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O conhecimento religioso: as estratégias de aquisição e transmissão nos terreiros de Macapá.

Festas religiosas: hibridações culturais e conflitos.

3. O conhecimento religioso: as estratégias de aquisição e transmissão nos terreiros de Macapá.

Assim, dentro do universo afro-religioso de Macapá é o conhecimento religioso a base de sustentação dos sacerdotes e conseqüentemente dos terreiros. Daí que tornar-se um curador, e mais difícil ainda um pai-de-santo ou mãe-de-santo, por conta própria, sem o

149 AMARAL, AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e viver no candomblé. Rio de Janeiro: Pallas; São

Paulo: EDUC, 2002: 48.

acompanhamento de outro mais experiente se não é totalmente impossível, é extremamente raro, uma vez que todas as modalidades afro-ameríndia-religiosas existentes na região exigem uma iniciação. E mesmo os procedimentos de iniciação na Cura, por exemplo, descritos como mais simples que os de outras religiões, e vimos alguns neste trabalho, exigem que alguém de mais conhecimento prepare os médiuns para receber os guias com mais controle e também organize, distribua as funções entre as diferentes entidades de cada médium. É necessário, por exemplo, que o sacerdote responsável pela iniciação e preparação determine qual entidade será o guia chefe, encarregado pela abertura dos trabalhos das sessões, quais serão as que trabalharão, quais trabalhos serão de competência de cada uma, qual será a responsável pelo encerramento das atividades da sessão.

Daí a importância dos pais e mães-de-santo que, por serem mais velhos de santo, ou seja, terem mais vivência na religião, supõe-se que possuem mais experiência e mais conhecimento para repassar para sua comunidade.

Centenas de rezas cantadas em línguas africanas e em português, receitas de ebós e de banhos para os mais diversos fins, procedimentos ritualísticos, regras de comportamento, e uma enorme variedade de outros elementos constituem o cabedal de conhecimentos que um pai ou mãe-de-santo precisa possuir.

É o conhecimento religioso, um dos principais fatores que determinam o sucesso e legitimam, ou não, um sacerdote perante os outros no universo deste estudo, e ao mesmo tempo, a causa principal dos desentendimentos e desavenças entre eles. Assim sendo é tão relevante para os afro-religiosos que os mesmos se utilizam de inúmeras estratégias no processo de ensino-aprendizagem.

Nós aprendemos no dia-a-dia. Se você tiver interesse em aprender vai ficar tudo na sua cabeça. O nosso método é nós se interessar só no que nós queremos, e nós queremos só a religião. Então nós trabalhamos só em cima dela. O nosso interesse é em saber aquilo, em aprender a rezar, aprender a cantar, aprender a dançar, aprender fazer as oferendas todas, os cumprimentos, sentar, levantar, deitar, tudo. Então isso aí a gente aprende. (Pai Salvino, tata de inkice OmiZanguê, sacerdote do Ilê Axé Odara da Oxum Apara).

Aprender e ensinar é uma arte que se trabalha diariamente e que exige muita atenção e concentração. É necessária dedicação total à busca do conhecimento da religião de forma que fazer parte de um terreiro é muito mais do que freqüentar um templo religioso, uma ou duas vezes por semana, como acontece em outras denominações religiosas.

Entre os candomblecistas, no meio das muitas obrigações dos adeptos, está o domínio de inúmeros elementos particulares dos cultos. E isto depende, como já mencionamos, de tempo, disponibilidade e grande confiança nos ensinamentos do sacerdote ou sacerdotisa.

Eu dirijo a minha casa pela casa dele (do pai-de-santo) porque certo ou errado, ele faz as coisas dele e tem dado certo. Então, eu vou por ele. Como ele me ensina. Ele não senta assim: olha fulano, tal coisa é assim, assim, assim, não. Você vai aprender na prática. Você tem que ser esperto. Ele tá lhe ensinando, olha, vai ali, prepara um banho, leva isso, isso e isso. Então, eu já tenho que pegar aquilo ali que ele me ensinou e gravar na minha mente. Aquilo já foi um ensino. Seja rápido, como for, mas já foi um ensino. (Mãe Deusa, filha de santo do pai Salvino e sacerdotisa do Terreiro Zé Pelintra, Macapá – Ap).

