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4.3. Relação teoria e prática nas práticas pedagógicas com os colegas e com a comunidade

4.3.4. Conhecimento do conteúdo e conhecimento pedagógico do conteúdo

torna-se necessário o esclarecimento dos motivos que levaram à escolha das expressões conhecimento do conteúdo e conhecimento pedagógico do conteúdo como orientadores dessa análise. Como observado na parte inicial do estudo, essas duas expressões são propostas por Shulman (1987) ao refletir sobre o processo de formação inicial dos professores. Entretanto, ao utilizar essas duas expressões, faz-se referência a todos os autores analisados, que, apesar de adotarem expressões diferentes, compartilham do pensamento de Shulman.

Além desses, é necessário que se sejam consideradas as proposições de autores como Bento, Garcia e Graça (1999), que também se dedicam ao estudo dos processos de construção dos conhecimentos pedagógicos na formação inicial dos professores.

De acordo com os autores, nos cursos de formação inicial em Educação Física, observa-se uma segregação dos conteúdos abordados, como anteriormente apontado por Nascimento (2002), cuja compartimentalização dos saberes produzidos dificulta a sua inter-relação e, conseqüentemente, a sua utilização como base para a construção de novos conhecimentos (Bento, Garcia e Graça, 1999).

Seguindo uma formação pautada nesses pressupostos, as chances de que os conhecimentos do conteúdo sejam assimilados superficialmente são muito grandes, já que não será possibilitado aos estudantes-professores um momento para que os relacionem com os conhecimentos pedagógicos.

Como conseqüência, o desenvolvimento dos conhecimentos pedagógicos do conteúdo, que requer uma forte ligação entre os conhecimentos do conteúdo, os conhecimentos pedagógicos e a própria intervenção docente em situações experimentais, como as práticas pedagógicas com colegas e com alunos da comunidade, ficará substancialmente comprometido.

Em cursos que seguem uma formação com essas características, não é observada a implementação de estratégias, sejam elas de cunho teórico ou prático, que objetivem a relação entre esses enfoques. Sendo assim, recai sobre o próprio estudante-professor a responsabilidade pelo estabelecimento da relação entre os conhecimentos do conteúdo e os conhecimentos pedagógicos do conteúdo, a exemplo do que sugere o modelo implícito de formação em alternância (Pedroso, 1996; Nascimento, 2002).

Entretanto, a formação centrada na construção do conhecimento pedagógico do conteúdo busca o desenvolvimento das competências necessárias para a intervenção docente, considerada “emergente das transformações que o professor realiza no conteúdo da sua disciplina com o propósito de tornar a matéria que ensina compreensível para os alunos” (Bento, García e Graça, 1999, p. 217).

Na opinião da estudante-professora Eduarda, no processo de construção das aulas a serem ministradas para alunos, era enfatizado justamente o conhecimento do conteúdo. Segundo ela,

era feito um treinamento do professor/acadêmico com relação ao conteúdo, e não com relação ao trabalho com a criança. Éramos preparados para saber o conteúdo a ser passado para as crianças depois. Tínhamos sempre aula teórica e prática. Então acho que foi mais dentro do conteúdo. Sempre nos preparavam para que soubéssemos o conteúdo que iria ser aplicado (entrevista em 17/12/04).

No que diz respeito aos conhecimentos pedagógicos, a estudante-professora Eduarda relata que “não havia preparação para trabalhar com as crianças. Éramos preparados para aprender os fundamentos que íamos ensinar, mas não preparados pedagogicamente para ensinar” (entrevista em 17/12/04).

Nesse sentido, a estudante-professora Janaína diz que, nos estudos teóricos, “os textos tratavam basicamente da idade das crianças [...] características, necessidades, objetivos”. Para ela, o conhecimento pedagógico do conteúdo será conhecido no momento em que iniciarem as práticas pedagógicas com alunos da comunidade, ou como ela mesma diz: “Tu vê mesmo como é que é quando vêm as crianças” (entrevista em 22/12/04).

