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CONHECIMENTO COMO DIREITO DE EXPRESSÃO DE UMA IDENTIDADE

“Sabemos que a lei existe, que a lei é feita, tem umas pessoas para executá-la. Agora, se nós não fizermos o nosso clamor, mostrar que temos urgência para que essa lei seja aplicada, ela não acontece” (Damásio Rodrigues da Silva, 2015).

Neste capítulo, a palavra das pessoas entrevistadas, expressa na “vontade de falar” (KAUFMANN, 2013, p. 102), é a portadora de um conhecimento vivencial em torno de lutas por direitos. A própria luta é o lugar pedagógico do aprendizado construído do direito, como revelam Letícia Garcês de Souza (2015): “No começo, a

gente achava que o direito era só de tentar conseguir ter uma terra, o direito não era concreto, de que conseguiríamos....”; e, também, José Valdir Misnerovicz (2015), que

destacou o “componente da formação que vinha da luta que ia desconstruindo... que a luta e o acampamento era um processo de desconstrução de uma ideia, de uma formação, de uma visão de mundo e você ia passando a compreender de outra forma”.

Tive bem presente, desde a definição do problema da pesquisa – repito, por firme indicação de meu orientador –; a concepção do conteúdo das entrevistas; e a eleição das pessoas a serem entrevistadas, que o principal “objetivo de uma pesquisa qualitativa pode ser o de dar conta das preocupações dos atores sociais, tais quais elas são [foram] vividas no cotidiano” (DESLAURIERS; KÉRISIT, 2012, p. 130).

Nas experiências vividas em Goiás, antes sequer de pensar que cursaria Direito algum dia, e, no Maranhão, nos primeiros anos de advocacia, entre 1993 e 1998, e, depois, novamente de volta a Goiás, pude me deparar com o problema do “direito” consistente na distância entre seus textos e as realidades sociais. E fui me convencendo de que o direito não muda o mundo, quem muda o mundo são as pessoas, isto, porque, também, só as pessoas podem fazer o direito acontecer nos conflitos e lutas do cotidiano.

192 4.1 – Qual conhecimento é o chamado conhecimento científico?

A ciência, como a terra, está, essencialmente, vinculada a uma função social100 e tanto mais se legitima, quanto mais a realiza com esse compromisso. A pergunta que intitula este tópico tem a aparência de uma indagação simples, mas, apesar desta aparência, é uma questão inquietante e deve nos impulsionar a um raciocínio complexo, bem como à problematização acerca de outras questões correlatas. A questão mesma não é simples e, uma vez apresentada, seu enfrentamento precisa ser capaz de nos fazer recriar sobre a importância do conhecimento científico neste contexto da vida, marcado por mudanças de paradigmas nas ciências, como afirmou Boaventura de Sousa Santos:

... é necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples, perguntas que, como Einstein costumava dizer, só uma criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à nossa perplexidade (SANTOS, 2004, p. 15).

A indagação sobre o conhecimento científico está associada ao problema que é e será objeto de uma disputa eterna: o problema da legitimidade sobre a produção científica, como também ocorre em relação ao direito. De quem é a legitimidade do conhecimento científico? De sua produção e de seu reconhecimento?

O conhecimento, acredito, carrega consigo uma pena perpétua: a pena do aprisionamento. Antes, foi objeto da prisão para não se ter a oportunidade de produzi-lo ou, ao menos, de acessá-lo; depois, permanece aprisionado pelas regras, por um determinado padrão de objetividade, “de fórmulas e diagramas” (ECO, 2009, p. 20) e de validade, por uma medida ou pelo tal do método que assegure um selo da cientificidade, como um carimbo, como na tradição do nihil obstat.

Por isso, é fundamental questionar e romper as fórmulas e todas as formas de limites que atravancam os processos de criação e de amadurecimento do conhecimento e de sua difusão, definitivamente, afastados do mito da neutralidade científica, que mais serve para sustentar a rotulação do conhecimento que não se submete a padrões de dominação ideológica do saber e pelo saber.

Estou de acordo com a proposta “epistemológica antipositivista”, de Boaventura de Sousa Santos, no seu opúsculo Um discurso sobre as ciências:

100 - Função social é um conceito aberto, mas tem uma base comum em torno da sua compreensão, sendo

que deve ser objeto de delimitação mais objetiva diante de cada caso específico, como a terra, a ciência, a cidade...

