A pesquisadora passou três dias com a turma, e durante os dias que ficou ali, sempre foi solicitada a estar com ele. Como não pôde continuar nesse processo de adaptação, só reencontrou com o Ricardo tempos depois. Qual não foi a sua surpresa ao conhecer as impressões que as pessoas tinham sobre ele.

Segundo relato dos monitores que trabalharam com o Ricardo na época, com um ano e meio ele começou a brincar com a boneca, fazendo de conta que estava tendo relação sexual com ela. Com o tempo, começou também a se masturbar na sala. Os episódios eram constantes e tanto a professora, quanto as monitoras ficavam perplexas com isto. Mesmo tão pequenino, Ricardo

30 Com o intuito de preservar a identidade das crianças, é importante ressaltar que os nomes mencionados foram substituídos por outros.

31 M1 é a sigla que denomina a Monitora 1. Nesse dia, a escola tinha combinado com todos os monitores e agentes que trabalhariam num mesmo turno pois era período de adaptação das crianças e eles passariam apenas as primeiras horas na escola. M1 trabalha a tarde, mas nesse dia estava junto nas atividades.

demonstrou um comportamento agressivo, batendo e ferindo os coleguinhas da turma. Nesta mesma época a escola foi informada que seus pais estavam passando por problemas no relacionamento.

No ano seguinte, alguns monitores relataram que no primeiro semestre os episódios de masturbação diminuíram consideravelmente, apesar de não desaparecerem, mas no semestre posterior, esta prática se intensificou novamente. Os pais dele tinham se separado e a mãe dele voltou a morar com o avô do Ricardo e com o tio, que era o irmão mais novo da mãe. O relacionamento entre os pais do Ricardo foi muito conturbado e ele presenciou muitas brigas.

Professora, monitoras e agentes da Educação Infantil relataram que durante o ano de 2017, foram frequentes os episódios de masturbação do Ricardo. Outro ponto importante presente nesses relatos, diz respeito ao comportamento agressivo do Ricardo para com os professores, monitores, agentes e colegas, além da resistência diária em realizar aquilo que é solicitado.

No livro de registros diários da professora, monitoras e agentes da Educação Infantil foram encontrados 41 ocorrências com o nome do Ricardo, registradas de fevereiro a meados do mês de julho de 2017. São ocorrências que descrevem um pouco o dia-a-dia das educadoras em cada período, enfatizando situações que precisam ser trocadas entre elas. Dentre as situações descritas, destacamos cinco ocorrências que não são de queixas do Ricardo, sendo que apenas duas descrevem situações positivas, como: “Hoje foi muito legal, brincamos com esguicho, água, água, água a tarde toda, depois da sopa, biblioteca e massinha, mais voltando a água, o Ricardo e a Nina não têm medo de brincar assim, só de chuveiro, coisa louca né, chora para tomar banho mais adora fazer lama de água, aí choveu mais foi bem bom, mesmo” (relato das monitoras no turno vespertino) e “Brincamos no parque. Ricardo pediu para ser balançado bem alto. Gostou de balançar e brincou neste brinquedo a maior parte do tempo que permanecemos neste espaço” (relato de uma professora substituta e as agentes no turno matutino). As outras três ocorrências dizem respeito a quedas que o Ricardo tomou no período. Os demais registros descrevem queixas sobre o seu comportamento, como: “O Ricardo saiu correndo pelo parque, quando o trouxemos, ele se jogou no chão, bateu na professora com tapas e arranhões e jogou um brinquedo na AEI2. Na roda, o Ricardo mordeu a Maria e nos desobedeceu diversas vezes, por isso perdeu o direito de brincar.” (Registro diário, matutino, 28 de março de 2017), “O Ricardo se jogou diversas vezes no

chão no momento do acolhimento, mas foi a única criança que chorou bastante. O Ricardo mordeu o Augusto e o Dante.” (Registro diário, matutino, 29 de março de 2017), “Hoje na roda falamos sobre o Ricardo. O Ricardo hoje esteve bem agitado e deixou-nos com bastante stress.” (Registro diário, vespertino, 29 de março de 2017), “Ricardo, após sua chegada, tentou fugir da sala. Ao ser contido por AEI2 e pela AEI, chutou e tentou bater nelas. Conversamos com ele explicando que não é legal agredir as pessoas e que devemos acarinhá-las. Depois ele se desculpou com as educadoras. Numa disputa de espaço, enquanto brincávamos no parque do fundo, Ricardo mordeu o nariz do Dante.” (Registro diário, matutino, 26 de abril de 2017),

As monitoras relataram que as crianças se afastam de Ricardo porque ele bate demais, se recusando a brincar com ele.

No mês de maio, a orientadora pedagógica reuniu-se com mãe do Ricardo, a professora, uma monitora e uma agente da Educação Infantil.

A história do Ricardo não começa nele, é bem anterior, começa na história de vida da sua mãe, avô e tio.

A avó do Ricardo abandonou o avô quando os filhos ainda eram crianças. O avô teve que trazer o sustento pra dentro de casa e educar os filhos sozinhos, mas da mesma forma que faz com o Ricardo, fazia com eles também, comprava tudo que podia e permitia que os filhos fizessem tudo, não havia regras, tudo era permitido fazer. Eles cresceram aprendendo a cuidar de si mesmos dessa forma, tudo valia. O irmão da mãe do Ricardo, logo se envolveu com o crime e na semana anterior da reunião, ela estava pagando a fiança dele pra que ele pudesse responder em liberdade os crimes que estava sendo acusado. A mãe do Ricardo disse que foi morar com o pai do Ricardo e não deu certo. Ela contou que é uma pessoa desaforada, não respeita ninguém e o pai do Ricardo um homem violento. Por diversas vezes bateu nela na frente da criança. Esgotada daquela vida, voltou pra casa do pai com o Ricardo.

Como não sabe ouvir, ter limites e regras, não costuma ficar empregada por muito tempo. Sempre tem problemas nos locais de trabalho e é demitida. Foi com o dinheiro da última rescisão que pagou a fiança do irmão.

O avô do Ricardo nunca superou a ausência da mulher, é um sujeito amargurado, que deu materialmente o melhor para os filhos, mas não soube ensiná-los a lidar com o mundo e com as responsabilidades. Até hoje os trata dessa mesma forma.

Ela conta que não escolheu ficar grávida, aconteceu, mas ela ama o filho, contudo não teve mãe e nunca aprendeu a ser mãe, por isso não sabe impor limites, sequer considera que sabe ensinar alguma coisa ao seu filho.

Colocou-se à disposição da creche para tentar fazer o melhor pela criança.

Nesse dia a escola compartilhou com a mãe sobre a prática constante de masturbação do Ricardo e a mãe colocou que em casa também ele faz isso, mas que quando levou a criança ao pediatra e compartilhou sobre esta situação, o médico falou que era uma fase característica do desenvolvimento do Ricardo e com o tempo ele iria superar. Orientou que não devia recriminá-lo, mas mostrar quando seria o lugar e o horário mais adequado para fazer.

(Transcrição do relato da professora sobre a reunião com a mãe do Ricardo no dia 24 de maio de 2017)