Essa realidade é analisada por Bento, Garcia e Graça (1999) e Perrenoud (2002b), quando afirmam que, na formação inicial dos professores, os saberes para serem ensinados apresentam-se de maneira mais saliente durante os cursos, gerando a interpretação de que, para que o aluno aprenda, basta que o professor saiba executar a tarefa ou compreendê-la para si. Nesses cursos, em contrapartida, é dedicado um pequeno espaço para os saberes para ensinar, que se relacionam com os saberes pedagógicos ou didáticos que fundamentam a intervenção docente no processo de ensino-aprendizagem.

Além disso, na concepção de Pérez Gómez (1995), o conhecimento pedagógico do conteúdo a ser desenvolvido com estudantes-professores “não pode ser ensinado, mas pode ser aprendido”, por meio de atividades com as quais se possa aprender fazendo e refletindo na e sobre a prática (p. 112).

O estudante-professor Hugo descreve o processo de construção dos conhecimentos pedagógicos e do conteúdo. Segundo ele, eram realizados estudos teóricos sobre os fundamentos específicos do esporte e, posteriormente, estes fundamentos eram praticados pelos estudantes-professores, e, com base nisso,

a gente conseguia planejar alguma coisa pra ensinar pros alunos. Mas era repetição [...] a metodologia era essa [...] sempre visando o aluno da escola, sempre colocando como é o trabalho na escola, como tem que se passar isso na escola. Então é a forma metodológica [...] não tinha um método certo, pra chegar nessa aula prática (estudante-professor Hugo, entrevista em 20/12/04).

Apesar da situação apresentada pelos estudantes-professores Eduarda e Hugo, um exemplo relatado pela estudante-professora Inês deixa claro que, durante a sua formação, vivenciou outras experiências no que diz respeito à inter-relação entre os conhecimentos teóricos e práticos. Segundo ela, em algumas disciplinas “a gente não tinha a teoria. Nós buscávamos a teoria. [...] Nós tínhamos que buscar a noção do que a gente ia trabalhar, pra depois trabalhar”. Citando as atividades e as estratégias utilizadas pelos professores em suas aulas, evidenciando uma maior preocupação com os conhecimentos pedagógicos, a estudante-professora Inês diz que

a gente aprendia a organizar o nosso planejamento para as aulas que nós iríamos trabalhar fora daqui. Mas não o conteúdo em si. A gente tinha uma noção do que dava pra trabalhar, do que não dava [...] o que a gente tinha que fazer era ir buscar o que trabalhar nas atividades. Então nós tínhamos a metodologia nessas aulas, só, de como trabalhar (entrevista em 22/12/04).

Continuando com sua reflexão sobre os momentos de construção dos seus conhecimentos durante a formação inicial, a estudante-professora Inês revela:

Se nós tivéssemos feito, ao menos entre nós uma simulação de prática, de como trabalhar, possivelmente eu chegaria um pouco mais confiante. Tentando já estar preparada para os possíveis imprevistos que pudessem acontecer. Mas não, a gente não teve. Encaramos desde já a realidade. É um pouco difícil (entrevista em 22/12/04).

Aproximando-se dos sentimentos expressados pela estudante-professora Inês, e vendo a necessidade de realizar as atividades de prática pedagógica com crianças, a estudante-professora Ana conta que “a primeira reação que tu tem é ser tradicional. Então, tu não tem capacidade didática, capacidade de organizar uma aula, tu tem muito superficial” (entrevista em 16/09/04).

Nesse horizonte, Fontana e Pinto-Guedes (2002) afirmam que, diante da dúvida, seja ela advinda de questões de caráter teórico ou prático, os estudantes-professores sentem-se reprimidos, acuados, “na defensiva do não-saber-fazer, assustados ao se verem reproduzindo gestos e modos de ensinar que criticam e rejeitam” (p. 17).