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Ponho em causa a teoria representacional da verdade e a primazia das explicações causais e defendo que todo o conhecimento científico é socialmente construído, que o seu rigor tem limites inultrapassáveis e que a sua objectividade não implica a sua neutralidade [...] defendo que a ciência, em geral, depois de ter rompido com o senso comum, deve transformar-se num novo e mais esclarecido senso comum (SANTOS, 2004, p. 8-9).

E acrescento a seguinte explicitação: a ciência exige consciência, isso, significa que a ciência é resultado de processos para os quais nós nos organizamos e nos pomos a percorrer. Os caminhos da ciência são percursos e, ao mesmo, tempo revelações daquilo que pretendemos alcançar: as hipóteses que procuram se encontrar com a tese, com a verdade.

Ao tratar do problema da verdade, Horkheimer, da escola de Frankfurt, afirma a “validade limitada” do conhecimento que deve levar em conta o seu objeto e o sujeito engajado no processo do fazer científico, numa formulação com a qual dialoga bem o que pensa Carvalho Netto (2003, p. 152), acerca da imperatividade de considerar o “limite humano do conhecimento”:

... o conhecimento tem sempre uma validade limitada. O fundamento disso reside tanto no objeto quanto no sujeito cognoscitivo. [. . .]

Também, do lado do sujeito, a verdade é considerada necessariamente limitada. O conhecimento não é constituído apenas pelo objeto, mas também, pelas particularidades individuais e específicas do homem” (HORKHEIMER, 2006, p. 139).

Qual conhecimento queremos e qual conhecimento podemos produzir? Penso que, sobre o conhecimento, não há limites a não ser o da ética, sempre como componente da consciência, e nisso comporta a consciência dos limites humanos.

A construção livre do conhecimento e o seu refazimento, no sentido da continuidade, bem como o acesso aberto ao conhecimento produzido, necessitam de um ambiente democrático para se realizarem efetivamente.

Fora disso, vamos ficar numa seara estéril ou muito pouco fértil de se obter um “selo formal” de reconhecimento de um determinado saber, de um determinado conhecimento, a partir de uma banca acadêmica. Conhecimento é vida e transformação.

O conhecimento erudito, reservado, elitizado, aprisionado, monopolizado por poucos existe como forma de dominação ideológica. Governos, igrejas, universidades, empresas e outras instituições quiseram e sempre vão querer dominar o conhecimento. Estados e iniciativas privadas patrocinam pesquisas secretas sob o manto do argumento

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da “segurança”. E há pesquisas que disseminam um problema para, depois, se vender produtos que o combatem, o que demonstra um uso nocivo, mercantilista da ciência.

Certa feita, em um simpósio científico da área da saúde, chamou-me a atenção a seguinte expressão, contida no termo de referência relativo a um dos eixos da programação do evento: “os desafios, ameaças e alternativas de uma ciência engajada

ou militante nas universidades e centro de pesquisas”.

Pensei, no mínimo, que esta expressão precisaria ser melhor contextualizada e explicada. Afinal, o que seria o contrário disso e que, portanto, não se constituiriam em “ameaças”? E essas supostas ameaças são dirigidas a que e a quem? O que é ciência desengajada ou não-militante?

Este fenômeno – se é que se pode denominá-lo assim – está associado ao ingresso de “novos sujeitos”, no enclausurado ambiente acadêmico e centros de pesquisas? Precisamos pensar e reconstruir isso.

Na introdução à minha dissertação de mestrado, que se intitula “Reforma

agrária: ocupação, invasão e ilicitude penal”, afirmei que se se tratava de um trabalho

“menos de alguém da academia que vai ao campo e mais de alguém do campo que chegou à academia” (SIQUEIRA, 2003, p. 24), dada a minha identidade com o universo camponês. Houve alguém que chegou a me advertir que não era bom eu me auto- identificar nestes termos; poderia ser encarado como uma espécie de rotulação ou de um desvalor científico. Mantive a expressão. Era a verdade que eu não precisava omitir, aliás, ao contrário, quis destacar isso.

Sobre o campo, pode-se até dizer que é um bom objeto de pesquisas, da porta para fora das universidades e centros de pesquisas, mas seus sujeitos não tinham acesso a esses ambientes. Restringiam-se a objetos de estudos.

