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Que tenha de rendimento annual por bens, industria, commercio, ou Empregos, a somma de oitocentos mil réis.

CANDIDATOS A DEPUTADOS:

IV. Que tenha de rendimento annual por bens, industria, commercio, ou Empregos, a somma de oitocentos mil réis.

Artigo 45, IV

Para ser eleitor e, ainda mais, para ser candidato, a regra geral é a exceção:

todos, menos aqueles que não têm determinada renda, de acordo com o direito legal de

votar e de ser votado.

Este modelo é bastante elucidativo da falta de igualdade legal, mesmo entre aqueles que não eram negros libertos ou escravizados. É simbólica a constitucionalização da condição e da qualidade de ser possuidor de rendas como a garantia e a efetividade do direito de votar e o direito de ser votado.

III. Os que não professarem a Religião do Estado. CANDIDATOS A SENADORES:

Art. 43. As eleições serão feitas pela mesma maneira, que as dos Deputados, mas em listas triplices, sobre as quaes o Imperador escolherá o terço na totalidade da lista.

(...)

Art. 45. Para ser Senador requer-se

I. Que seja Cidadão Brazileiro, e que esteja no gozo dos seus Direitos Politicos. II. Que tenha de idade quarenta annos para cima.

III. Que seja pessoa de saber, capacidade, e virtudes, com preferencia os que tivirem feito serviços á Patria.

IV. Que tenha de rendimento annual por bens, industria, commercio, ou Empregos, a somma de oitocentos mil réis.

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A Constituição imperial ainda fixou uma regra de igualdade legal para o provimento de cargos públicos. À exceção dos talentos e virtudes, nenhuma diferença poderia ser causa impeditiva de acesso a tais cargos (artigo 179, XIV).

Na Constituição que inaugurou a era republicana brasileira, conferindo a denominação de República dos Estados Unidos do Brasil, decretada e promulgada, em 24/02/1891, pelos representantes do povo, reunidos em Congresso Constituinte, “para

organizar um regime livre e democrático”, a palavra igualdade foi escrita uma única

vez. Mas, apenas para afirmar que a “igualdade da representação dos Estados no

Senado” era cláusula pétrea, não podendo ser objeto de deliberação, no Congresso,

qualquer projeto legislativo que buscasse alterar essa regra (artigo 90, § 4º).

REDAÇÃO ORIGINAL:

Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 1º - Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

§ 2º - Todos são iguais perante a lei.

1.9 - A constitucionalização da desigualdade

Até à promulgação da Constituição de 1988, a desigualdade social, que é decorrente da econômica, não havia tido reconhecimento constitucional. Nos textos constitucionais de 1824, 1891, 1934, 1946, 1967 e 1969 a palavra desigualdade não foi escrita em qualquer contexto político ou semântico.

Há uma ressalva na Constituição de 1937, mas cuja única referência ao termo

desigualdade estava vinculada aos entes federativos, tendo sido vedada a criação de

“desigualdades entre os Estados e Municípios”38

.

Só a Constituição vigente admitiu, em seu texto, a desigualdade, mas não como um conceito amplo, mas denominando-a na forma de locuções, sempre como algo a ser reduzido:

- “reduzir as desigualdades sociais e regionais”, como um dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, III);

38 - Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 – “Art. 32 - É vedado à União, aos Estados, ao

Distrito Federal e aos Municípios:

a) criar distinções entre brasileiros natos ou discriminações e desigualdades entre os Estados e Municípios;”

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- “redução das desigualdades regionais”, como objetivo a ser alcançado a partir de ação da União em um complexo geoeconômico e social (art. 43);

- “reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional”, como uma das funções dos orçamentos fiscal e de investimento da lei orçamentária anual, compatibilizado com o plano plurianual da União (art. 165, § 7º); e

- “redução das desigualdades regionais e sociais”, como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, VII).

Os reconhecimentos de existências de desigualdades sociais, regionais e inter- regionais vincularam-nas a proporções numa escala inaceitável pelos legisladores constituintes, que estabeleceram uma promessa constitucional: é preciso reduzi-las.

Quando me refiro ao não reconhecimento constitucional da desigualdade, óbvio que é no sentido de se admiti-la como problema a ser enfrentado pela política e pelo direito. Dito de um modo mais claro: a desigualdade não era tratada como problema do Estado e esta omissão caracterizou, a meu ver, uma daquelas perversidades políticas que escolhe esconder a iniquidade, por acreditar que seria menos vergonhoso, perante as comunidades interna e internacional, do que expor abertamente a realidade do País e de seu povo.