Voltando-se especificamente para os conteúdos de caráter didático-pedagógicos, a estudante-professora Ana comenta que

ficaram a desejar, conhecimento acerca das crianças, sobre adolescentes, eu não conhecia nada, não sabia, foi difícil trabalhar com adolescentes, ainda mais de classe bem elevada, que foi o caso que eu trabalhei. Conhecer a realidade deles, que que eles fazem. Então tu não tinha um conhecimento a cerca dos alunos. Isso não foi, sequer, falado. Tu saber que de dois a três anos tu tem que desenvolver isso, de quatro a cinco isso (entrevista em 16/09/04).

Pode-se perceber, portanto, no depoimento da estudante-professora Ana, a necessidade de um maior embasamento teórico, como suporte para a sua intervenção na escola, durante as práticas pedagógicas com a comunidade.

A preocupação observada na fala da estudante-professora Ana é compartilhada pela estudante-professora Eduarda:

Éramos preparados para conhecer o conteúdo que íamos trabalhar, mas ao mesmo tempo não tínhamos orientação de como trabalhar esse conteúdo com as crianças, ou de como atingir os meus objetivos, ou que tipo de estratégias utilizar para trabalhar com essas crianças. Tínhamos como base as atividades que fazíamos em aula, mas nem sempre o que funciona com o meu colega, vai funcionar com as crianças. Ou mesmo se não funciona, como vou saber por quê? (entrevista em 17/12/04).

Nesse sentido, o professor André deixa claro que tem ciência da necessidade de um aprofundamento nas questões relacionadas à atuação na área escolar, quando diz que

a forma como a disciplina está formatada, como ela vem sendo desenvolvida, ela atende muito mais aos objetivos do bacharelado, da formação esportiva, do que a Educação Física escolar, do que o futsal como um componente da Educação Física escolar, como um componente do esporte e da Educação Física escolar. Então, o grande desafio é esse, é no campo da Licenciatura (entrevista em 14/09/04).

A interpretação da estudante-professora Eduarda a respeito do enfoque dado aos conteúdos vem ao encontro da opinião do professor André. Para ela, as disciplinas sempre foram muito voltadas “para a prática desportiva, bem técnico [...] alguns voltavam um pouco para a área escolar, e relacionavam os conteúdos com a área escolar. Mas eu achei sempre muito voltado pro desporto, pra técnica, e visando desempenho” (entrevista em 17/12/04).

Apesar disso, o professor Celso, analisando o enfoque dado em suas aulas, expressa sua preocupação com o conhecimento dos estudantes-professores acerca das diferentes metodologias utilizadas para o ensino do desporto do qual trata sua disciplina. Nessa direção, ele diz: “A minha primeira preocupação é que os alunos consigam entender quais são as metodologias que existem [...] o que é um processo metodológico, como é que se desenvolve um processo metodológico” (entrevista em 13/12/04). De acordo com o professor Celso, a partir do conhecimento da metodologia de ensino é que serão abordados os fundamentos específicos daquela modalidade.

Refletindo sobre as alternativas para aprimorar a construção dos conhecimentos pedagógicos dos estudantes-professores antes das práticas pedagógicas, a estudante- professora Eduarda se reporta à disciplina de Natação. Ela diz que nessa disciplina,

teve um preparo antes. A gente se preparava em aula para trabalhar, e já trabalhava com o colega mais ou menos o que deveria observar em aula, o que deveria ser trabalhado. Planejava a aula, porque tinha a exigência de um planejamento dos objetivos, o que deveria ser ensinado dentro de um determinado tempo. Então aquilo já dava um preparo maior para chegar na aula e saber o que deveria ser feito e como lidar com a criança (entrevista em 17/12/04).

Prosseguindo com sua análise, a estudante-professora Ana compara novamente as práticas pedagógicas com crianças, com estágios ao final do curso, dizendo que são somente “algumas aulas que tu organiza, não é um acompanhamento de um ano com uma criança, tu sabe que tu vai estar largando ela daqui três meses, nem é tu que dá todas as aulas de Educação Física durante a semana. Então tu não é responsável por ela plenamente” (entrevista em 16/09/04).