O fato é que padecemos de certos complexos, quando tratamos de ciências, existem as que se autoproclamam ciências por excelência (complexos de superioridade) e as que são tratadas como subciências.

Entretanto, a questão verdadeiramente relevante em torno do conhecimento científico, para além da legitimidade da sua autoria e de seu protagonismo, é que o seu reconhecimento deve se dar pelo uso que se faz ou se pode fazer desse conhecimento. Nesse sentido, temos ainda os desafios da democratização do conhecimento, para se promover: a formação para a pesquisa; a produção científica (e sempre aprimorá-la); o respeito aos saberes populares; e a garantia de acesso aos benefícios do conhecimento.

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A internet tem cumprido um papel impressionante na redução dos abismos que ainda distanciam os conhecimentos, como instrumento da sua democratização.

Parece que o caminho seria esse: é preciso libertar o conhecimento. O objeto de nossas disputas não pode ser ou continuar sendo se o meu conhecimento é científico e o dos outros não são e vice versa. A razão de nossas disputas deve ser sobre o uso que se possa fazer de determinado conhecimento, a que e a quem serve.

E, com WEBER e MORIN, duas constatações que combinam com as ideias de tempo – provisoriedade – e de incertezas que fundamentam o conhecimento e o pensamento científicos:

... no domínio da ciência todos sabem que a obra construída terá envelhecido dentro de dez, vinte ou cinqüenta anos. Em verdade, qual é o destino ou, melhor, a significação, em sentido muito especial, de que terá revestido todo trabalho científico (...)? É o de que toda obra científica “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgirem novas indagações. Portanto, ela pede que seja “ultrapassada” e envelheça. Todo aquele que pretenda servir à ciência deve resignar-se a este destino. (WEBER, 2013, p. 36).

[...] não podemos nunca escapar à incerteza [...] Estamos condenados ao pensamento inseguro, a um pensamento crivado de buracos, um pensamento que não tem nenhum fundamento absoluto de certeza (MORIN, 2007, p. 100- 101).

Portanto, que a dinâmica do provisório (de ser útil e eterno enquanto durar) e as

incertezas nos acompanhem, como elementos mobilizadores, pelos caminhos da

construção responsável do conhecimento científico sem fim.

4.2 – A vontade de falar (Entrevista compreensiva)

Para a realização da pesquisa de campo, foi desenvolvido um tipo de pesquisa qualitativa, seguindo o método da Entrevista Compreensiva. Este método de entrevista não se prende a um roteiro rigoroso e, muito menos, a um questionário padrão com perguntas a solicitar respostas objetivas e fechadas, porém, se apoia em um roteiro e uma base de perguntas que atendem à finalidade de vincular a entrevista com o problema-tema, com as hipóteses e com a teoria em construção.

Jean Poupart, ao abordar a entrevista de tipo qualitativo, esclarece, quanto à

entrevista, de um modo geral, que “pouco importa a sua forma, sempre foi considerada

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viveu ou o que viu” e para isto o entrevistador precisa desempenhar uma espécie de “arte de fazer o outro falar” (POUPART, 2012, p. 227). Ressalto, porém, que as pessoas entrevistadas demonstraram, sem depender de uma arte do entrevistador, uma qualificada vontade de falar; isto, está revelado no conhecimento objetivo e subjetivo, nas informações e nas análises obtidas nos depoimentos de vidas dedicadas a lutas sociais por direitos.

Também, de algum modo, o método da Pesquisa-ação contribuiu para o trabalho de campo, nesse sentido que o esclarece Michel Thiollent (2011, p. 47): “A relação entre pesquisa social e ação consiste em obter informações e conhecimentos selecionados em função de uma determinada ação de caráter social”.

A possibilidade de indagar e de dialogar com os atores, como sujeitos que participam do processo de “compreensão das realidades sociais constitui uma das grandes vantagens das ciências sociais sobre as ciências da natureza, as quais se interessam por objetos desprovidos de palavras”, afirma PALMER (apud POUPART, 2012, p. 215).

A Entrevista Compreensiva, que, segundo seu formulador, Kaufmann (2013, p. 175), é um método criativo, cujas qualidade e cientificidade são fundadas na liberdade de interpretação vinculada à “honestidade” do pesquisador:

... o método de entrevista compreensiva exige uma enorme honestidade por parte do pesquisador. Mais do que para outros métodos, a qualidade e a cientificidade do trabalho são aqui fundadas na liberdade de interpretação: portanto, é imperativo que ele não ganhe liberdade demais com essa liberdade (KAUFMANN, 2013, p. 175).