Na verdade, em sentido totalmente oposto, a política e o direito instituíram, historicamente, a constitucionalização da desigualdade. A desigualdade censitária, sustentada em critérios patrimoniais e de renda, foi constitucionalizada no período imperial do Brasil.

Conforme demonstrado neste capítulo, o modelo de Estado criado pela “CONSTITUICÃO POLITICA DO IMPERIO DO BRAZIL”, mesmo se afirmando como uma “associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros”, efetivamente, não permitiu o nascimento sequer de uma democracia formal que promovesse e assegurasse, como mínimo, o mero direito de votar.

Um outro aspecto a ser considerado, a mulher, por ser mulher, estava fora do regime político que inaugurou o Brasil, como Pochmann (2015, p. 35) sintetizou: “Tratou-se de regime censitário, capaz de disponibilizar o voto tão somente da população masculina alfabetizada que detinha posses patrimoniais e renda, compreendendo não mais que 5% da população”.

A Constituição de 1988 reconheceu e explicitou problemas da desigualdade. Primeiro, erigindo como um dos objetivos fundamentais da República a erradicação da

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pobreza e da marginalização e, em relação ao que identificou e classificou como “desigualdades sociais e regionais”, assumiu o compromisso de reduzi-las (art. 3º, III).

Teria sido honesto reconhecer a existência de um estado de miséria, naquele momento, de uma significativa parcela da população brasileira. Mas, a palavra miséria, certamente, não compõe bem um texto constitucional. Parece até que já foi um exercício considerável reconhecer, na Constituição, os problemas da pobreza e da

marginalização.

O não reconhecimento da miséria remete ao que, também, não foi feito, pela Constituição imperial, ao não abordar a existência da escravidão, seja para afirma-la e delimitá-la, no regime jurídico, seja para reconhecê-la como problema ou, o que deveria ter sido feito, para erradicá-la, constitucionalmente, como mais tarde, fizeram os Estados Unidos da América, com a Emenda XIII.

Outras referências à desigualdade são feitas no texto de 1988, como as “desigualdades regionais” (art. 3º, III); entre regiões (art. 43 - Art. 43. Para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais); entre contribuintes (art. 150).

O reconhecimento político-jurídico da desigualdade é importante porque a transforma em motivo de atuação do Estado para, ao menos, “reduzi-la” e isto, significa, efetivamente, adotar instrumentos da política orçamentária com tal finalidade, como, nesse sentido, aponta a Constituição (art. 165, § 7º).

A onda principiológica que tomou conta do texto constitucional brasileiro poderia ter instituído mais um: o princípio da redução das desigualdades... mas, isso significaria um abandono da igualdade como princípio essencial do regime jurídico do Estado democrático de direito. A síntese seria essa: a igualdade teria deixado de ser um ideal do Estado fundado pela Constituição que consagraria a desigualdade, desde que em proporções aceitáveis e, uma vez alcançada uma determinada escala, deveria se subordinar ao inusitado princípio da redução das desigualdades.

Igualdade é justiça, isso que Aristóteles sintetizou, quando afirmou que “a

função de um governante é ser o guardião da justiça e, se assim o é, (ou seja, da justiça), então da igualdade” (ARISTÓTELES, 2007, p. 162). Na Constituição

brasileira (1988), a “igualdade e a justiça” não são empregados como equivalentes, mas estão destacadas, em seu preâmbulo, “como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.

81 1.10 – Reflexões sobre igualdade x desigualdades

(entre o direito, a política e a “justiça”)

Defender e justificar a desigualdade de uma maneira geral, entre as pessoas, como algo inerente à natureza, parece ser um exercício teórico mais fácil ou, no mínimo, menos complexo39. Afinal, é tratar de algo bem concreto, visível, sensível, seja para quem está no vértice da pirâmide da desigualdade material, seja para quem está no piso da sua base. A desigualdade é um fenômeno real e prevalecente, no mundo, que se revela de diversos modos e, com destaque, em números que medem a riqueza e a hiperconcentração da riqueza em contraposição com a pobreza. A exasperação da desigualdade é o que o capitalismo predominante tem a apresentar.

