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O BRASIL DA CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E DAS DESIGUALDADES

1.1 - O passado está vivo e aponta caminhos

Um dos objetivos deste capítulo é buscar explicações para o direito na história do Brasil, especialmente, a partir dos processos de lutas pela terra. E mais, a pesquisa e a análise históricas têm como objetivo destacar acontecimentos, nada acidentais, que demonstrem e sustentem necessárias explicações de origens das desigualdades econômica, política e jurídica, instituídas desde o início da formação da estrutura agrária brasileira, concentradora de poder e de riquezas, com a finalidade fundamental de discutir e compreender a proposta de um direito como efetividade, que será o tema do Capítulo 3.

Definitivamente, eu acredito que o passado está vivo e não está morto. O passado é o tempo e o lugar, quando e onde estão, e podem ser encontradas, muitas das causas e razões para uma compreensão crítica do problema da desigualdade existente hoje, que foi se constituindo, historicamente.

A história não é um museu, naquela visão de ser um lugar onde se depositam coisas intocáveis.

No desafiante processo de produzir um conhecimento científico crítico que possa combinar as ações de explicar13 problemas atuais e de apresentar possibilidades

13 - Oportuno lembrar a crítica de Marx ao filósofo que o influenciou, Ludwig A. Feuerbach: “XI - Os

filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 1984, p. 14 e 128), referida por Bauman ao chamar a atenção para o fato de que a

elite culta nega a história e cria uma ilusão de que muda, mas sempre para a mesma coisa: “A ‘ideologia’

almejada na décima-primeira tese de Marx sobre Feuerbach (...) só pode ser comparada a suas antecessoras modernas se perdermos de vista os aspectos constitutivos decisivos da razão ideológica. Está em jogo, porém, mais do que isso. A visão de mundo disseminada, intencionalmente ou não, nas mensagens transmitidas hoje em dia pela elite culta é a de um tempo sem dimensão histórica, um tempo achatado, plano, ou um tempo giratório, continuamente reciclado, que vai e vem mas não muda muito de posição, tempo de repetições, que quanto mais muda mais é a mesma coisa. Não se trata de uma mensagem que perdeu o sentido de sua própria historicidade – é uma mensagem que nega a história.” (BAUMANN, 2000, p. 130).

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factíveis de superações de tais problemas, é preciso apurar causas, verdades e fundamentos no passado.

Negar a história não significa apenas negar o passado.

Negar a história significa uma ação, meticulosamente, intencional de quem está bastante consciente do poder da história, especialmente a da não contada pelos oprimidos e vencidos; e, por isso, com suas razões, tem medo da potência14 transformadora do passado.

Investigar o passado não pode significar um ato de buscar justificativas com a finalidade de produzir um sentimento de conformismo ou a inércia, mas para obter conhecimentos sobre aquilo que não deve permanecer ou não deve se repetir na história. Ir ao encontro das origens (ou das suas negações) não pode se converter em um movimento de aplacar inquietações de hoje.

O exame crítico da história permitirá compreender como o “direito” funcionou, como efetividade, para os colonizadores; e, como anti-efetividade ou efetividade negativa, para índios e negros escravizados, além de brancos impedidos de ter acesso a sequer mínimos de igualdade, como à terra, tão abundante quanto concentrada.

O fio da história, mesmo com suas idades periódicas classificadas pela historiografia, é contínuo, sem ser imutável, e a revela de modos, absolutamente, não retilíneos e nem estanques, mas marcada pela dinâmica dos conflitos, das contradições, de evoluções e involuções do ser humano, de seus pensares e fazeres.

E, sendo assim a história, também é o direito. Isto, porque o direito – o ideal, no plano da justiça; e o real, no plano da efetividade – é humano e histórico, compreendendo os seus princípios e postulados, leis e portarias, interpretações e decisões, os mais dignificantes e os mais espúrios.

Quando olho a história, vejo e penso que tudo poderia ter sido e continuado diferente do que acabou predominando. E, se poderia ou, efetivamente, tenha sido uma vez, ainda poderá, um dia, ser diferente do que já foi (ou voltar a ser) e do que ainda é hoje.