Assim, os conhecimentos religiosos adquiridos e repassados dentro dos terreiros em Macapá, são essencialmente práticos, a maioria baseada em processos mecânicos de memorização pela repetição, que dispensam o uso de explicações. Não se costuma perguntar o porquê das coisas, simplesmente faz-se, acreditando que é a melhor forma de agir.

Um filho ou filha de santo geralmente não pergunta ao seu pai ou mãe-de-santo a razão para esse ou aquele procedimento, até porque muitos não saberiam explicar. Visto que, também aprenderam dessa maneira e, provavelmente, tomariam tal atitude como impertinência. O fato é que, espera-se que a autoridade de sacerdote ou sacerdotisa legitime o conhecimento repassado dentro dos terreiros, sem maiores questionamentos.

Por outro lado, como já foi mencionado, diversas são as estratégias e mecanismos empregados no processo de ensinar e aprender entre os que vivem as religiões afro-brasileiras no âmbito desta pesquisa, e entre os afro-religiosos de maneira geral, como informa o sociólogo Reginaldo Prandi:

Comenta-se que os antigos pais e mães-de-santo, ao morrerem, costumavam deixar a algum filho predileto muitos cadernos e documentos contendo segredos da religião, como fórmulas rituais, letras de cantigas, rezas, mitos de odu, oriquis, receitas e recomendações – isso apesar de os pais e mães-de-santo daqueles velhos tempos serem quase todos analfabetos (PRANDI, 2005:9).

Um dos meus informantes possui um velho caderno, com as páginas amareladas e soltas, contendo informações sobre o culto e que lhe foi repassado pelo

sacerdote que o iniciou, há mais de vinte anos. É cópia desse material que ele, por sua vez, repassa aos seus filhos de santo quando do momento de entrega de decá.

Portanto, a escrita, seja nessa forma de “velhos segredos” guardados, na literatura popular ou na acadêmica, é fonte de conhecimento religioso para os candomblecistas de Macapá, como se pode constatar também pelos títulos e autores constantes das bibliotecas de alguns sacerdotes. Religiosos com obras publicadas como Maria Bibiana do Espírito Santo “a Mãe Senhora”151 e Euclides Menezes,152 além de pesquisadores como Pierre Verger, Roger Bastide e Reginaldo Prandi (principalmente a obra “Mitologia dos Orixás”), são bastante conhecidos, embora se perceba atualmente certo desconforto quando se menciona a possibilidade de alguns estarem se apegando a essa literatura na construção de um conhecimento prático.

Aparentemente, os candomblecistas na capital do Amapá consideram já terem atingido um amadurecimento maior, mais segurança, e não necessitam mais, pelo menos em público, se apoiar na autoridade dos pesquisadores. Situação diferente de alguns anos passados, quando, durante uma exposição de indumentárias de orixás, um dos monitores, um sacerdote de Candomblé, usava uma das obras de Pierre Verger, para responder as perguntas e esclarecer as dúvidas dos visitantes.

Por outro lado, a um pai-de-santo em particular, a escrita como instrumento de transmissão e aquisição de conhecimento é secundária, diria mesmo, irrelevante, uma vez que a pouca escolaridade que possui não o habilita a leituras de grandes textos. Entretanto, se a infância vivida na zona rural, e segundo ele, precisando trabalhar para ajudar no sustento da família não lhe permitiu estudar, depois de adulto e morando em grandes cidades poderia, se assim o desejasse, ter suprido essa lacuna. Isso não aconteceu, e creio que a explicação se deve ao entendimento que possui da religião como algo prático e funcional. Assim, no terreiro deste sacerdote, a escrita é empregada basicamente para a redação de documentos (correspondências e projetos) e feita, a pedido dele, por algum membro da casa, amigo ou mesmo algum cliente mais assíduo.