Estudos da organização britânica Oxfam40 revelaram a informação de que, no ano de 2015, 1% (um por cento) da população mundial mais rica concentrava riqueza acumulada superior ao que os 99% (noventa e nove por cento) restantes dos habitantes do planeta detinham. Tais dados, longe de significar o triunfo do domínio do capitalismo, é, ao contrário, a certificação final de seu absoluto fracasso. Outro indicador desse fracasso de modelo econômico é evidenciado pela concentração de riqueza na correlação entre o que os 50% (cinquenta por cento) mais pobres do mundo (cerca de 3,5 bilhões de pessoas) possuem é igual ao patrimônio de apenas 62 bilionários41. Se os regimes político, econômico e jurídico deram certo para 1% (um por cento) da população constituída por bilionários (com o esforço de considerar que possam ter ficado ricos honestamente), em contrapartida, olhando o outro polo da população mundial, não há como acreditar em regimes que impedem ou excluem a maioria de acesso a indicadores mínimos de igualdade.

39 - Nesse sentido, alguém que foi médico, teórico da ciência, sociólogo e psiquiatra, foi capaz de produzir

uma explicação simplista sobre a desigualdade e contra a igualdade humana, José Ingenieros (2006, p. 212-213): “Nossa espécie saiu das precedentes como resultado da seleção natural; apenas há evolução onde podem selecionar-se as variações dos indivíduos. Igualar todos os homens seria negar o progresso da espécie humana. [...]

É evidente a desigualdade humana em cada tempo e lugar; há sempre homens e sombras. Os homens que guiam as sombras são a aristocracia natural de seu tempo e seu direito é indiscutível. É justo, porque é natural”.

40 - Oxfam – Oxford Committee for Famine Relief (Comitê de Oxford para Alívio da Fome), criado, em

1942, para discutir os impactos da Segunda Guerra Mundial.

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- Essas informações, contidas no Documento Informativo da OXFAM 210, 18 de janeiro de 2016, foram amplamente repercutidas em diversos veículos de comunicação, no Brasil e no mundo, pouco antes da realização do Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, com pedidos, aos líderes, de que tomassem medidas para enfrentar a desigualdade no planeta.

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Infelizmente, a desigualdade se tornou um tema-problema que ocupa lugar importante entre estudiosos de diversas áreas do conhecimento, de movimentos sociais e de políticos porque a afirmação da igualdade – além de um princípio (e princípios, por princípio, são gerais) –, foi recusada, senão negligenciada pela política. A igualdade é um ideal que se transformou em um objeto de discursos que vagueiam entre a política, o direito e a “justiça”.

O que é a igualdade? Existe uma igualdade absoluta e sem limites? A igualdade é econômica, material; de gêneros; de oportunidades? Há tantas outras igualdades específicas que são buscadas, como a “igualdade racial”. Mas de qual igualdade, se está a tratar? Um problema fundamental da igualdade é a dificuldade de se chegar a um acordo sobre um possível parâmetro que a explicite e esse referencial passe a ser a base de sua promoção. Igual a quê? Ao maior ou ao menor? Qual é o seu termo, sua medida? Na economia, existe a proposta, já em prática em alguns países, de uma “renda mínima” igualitária, desde o mais pobre até o mais rico daquele universo. Mas, essa medida busca apenas nivelar um determinado mínimo e permanece reconhecendo e legitimando a desigualdade, para além desse mínimo. Porém, pode ser um ponto de partida da igualdade.

É possível acreditar que a igualdade entre os seres humanos, no seu sentido mais amplo, existiu algum dia. Mas, da parte da história da humanidade sobre a qual existem conhecimentos registrados e interpretados, a igualdade passa a ser um princípio, um propósito a ser alcançado ou, ao menos, uma ideia que alimenta a própria existência humana. A ideia de igualdade é um valor tão fundamental que se transformou em um princípio do ser humano, da política, do direito e da “justiça”. Nos âmbitos da política, em especial da que se funda na democracia, e do direito, a igualdade é o seu fundamento essencial. Dworkin denomina princípio igualitário abstrato o princípio que “enuncia a idéia em sua forma mais abstrata” e sendo este o que atua sobre o governo de modo a que este aja para “melhorar a vida dos cidadãos”, tratando a todas as pessoas com igual consideração (DWORKIN, 2005-a, p. 253). Entretanto, NERI; MELO; MONTE (2012, p. 55) constataram que: “Não é difícil, portanto, compreender a inaceitável extensão do índice de Gini brasileiro, que é superior a 0,5: estamos mais próximos da perfeita iniquidade do que da perfeita igualdade”.