Então, a partir do passado pode-se entender, com maior clareza e criticidade, o direito que temos e em qual direito queremos transformá-lo, porque “O passado é tão aberto quanto o futuro” (ROSENFELD apud CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 36). A história nos ensina que podemos obter, no passado, explicações que justifiquem

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- Potência como possibilidade, no sentido aristotélico, porque o passado está pronto, mas precisa ser revolvido e analisado criticamente para ativar seu poder transformador.

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ações reivindicadoras lúcidas de um presente e de um futuro decentes, sem o “desperdício da experiência”, usando a expressão de Boaventura de Sousa Santos.

1.2 - Esta terra tem dono15

No final do século XV e início do XVI, período intenso das grandes navegações, o Brasil começou com uma irrelevante dúvida e uma cruel certeza históricas. A dúvida era: se foi um acidente ou não, as caravelas portuguesas terem atracado no Monte

Pascoal, denominação apressada e logo completada para Terra de Vera Cruz, porém,

sabia-se que não eram as Índias, em direção às quais, Pedro Álvares Cabral partiu, depois. A certeza: a violência de toda natureza desembarcou com eles; teve início com a matança e a escravização de índios, agregou a escravização de negros trazidos como mercadorias semoventes, até o cativeiro da terra, gerador de outras violências.

Um pouco antes dos portugueses chegarem aonde denominaram Brasil, as terras continentais, então batizadas de América16, foram encontradas pelos navegadores espanhóis, no Hemisfério Norte, a partir de um suposto desvio de percurso ou de deliberados opção e risco por traçar uma nova rota para as Índias17 (Colombo acreditou e pôs em prática a teoria de que a Terra era redonda). Os povos originais, habitantes desse continente, foram denominados “indígenas por um equívoco” (RIBEIRO, 1995-a, p. 97).

Por coerência dos que foram proclamados, com a “legitimidade” da arbitragem promovida pelo Papa Alexandre VI, nos termos das Bulas “Inter coetera I e II”, respectivamente, editadas aos 3 e 4 de maio de 1493, após ameaças de Portugal deflagrar um conflito com a Espanha, mediante as quais o novo mundo fora dividido entre os reinos de Portugal e de Espanha, os novéis donos destas terras e de tudo o que

15 - “Esta terra tem dono!”, frase atribuída ao Cacique e guerreiro Sepé Tiaraju, quando liderou o povo

Guarani contra a invasão de espanhóis e portugueses, durante o período no qual vigorava a experiência dos Sete Povos das Missões, iniciada pelos jesuítas, a partir de 1534, numa região que ficava além do meridiano de Tordesilhas, ao Sul do Brasil.

16 - O nome América foi dado em homenagem ao geógrafo, astrônomo e navegador florentino, que se

naturalizou espanhol, Américo Vespúcio (1454 - 1512), grande colaborador do navegador genovês Cristóvão Colombo (1451 - 1506), um dos primeiros a acreditar na ciência – a Terra era redonda – e que, após ser recusado por Gênova, Veneza e pelo Reino de Portugal, serviu ao Reino da Espanha e se tornou o descobridor do “Novo Mundo”.

17 - “... percebemos o nosso erro quando usamos a palavra ‘índio’, repetindo a mesma falha dos espanhóis

quando chegaram a este continente, pensando ter chegado às Índias” (PREZIA e HOORNAERT, 1989, p. 32).

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continham, deveriam, então, denominar as populações locais de ameríndios ou de

americanos.

O que se conclui logo, como premissa, é que os problemas da desigualdade e da concentração fundiária, sem limites, têm suas origens desde a invasão dos europeus, que desenvolveram um processo extremamente violento de conquistas e dominações desta parte da Terra, até então desconhecida pelo velho mundo, mas onde havia gente e história, há milhares de anos:

Os povos que viviam no continente sul-americano, quando houve a invasão europeia, já tinham mais de 30.000 anos de história. Vindos do Norte, passando pela América Central, seguiram vários caminhos, até ocupar todo o continente (PREZIA e HOORNAERT, 1989, p. 32).

Somente nas terras as quais os portugueses deram o nome de Brasil, “Em 1500 os índios eram cinco milhões18, os europeus nem um” (RIBEIRO, 1995-a, p. 98). E os que aportaram, nesse Porto Seguro, impuseram, a ferro e fogo, seu modelo de colonização, começando por transportar para a Coroa de Portugal a propriedade de todas as terras e suas riquezas.