Assim como há a necessidade de maior embasamento teórico-metodológico, a estudante-professora Ana discute também o tempo de contato com as crianças, tanto nas práticas pedagógicas, nas disciplinas desportivas, quanto nos estágios, ao final do curso. Ela questiona a validade dessas intervenções na medida em que não há um acompanhamento em longo prazo, que permita a constatação de uma evolução do aprendizado das crianças, e que possibilite a comprovação de que os objetivos estabelecidos inicialmente foram alcançados ou não.

Na realidade, tanto as práticas pedagógicas quanto os estágios, estão inseridos em disciplinas semestrais conforme a estrutura curricular do curso de Licenciatura em

Educação Física da Universidade de Caxias do Sul, o que, a princípio, inviabilizaria a sua realização por um período mais dilatado.

Essa constatação é comentada pela professora Dalva quando enfatiza que são oito encontros que os estudantes-professores têm que realizar durante as práticas pedagógicas com a comunidade. Para ela, durante esse tempo, os estudantes- professores têm a possibilidade de aplicar várias aulas e buscar a solução dos problemas surgidos na prática, através de estudos teóricos e debates em sala de aula com colegas e com a própria professora (entrevista em 13/12/04).

Apesar disso, a professora Dalva reconhece a necessidade de um tempo maior de permanência do estudante-professor junto com seus alunos nas escolas, e afirma que será na convivência diária com esses problemas que cada um deles conseguirá aproximar-se das peculiaridades que permeiam a atuação docente (entrevista em 13/12/04).

Para a estudante-professora Eduarda, nas práticas pedagógicas com a comunidade deveria ser feito um planejamento como é feito quando a gente vai trabalhar a Educação Física na escola, ou como é feito no estágio. Exigir uma proposta do que vai ser trabalhado, qual o objetivo, dentro de que período, tudo certinho, com a sua justificativa, com tudo. Uma proposta bem construída, mesmo que seja para trabalhar com o treinamento de um desporto. Acho que deveria ser feito esse projeto, e serem elaborados os planos de aula, como é feito quando a gente vai trabalhar na escola (entrevista em 17/12/04).

É importante destacar o sentimento de responsabilidade que as estudantes- professoras adquiriram ao longo do curso, no sentido que desejaram, efetivamente, um acompanhamento mais próximo possível das crianças com as quais realizaram suas práticas pedagógicas. Essa é uma forma de comprovar a eficácia da realização dessas atividades com a comunidade ao longo do curso, para o amadurecimento e elevação do profissionalismo dos estudantes-professores, e para a construção de suas competências pedagógicas.

Além disso, verifica-se uma ênfase no conhecimento do conteúdo, haja vista a importância atribuída aos conteúdos técnicos específicos das modalidades desportivas, assim como a própria prática desportiva dos estudantes-professores. Entretanto, observa-se que, tanto os estudantes-professores quanto os professores-formadores têm consciência da necessidade de ampliação da abordagem dos conhecimentos referentes ao aspecto pedagógico do conteúdo, como elemento desencadeador do processo de construção das competências pedagógicas dos estudantes-professores.

Essa constatação vem ao encontro das reflexões de Garcia (2001) sobre a relação entre a prática desportiva e a prática pedagógica na formação inicial dos professores de Educação Física. Segundo o autor,

ensinar a nadar [...] não pode ser uma função da faculdade. Infelizmente arriscamo-nos a reduzir grande parte do curso a estas tarefas básicas. [...] A faculdade terá que pensar mais profundamente extramuros, principalmente nas atribuições sociais do desporto e da Educação Física e não ficar apenas na sua mera convivência interna diária (Garcia, 2001, p. 40).

4.3.5. Participação dos professores-formadores nas práticas pedagógicas