Ao fracassarem a política e o direito, em um ambiente que invoca a democracia como identidade do regime de Estado, fracassa a própria democracia diante de suas promessas ou compromissos fundamentais, como conclui Bobbio:

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A democracia considerada, pelo menos idealmente, como a melhor forma de governo, é muitas vezes acusada de não manter suas promessas. Não manteve, por exemplo, a promessa de eliminar as elites do poder. Não manteve a promessa do autogoverno. Não manteve a promessa de integrar a igualdade formal com a igualdade substancial (BOBBIO, 1988, p. 209).

Na sua obra, O que é o direito? A moderna resposta ao realismo jurídico42, o autor, após afirmar que igualdade é uma: “Palavra mágica e mítica em nosso tempo”, invoca a expressão “sociedade livre, solidária e igual”, para rotulá-la, nestes termos: “é um chavão político, e poucas coisas prejudicam tanto a arte do direito como confundi-la ou misturá-la com a política” (HERVADA, 2006, p. 28-29). Há que se concordar com ele, quanto à relação entre o direito e a política; de fato, não podem ser confundidos e nem misturados, ao contrário, é preciso tratá-los de modo claramente distintos, porém, indissociavelmente. Não apenas não se pode misturar direito e política, no sentido de produzir uma confusão entre ambos, como, também, não se pode separá-los a ponto de se pretender que existam e cumpram suas funções, como se fossem isolados e puros. Ambos se sustentam e devem se equilibrar. A política está para o direito, assim como a igualdade está para o ser humano.

A ciência não faz um bom papel ao buscar isolar certos conceitos, em uma tentativa de se atingir uma pureza de cada elemento, sobretudo, da vida social. A dinâmica da vida humana não se prende a uma ideia de pureza. A maior tragédia humana aconteceu a partir da ideia de uma raça pura; o arianismo foi concebido e aplicado sobre milhões de pessoas, com a chancela de uma experimentação científica.

Hervada (2006) propõe uma “igualdade da justiça”. O que vem a ser isto? Porque, como concluiu KANT (1993, p, 205): “Quando alguém não pode demonstrar que uma coisa é, deve tratar de provar que não é”. Assim, escreve Hervada:

A igualdade da justiça não é a igualdade à qual aspiram os políticos igualitaristas. A igualdade em termos políticos atuais, designa, às vezes, a aspiração de dar a todos a mesma coisa. Aspiração que – pelo menos em algumas matérias – podemos olhar com simpatia – somos livres – em termos políticos, mas devemos ter bem claro que essa não é a igualdade da justiça (isso não quer dizer que seja sempre injusta; simplesmente quer dizer que é uma aspiração política, não uma exigência de justiça). Qual é a igualdade

42 - Javier Hervada, professor titular de Filosofia do Direito da Universidad de Navarra (que nasceu como

Escola de Direito), abre um parêntesis, no tópico que aborda a igualdade, em sua obra O que é o direito?

A moderna resposta ao realismo jurídico, para esclarecer que “este livro não tem nada de político”

(HERVADA, 2006, p. 28), ficando a expressão aberta à interpretação de que se trata de uma ironia ou de uma ingenuidade intelectual; seja qual foi a sua intenção, tal afirmação não condiz com o direito e nem com a própria política.

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própria da justiça? É aquela contida em sua fórmula: dar a cada um o que é seu. Todos são tratados igualmente porque a todos é dado o que lhes corresponde (HERVADA, 2006, p. 29).

Há alguns equívocos e uma contradição nesse pensamento. Primeiro, ele cometeu um reducionismo da ideia de igualdade, “em termos políticos”, à vontade de “dar a todos a mesma coisa”. Se esta fosse a aspiração da política, mesmo na sua manifestação mais superficial, não seria correta e, também, não poderia ser confundida como uma medida de “justiça”. Além de não existir a mesma coisa para, com sua distribuição, igualizar as pessoas, também, não seria essa a equivalência de sentido prático da realização da igualdade. As pessoas, certamente, não querem essa “mesma

coisa”, ainda que se trate de igualdade estritamente materialista. Isto, porque,

simultaneamente, com a reivindicação de igualdade, se está a reivindicar um direito à diferença. E não se trata de uma diferença, cujo conceito possa ser sinonimizado com o da desigualdade ou, de algum modo, associado com esta. A contradição é a que se revela, na afirmação de Hervada, de que “isso não quer dizer que [a justiça] seja sempre

injusta”.