Com o conjunto de depoimentos resultante da pesquisa de campo, os textos transcritos a partir das gravações de imagens e vozes, cabe ao pesquisador outros momentos de decisões, selecionar as manifestações, as palavras, as expressões, os sentimentos também, dos porta-vozes de um conhecimento. A decisão desta seleção – que é interpretativa – deve seguir a advertência de Kaufmann, que é uma exigência, na verdade, de dever de “honestidade por parte do pesquisador”, que se revela nesta outra exigência: “os trechos da entrevista devem ser citados da forma mais próxima possível do original [...] Não é a ortodoxia gramatical que conta, mas a verdade do material” (KAUFMANN, 2013, p. 176).

Considerando, portanto, que “não é a ortodoxia gramatical que conta”, as transcrições serão reproduzidas sem qualquer interferência neste aspecto, sequer na sua

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ortografia, e sem aposição de qualquer destaque que chame a atenção para esta situação em torno da transcrição (escrita) segundo a norma padrão.

As transcrições, com os recortes necessários, são uma forma de tradução – não de uma outra língua – mas das informações e pensamentos contidos nas narrativas e nas análises, de modo a considerar o que foi dito, “como uma história verdadeira, uma reconstrução da realidade” (POUPART, 2012, p. 227) de lutas por direitos.

O conhecimento pessoal, anterior, entre nós, sujeitos envolvidos na pesquisa, contribuiu, fundamentalmente, para uma relação de confiança no tratamento de todos os temas. Essa referência prévia, facilitou a abertura para que cada uma das pessoas entrevistadas pudesse se apresentar, sem dificuldades, acanhamentos e, sobretudo, as entrevistas transcorreram em um ambiente de comprometimento com a verdade diante das indagações, dos temas e acontecimentos tratados; o que permitiu o aprofundamento das informações, das análises, das manifestações de pensamentos e de sentimentos, também.

Nas narrativas de suas histórias de sujeitos coletivos evidencia-se uma intercomunicação entres as pessoas entrevistadas. Mesmo em tempos e espaços diferentes, as experiências vividas se articulam nos discursos, se entrelaçam nas palavras que revelam sofrimentos nas jornadas e nas trajetórias longas dos acampamentos nas beiras de estradas ou rodovias, bem como nas cidades, para pressionar as autoridades mais de perto; nas tensas ocupações de fazendas; nas prisões que consideram sem crimes; nas ameaças e humilhações por parte dos que são estruturalmente contrários à reforma agrária; no desprezo de quem não sabe o que é lutar por direito, inclusive, o dele; e nos massacres...

Mas, também, os testemunhos revelam esperanças na teimosia da luta que se faz, para além dos acampamentos e ocupações, nos atos e nas marchas pela reforma agrária, em todo o País, e nas campanhas informativas e de busca de manifestações de apoios políticos na sociedade urbana, nas universidades e, sobretudo, nas convicções de que os direitos somente se efetivam a partir de suas ações protagonistas desafiadoras que reivindicam e pressionam por direitos, e que contaram com decisivos apoios logísticos e de assessorias jurídicas, políticas da CPT, entidades sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos, partidos políticos, igrejas e de outras organizações solidárias.

Não houve qualquer recusa em participar da pesquisa, bem como a responder a qualquer das perguntas ou a comentar uma situação ou a fazer uma análise, confirmando o que Poupart destaca, acerca da validade da entrevista:

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Para que a entrevista seja válida, entendida no sentido de produção de um discurso que seja o mais verdadeiro e o mais aprofundado possível, considera-se essencial que o entrevistado aceite verdadeiramente cooperar, jogar o jogo, não apenas consentindo na entrevista, mas também dizendo o que pensa, no decorrer da mesma (POUPART, 2012, p. 228).

Seguindo a ordem cronológica das onze entrevistas, as pessoas vão se apresentando e falando de si, de suas trajetórias e seus conhecimentos. Uns se apresentam com mais detalhes, contam sua vida, procurando vincular e integrar a sua história pessoal ao contexto da luta de sujeitos coletivos. Falar é sentir-se sujeito, protagonista, como disse o Damásio Rodrigues da Silva (2015): “nós temos que nos

manifestar para mostrar a nossa história”.