1.3 – O Brasil começou em Portugal

Nos termos da Bula “Inter coetera” (II), a segunda do Papa Alexandre VI, foi fixado um marco a partir do qual estabeleceram uma distância e uma linha imaginária divisória do que passaria a pertencer, respectivamente, a cada uma das duas Coroas, sem que se soubesse, exatamente, o que poderia ser encontrado. Já se sabia que Colombo havia chegado a terras no Hemisfério Norte, há dois anos antes da decisão papal.

De acordo com a segunda Bula, passariam a pertencer ao Reino de Portugal as terras continentais e insulares que fossem encontradas no perímetro situado a até 100 léguas a Oeste do arquipélago de Cabo Verde e o Reino da Espanha ficaria com o domínio de todas as terras que fossem descobertas além desse limite, a Leste.

Entretanto, quando se descobriu que, no intervalo daquele perímetro, só existiam as águas oceânicas do Atlântico, Portugal exigiu, novamente com ameaças de confronto

18 - “Calcula-se que na Amazônia viviam nada menos que 3,7 milhões de pessoas e no resto do Brasil 1,3

milhão, o que perfaz um total de 5 milhões de pessoas. Um número muito grande se compararmos com as outras nações da época.

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com a Espanha, uma revisão da arbitragem papal. Em seguida, a 7 de junho de 1494, foi firmado o Tratado de Tordesilhas, pelo qual foi convencionada, sob a mediação do Papa, uma nova medida que passou a ser de 370 léguas a partir do mesmo marco inicial, as ilhas de Cabo Verde, como espaço de domínio lusitano.

O fato é que nem as Bulas e nem o Tratado de Tordesilhas impediram a invasão de outros países colonizadores nas Américas, como França, Holanda e Inglaterra, e, igualmente, não foi suficiente para proibir Portugal de estender domínios além do que fora, antes, pactuado.

Porém, o que interessa para este trabalho é que, também, “A história territorial do Brasil começa em Portugal”, tendo sido, efetivamente, adjudicada e transferida a “propriedade de todo o nosso imensurável território para além-mar” (LIMA, 1988, p. 15). E o que isso quer dizer? Significa que, na condição de colônia, a forma jurídica de organizar, por exemplo, a terra e a produção, era a que estava estabelecida em Portugal, desde o último quartel do século XIV, ainda que sua experimentação, mesmo lá, não estivesse no agrado da Coroa.

Com a colonização portuguesa, dá-se início à apropriação particular da terra, ocasionando o nascimento da propriedade privada, no Brasil.

Há divergências diametrais entre Gilberto Freyre (2015) e Darcy Ribeiro (1995- b), quanto a quem veio povoar o Brasil, que não era despovoado, no início da colonização. FREYRE, após situar a localização geográfica como fator de uma diversificação populacional existente da Península Ibérica, explica:

... a colonização do Brasil se fez muito à portuguesa. Isto é, heterogeneamente quanto a procedências étnicas e sociais. Nela não terão predominado nem morenos nem louros. Nem moçárabes como pretende Debbané nem aristocratas como imaginou o arianismo quase mítico de Oliveira Viana. Nem os dourados fidalgos de frei Gaspar nem a escória do reino – criminosos e mulheres perdidas – de que tanto se acusa Portugal de ter enchido o Brasil nos primeiros séculos de colonização (FREYRE, 2015, p. 296).

De outro modo, RIBEIRO sustenta que:

O projeto real era enfrentar seus competidores povoando o Brasil através da transladação forçada de degredados. Na carta de doação e foral concedida a Duarte Coelho (1534), se lê que el-rei atendendo a muitos vassalos e à conveniência de povoar o Brasil, há por bem declarar couto e homizio para todos os criminosos que nele queiram morar, ainda que condenados por sentença, até em pena de morte, excetuando-se somente os crimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa (RIBEIRO, 1995-b, p. 86).

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Mas, para o efeito das consequências gerado pela colonização, especificamente, quanto à constituição da propriedade fundiária concentrada, terem vindo ou não os degredados povoar o Brasil, não foi o problema fundamental. Isto, porque não foram eles os que decidiram a modelagem latifundiária, não foram estes que vieram com a delegação de decidirem sobre os destinos da terra, então, livre.