Em um momento em que a comunidade do referido sacerdote estava reunida para um ensaio, um dos presentes sugeriu, que produzissem um material escrito com as letras das músicas e que seria adquirido pelos interessados, no intuito de facilitar a aprendizagem. A sugestão foi prontamente rejeitada pelo sacerdote, que entendeu que

151 SANTOS, José Félix dos e NOBREGA, Cida. (Organizadores). Maria Bibiana do Espírito Santo Mãe

Senhora: saudade e memória. Salvador: Corrupio, 2000.

deveriam continuar da maneira como vêm fazendo, isto é, um canta as rezas e os demais repetem até a memorização.

O pai-de-santo em questão ficou sem sacerdote durante bastante tempo, visto que os que o iniciaram nas várias modalidades religiosas que pratica, já faleceram. Creio que em razão disso o conhecimento adquirido por ele, em relação, sobretudo, ao Candomblé, partiu de inúmeras fontes. Uma das formas, e a meu ver, bastante astuciosa, empregada por este sacerdote para ampliar o próprio conhecimento, foram os encontros, os seminários e entrevistas realizadas com outros afro-religiosos, principalmente graduados e pessoas mais velhas nos cultos. Nessas ocasiões, a maioria provocada por ele, surgiam perguntas e indagações que iam de encontro às dúvidas que o mesmo possuía e não tinha com quem esclarecer.

No Candomblé, é imprescindível para qualquer religioso estar vinculado a uma casa e a um sacerdote ou sacerdotisa, mesmo para os próprios babalorixás, ialorixás, tatetos e mametos, que necessitam de outros para o pagamento das obrigações ritualísticas. E até mesmo para justificar certas práticas como pertencentes a determinadas nações ou linhagens, com vinculação a certas casas tradicionais, geralmente de Salvador, como já mencionamos em capítulo anterior.

Fig. 17 – Sacerdote, pai Paulo de Lemba, ensinando o preparo de comida de santo (fotografia Decleoma Lobato - 2007).

Contudo, são muito freqüentes as afirmações tanto na literatura quanto no meio dos terreiros que o conhecimento religioso é transmitido através da oralidade. De fato, essa via de transmissão tem peso muito grande no repasse de conhecimentos, todavia, atualmente, e na realidade estudada, ela incorpora o uso de mídias modernas como as gravações em áudio e vídeo. Alguns pais e mães-de-santo gravam as rezas e cantigas em fitas cassete ou em CDs e repassam aos seus filhos para que aprendam quando não estiverem juntos. E mesmo, é possível adquirir CDs de áudio produzidos comercialmente, geralmente por religiosos, com as músicas e rezas das diversas religiões afro-brasileiras que também são usados para a aprendizagem nos terreiros.

Algumas casas realizam periodicamente, geralmente uma vez por semana, reuniões internas para tratar dos assuntos da comunidade, e principalmente para ensinar e aprender juntos. Nos terreiros Angola essas reuniões são chamadas “jeberuçus”153 ou mesmo “ensaios” de Candomblé, e geralmente começam com uma preleção do sacerdote ou sacerdotisa, para depois começarem a roda de músicas e danças, ou em outras ocasiões,

interrompe-se o ensaio para que ele ou ela faça as orientações, reclamações, ou avisos que se fizerem necessários. O objetivo final desses encontros é, principalmente, tornar a comunidade do terreiro preparada para uma boa “apresentação” de candomblé durante as festas, mostrando para os presentes que ali tem conhecimento, que naquele terreiro todos sabem o que fazer e quando fazer (cantar, dançar, sentar, levantar, pedir benção, etc.)

As gravações em vídeos produzidas durante os eventos festivos e com entrevistas com graduados das várias religiões afro-brasileiras, são usadas pelas comunidades frequentemente para repassar, rever, resignificar ensinamentos, conceitos e práticas. Discute-se, geralmente, o que a comunidade considera certo ou errado, no evento registrado, o que foi feito e o que foi dito de relevante.