Nas auto-apresentações, quem não era um camponês de raiz, vinculou-se, de alguma forma, a sua origem social ao campo ou, então, sua identidade estava projetada para um encontro com o campo, após longos processos de lutas. Nas identidades das pessoas entrevistadas, a faixa etária é um detalhe de menor importância, o tempo da vida é o tempo do nascimento de uma (nova) identidade de um sujeito que fez de sua vida um luta pelo direito à terra e à reforma agrária como efetividade.

Este texto, portanto, é um porta-vozes de pessoas que falam com palavras de experiências, de conhecimentos, de vidas.

4.3 - Damásio Rodrigues Da Silva101

- “Nós tínhamos que tirar a reforma agrária do papel”

Damásio Rodrigues da Silva, você pode se apresentar e contar um pouco da sua história, como se tornou um líder da luta pela terra e conseguiu ser um assentado no PA Mosquito, localizado no Município de Goiás/GO, esse que é primeiro assentamento da reforma agrária, no Estado de Goiás, após o fim do regime militar, foi criado do governo do Presidente José Sarney...

Damásio: Eu sou de família de agricultor. Meu pai, minha mãe, meus avós, todos

agricultores. [...] Meus tios eram presidentes de sindicato, foram presos no golpe militar. No mês de abril de 64, eu estava com 13 anos e já trabalhava com meu pai na roça. Eu estava limpando arroz, quando a polícia veio prendendo o pessoal. Vieram e prenderam meu tio, meu tio e padrinho, irmão da minha mãe. Eu lembro

101

- Primeira entrevista, com Damásio Rodrigues da Silva, no dia 8 de julho de 2015, às 9h, na sua casa no PA Mosquito, Goiás/GO.

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que a polícia usava uma farda amarela. Quando chegou na estrada, beirando a nossa roça, o arroz estava cacheando, mês de abril, a polícia chegou interrogante, porque eles consideravam as pessoas que lutavam por reforma agrária na época como subversivo. [...] Eu tinha aquilo na cabeça, aquela imagem, meu tio foi preso, os colegas companheiros de sindicato foram presos, judiados, ele ficou quase quatro meses preso. Hoje, ele mora aqui em Uruaçu. Ele é vivo ainda e pode contar essa história. [...] E eu venho seguindo a mesma profissão. E, com a mudança do meu pai e da minha mãe para a região [Itapuranga/GO], nós sempre lutamos para ter uma propriedade, uma terra, onde a gente pudesse produzir os alimentos. E se deu que, na década de 70, quando eu fiz a minha conversão... eu estudei a Bíblia, descobri que a terra é um dom de Deus, que nós precisamos dela para viver. Nessa época, eu participava junto com o Dom Tomás, a minha mãe me orientava e falava, quando Dom Tomás chegava lá na nossa cidade: ‘– ele é o

bispo que defende a classe trabalhadora, os pobres, vamos lá ver ele’. Aí, eu ia.

O Dom Tomás conversava e eu entendi que eu tinha que me filiar ao sindicato. Em 77, eu me filiei ao Sindicato de Trabalhadores Rurais de Itapuranga[GO] e participava da discussão na igreja, com o padre Isaque [italiano]. Eles falavam muito de reforma agrária, da questão da posse da terra, daquela luta dos posseiros. E eu comecei a entender o que era isso. [...] Aí, eu pensei que nós tínhamos que tirar a reforma agrária do papel. Essa história só de falar que vamos fazer e o latifúndio só aumentando... Nós temos que mudar de vida, [contamos] com o apoio do Sindicato, o apoio da Igreja Católica, porque as outras igrejas não entendiam esse negócio de reforma agrária. [...] Junto com Dom Tomás, nosso saudoso bispo de Goiás, nós aprendemos a ligar a lei de Deus com a terra.

Sua origem é camponesa, mas sua família não tinha terra. E foi a partir da igreja da Diocese de Goiás que se deu o início do seu conhecimento sobre reforma agrária e, essa expressão que você usou: “daquela luta dos posseiros”. Em seguida, uma consequência desses conhecimentos foi você se filiar ao Sindicato. Eu sei que esse é um processo que leva tempo, é uma verdadeira escola da vida que possibilita a formação de lideranças populares e sindicais, que vão exercer um papel importante, na vida em sociedade, que é o de fazer mediações. E, também, de criar condições, a partir das