1.4 - Sesmarias: da terra para quem nela trabalha, em Portugal, à instrumentalização do latifúndio, no Brasil

O Brasil “nasceu marcado pela instituição da sesmaria e, consequentemente, da grande propriedade” (SODERO, 1990, p. 5), mas não era essa a origem do instituto da sesmaria. Apesar de sua enorme dimensão, de aproximadamente 42 quilômetros quadrados, nem esse limite era, na prática, observado pelo sesmeiro:

Com a extensão territorial imensa, que apenas se sabia que começava na costa marítima e cujos fins se perdiam no mistério e na lenda, à dádiva de terras de sesmarias tinha que iniciar, e assim acontece, a política territorial latifundiária. Cada sesmaria era um latifúndio. (FERREIRA19 apud SODERO, 1990, p. 7).

Se se pode afirmar que o Brasil começou em Portugal, de outro lado, Portugal não projetou o seu modelo de produção e de uso da terra sobre as imensidões de terras brasileiras; isto, porque havia uma nítida distinção entre ambos: Portugal era a Coroa e o Brasil, a colônia. Da colônia, se retira o que de melhor pode ter e como a terra existia em abundância, era preciso organizar e desenvolver um sistema produtivo que otimizasse o uso das terras. Caio Prado Jr. (2014) explica a origem do modelo agrário local estruturado no latifúndio:

A grande propriedade fundiária constituiria a regra e o elemento central e básico do sistema econômico da colonização, que precisava desse elemento para realizar os fins a que se destinava. A saber, o fornecimento em larga escala de produtos primários aos mercados europeus (PRADO JR., 2014, p. 325).

Mas, é necessário acrescentar que, em paralelo ao regime de sesmarias e mesmo após a sua suspensão (em 1822), que se tornou o seu fim, porque gerou uma lacuna

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- SODERO cita FERREIRA, Waldemar. História do Direito brasileiro – vol. I. Rio de Janeiro : Livraria Freitas Bastos, 1951, p. 83.

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legal de 28 anos – quando nem se concediam sesmarias e, também, não se estabeleceu outra forma legal de obtenção de terras públicas – até o advento do novo regime de aquisição de terras devolutas, somente mediante a compra, instituído pela Lei de Terras (de 1850), a grilagem, também, foi um modo muito ativo de criação e estruturação do latifúndio no País, neste caso, dando razão à incômoda resposta de Pierre-Joseph Proudhon à pergunta: Qu'est-ce que la propriété? (O que é a propriedade?): C'est le vol (a propriedade é um roubo) (PROUDHON, 2002, p. 18).

A propriedade, neste modelo político-jurídico de organização do Estado no regime liberal e, depois, liberal-capitalista, é defensável; o indefensável é que o direito seja utilizado – uso nocivo do direito – para chancelar a propriedade obtida, ilicitamente, como nos casos em que oriunda de grilagens.

Mas, independentemente de sua origem não lícita, já no século XIV, constatou- se que “em Portugal os males do regime latifundiário – inclusive a devastação das matas” produziu “frequentes crises sociais por escassez de víveres” (FREYRE, 2015, p. 290), o que gerou a necessidade de intervenção nesse tipo domínio à época.

Ruy Cirne Lima e Fernando Pereira Sodero, dois estudiosos da história da formação territorial e do direito agrário, no Brasil, e documentos oficiais da época nos ajudam a conhecer e a entender como foi a origem do regime de sesmarias, a variação de sua legislação, do plano ideal à sua efetivação em Portugal e, também, no Brasil. As aplicações efetivas foram muito diferentes, como se verá, porque o regime era o da terra como posse-trabalho-produção.

O primeiro capítulo do livro “Pequena história territorial do Brasil – sesmarias

e terras devolutas”, de Ruy Cirne LIMA (1988), é dedicado ao que ele intitulou “A primitiva legislação portuguesa. A lei de D. Fernando. As ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas”. As anotações referentes à parte primitiva da legislação não

estão atribuídas a um legislador determinado e suas origens são de “longes épocas”, de um tempo “antiquíssimo” ou de “imemorial costume [que] vigorou extensamente em Portugal” (LIMA, 1988, p. 15-16).

Citando G. de Azcarate, LIMA registra que o regime jurídico das sesmarias tem sua origem em um modelo de uso da terra, sobretudo, das áreas que eram comuns e reservadas para o cultivo de não proprietários, anterior à predominância da propriedade privada naquela região:

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Entrelaça-se, em suas origens, o regime jurídico das sesmarias com o das terras comunais do município medievo [...]