Outro equívoco é a adoção de uma fórmula para definir “justiça”: “dar a cada

um o que é seu” que, segundo o próprio Hervada (2006, p. 29), trata-se de uma “noção de justiça – dada pelos juristas romanos e que ninguém foi capaz de trocar por outra mais convincente”. É próprio da “justiça” “dar a cada um o que é seu”? Não me parece

razoável. Cada um precisa não daquilo é seu, mas do que seja necessário...

A fórmula invocada é daqueles tipos de respostas que expressam uma ideia tão abstrata que até pode parecer ser sábia e interessante. “Dar a cada um o que é seu”, de tão subjetivo que é, pode significar, para uns, tudo e, para tantos, nada.

Quem define “o que é seu”? De onde provém – como medida de justiça – essa dosimetria de proporcionalidade justa a cada um? Que justiça é essa? Exige-se muito abstracionismo para acreditar nesta fórmula como algo que possa permanecer como noção mais convincente de justiça. Portanto, Hervada não conseguiu se desincumbir da recomendação de Kant.

Muitos já se ocuparam de explicar a desigualdade e suas origens (ROUSSEAU, 1989; DWORKIN, 2005-a; NERI et al., 2012; PIKETTY, 2014; POCHMANN, 2015), é preciso que, por intermédio da Política e do Direito, sejam construídas e aplicadas medidas efetivas que superem a desigualdade, atacando, ao mesmo tempo, suas causas e consequências.

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“Não há, na história brasileira estatisticamente documentada (desde 1960), nada similar à redução da desigualdade observada desde 2001. A queda acumulada é comparável, em magnitude, ao famoso aumento da desigualdade dos anos de 1960, que colocou o Brasil no imaginário internacional como a terra da iniquidade inercial” (NERI et al., 2012, p. 55).

Uma delas, a desigualdade no exercício do direito de propriedade. Quem formula o direito, sempre como instrumento de dominação, é capaz de se regozijar com as expressões direito à propriedade e direito de propriedade. Para todos, a ideia e o direito abstrato e, para poucos, a concentração prática e efetiva dos direitos de “usar,

gozar e dispor da coisa” e de se defender contra terceiros. É absolutamente inócua a

garantia jurídica do direito à propriedade, sem que sejam proporcionadas as condições mínimas para o exercício do direito de propriedade de forma democratizada.

Fico pensando na eficácia da proposta de José Bonifácio, que foi rejeitada, em relação aos “homens de cor forros” que deveriam receber do Estado “uma pequena

sesmaria”, além dos “socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo” (SILVA, 2005, p. 69). Veja que ele não propôs um ato

de caridade por parte do Estado. Era um negócio. Um negócio, porém, fruto de uma concepção política de que havia um problema que reclamava uma solução a mais do que a pura libertação dos escravizados, mas de mãos vazias.

Tenho notado uma crescente afirmação sobre o direito à diferença, palavra que não deve ser confundida com desigualdade. E penso que só faz sentido pleitear a diferença como direito, a partir de um determinado marco referencial de igualdade. Defender e buscar a diferença exige ter como referente uma certa ideia e prática comum de igualdade; sem isso, é acreditar somente na própria diferença como uma razão de existir, porque não se é diferente do nada.

A desigualdade de renda ou econômica se reflete na desigualdade política e esta repercute nas definições do que virá-a-ser direito, sobretudo, a partir de aprovações de textos legais. A advertência de Dworkin (2005-b, p. 320): “Não devemos permitir a alguém que consegue grande riqueza no mercado, comprar votos e, assim, controlar a política”, parece não ter sido ouvida por quem compra e nem por quem vende votos.

A igualdade perante a lei se situa na categoria do princípio igualitário abstrato (DWORKIN, 2005-a, p. 253), mas não assegura a igualdade econômica e social, conforme o sociólogo José de Souza Martins as distingue:

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É necessário distinguir a igualdade jurídica da igualdade social. Esta é uma sociedade em que as pessoas são juridicamente iguais, mas, de fato,