[...] nalgumas regiões da península, prescrevia fossem as terras de lavrar da comuna, divididas segundo o número de munícipes, e sorteadas entre estes para serem cultivadas e desfrutadas, ad tempus, por aqueles aos quais tocassem. (LIMA, 1988, p. 15-16).

Na sua concepção original, o regime das sesmarias tinha como finalidade essencial, “só o cultivo das terras” e, coerentemente, a cessão de terras deveria ocorrer de forma provisória, por “certo prazo de duração” (LIMA, 1988, p. 16), sem, portanto, a instituição da dominialidade particular, daí decorrente.

Porém, o aumento das populações das comunas exigiu, do Rei, a obtenção de novas áreas de lavrar, porque as que eram destinadas ao cultivo das pessoas sem terras já não eram suficientes. Esse foi o contexto no qual teve origem o instituto das sesmarias. Terras cultiváveis ociosas, mesmo estando fora da categoria de bens comuns, foram entregues a quem delas precisava para produzir.

Essa foi uma inovação relevante, que atingiu terras da nobreza e da Igreja, configurando uma importante intervenção régia, por força de lei, no domínio particular, em benefício dos que trabalhavam a terra, tornando-a produtiva, sem que delas fossem donos, assim:

... a realeza veio em socorro dos lavradores, transformando em lei régia aquele velhíssimo costume [sobre terras comuns] e estendendo-lhe a aplicação a todas as terras não cultivadas, inclusive às incorporadas aos domínios dos nobres e da Igreja” (LIMA, 1988, p. 16).

No Brasil, para se defender de movimentações dos não contemplados pela bula papal, como os franceses e holandeses, a Coroa portuguesa buscou um modelo de ocupação do seu território. Mas, naquele período “ninguém se interessava pelo Brasil” porque: “Todas as atenções de Portugal estavam voltadas para o Oriente”, constatou Caio Prado Júnior, na obra História econômica do Brasil (1976, p. 31). O plano posto em prática foi a instituição das capitanias, como regiões territoriais que foram entregues a donatários.

O regime das donatarias, para além de buscar estabilidade à apropriação portuguesa, por meio do povoamento, destinava aos donatários a incumbência de produzir, em terras brasileiras, alterando a economia gerada na colônia, até então sustentada pelo extrativismo da madeira, que estava em declínio, por isso:

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As donatarias, distribuídas a grandes senhores, agregados ao trono e com fortunas próprias para colonizá-las, constituíram verdadeiras províncias. Eram imensos quinhões com dezenas de léguas encrestadas sobre o mar e penetrando terra adentro até onde topassem com a linha de Tordesilhas (RIBEIRO, 1995-b, p. 86).

E os donatários eram verdadeiros governantes locais, cujo poder delegado se assentava nas imensidões de terras para administrar e reparti-las: “O donatário era um grão-senhor investido de poderes feudais pelo rei para governar sua gleba de trinta léguas de cara. Com o poder político de fundar vilas, conceder sesmarias” (RIBEIRO, 1995-b, p. 87).

Com as imensidões de terras o poder foi, igualmente, transferido. A origem histórica revela, portanto, que ter o domínio da terra equivalia, efetivamente, ter o domínio do poder e esta associação parece nunca mais ter se afastado do imaginário do latifundiário. Quais poderes a Coroa entregou aos donatários? Conforme Prado Júnior (1976, p. 31), “nada menos que poderes soberanos, de que o Rei abria mão em benefício de seus súditos que se dispusessem a arriscar cabedais e esforços”, na colonização do Brasil.

O exercício dos poderes soberanos consistiam em “nomear autoridades, administrativas e juízes em seus respectivos territórios, receber taxas e impostos, distribuir terras” (PRADO JÚNIOR, 1976, p. 32), em grandes proporções, porque o cultivo escolhido foi a monocultura da cana-de-açúcar.

1.5 - Regime sesmarial uma origem da aplicação da função social da propriedade da terra

O regime sesmarial português continha, na sua essência, uma proposta do que podemos identificar como de aplicação da função social da propriedade. Isso, não era uma ideia pioneira, pois, um século antes (XIII), fora expressa por Santo Tomás de Aquino; mas, era uma aplicação, em Portugal.