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A Comunidade Candomblecista do Amapá: história e particularidades.

4. A Comunidade Candomblecista de Macapá: dinâmicas de interação interna e externa.

4.1. Organização da comunidade candomblecista macapaense.

A comunidade formada por praticantes do Candomblé em Macapá é constituída por cerca de vinte terreiros distribuídos nos diferentes bairros da capital do Estado, se identificam como pertencentes às nações Angola, Ketu e Jeje, com grande predominância dos terreiros Ketu.

E embora bastante contestada e criticada por muitos pesquisadores, a concepção de superioridade nagô ainda está muito presente nas falas dos candomblecistas ketu, quando afirmam que um sacerdote dessa nação pode iniciar adeptos nessa e nas demais nações, como o Angola e o Jeje, e que o contrário não é possível. No entanto, a iniciação religiosa de vários membros da comunidade candomblecista macapaense derruba essa afirmação, a começar pelo sacerdote paraense (uso esse termo por ele residir em Belém e não pela naturalidade visto que outros sacerdotes que vivem em Macapá são oriundos do Estado do Pará) que foi iniciado, segundo ele no Ketu por um sacerdote de uma casa Jeje de Salvador. Procedimento que também teria ocorrido com o seu filho de santo, que fora iniciado por uma sacerdotisa também de Belém e que se identifica como Jeje.

Tive oportunidade de conhecer a referida sacerdotisa, em Macapá, quando esta estava preparando uma ekede para o terreiro de uma sua filha de santo. Esta filha de santo, por sua vez, foi iniciada por um outro sacerdote ketu de Macapá, mas que recebeu a iniciação e o decá de um tata de inkice.55

Tais exemplos, mostram um aspecto da comunidade candomblecista estudada, a mudança de sacerdote ou sacerdotisa, que permite formar o seguinte quadro:

Ilustração 2 - Quadro de filiação religiosa

Nome Nação da iniciação

Sacerdote Nação atual Sacerdote Nação

Salvino Angola João Pinheiro Angola Paulo de Lemba Angola Armando Angola Evandro Angola Pretende dar obrigação

com o pai Bira de Salvador Ketu

Dardeg Angola Kitala Mugongo Angola Kitala Angola

Marcos Ketu Jokolosi Ketu Walmir Ketu

Tombalaj Angola Armando Ketu Marcos Ketu

Odesimi Angola Salvino Ketu Stela Ketu

Nina Ketu Odesimi Jeje Jokolosi Jeje

Kátia Angola Marcos Angola Marcos Ketu

Shirley Ketu Marcos Jeje Sem sacerdote* Jeje

Cláudio Angola Jussara Ketu Jussara Ketu

Dos dez sacerdotes e sacerdotisas entrevistados, que já possuem terreiro aberto, seis trocaram de sacerdotes. Os motivos para a troca de pai-de-santo ou mãe-de-santo são vários, indo desde a incompatibilidade de temperamento entre estes e os filhos, até a ocorrência de erros que teriam contribuído para a que a vida dos iniciados “desandasse”. Neste caso pode-se dar como exemplo, a troca ou falta de um elemento para a iniciação teria gerado uma série de problemas na vida pessoal do iniciado, fato que o teriam levado a procurar um outro sacerdote para corrigir o erro, antes que a situação se tornasse irreversível.

Uma mãe-de-santo entrevistada contou que após a sua feitura não conseguia mais pegar “nenhuma moeda”, coisa que geralmente não acontece. Visto que sempre há alguém para jogar búzios, fazer banhos e outras coisas. Seus filhos adoeceram e o esposo perdeu o emprego. Tal situação só mudou depois que o erro foi corrigido56 através de um outro processo mais avançado, o grau de sacerdote. Nas afirmações da entrevistada, “tem que

* Pretendia dar obrigação com a mãe Jokolosi, não deu certo. Enquanto estava em negociação com a

sacerdotisa Jeje, o sacerdote em questão identificava seu terreiro como desta nação. Agora está tentando se tornar filho de santo de pai Walmir Fernandes.

56 Segundo a entrevistada, o equívoco fora dar um animal errado para o orixá, uma cabra em vez de um

fazer as coisas direito. É tudo muito sério, muito sério mesmo. Não pode ter erros. Todo dia tem que jogar (búzios) para ver se está faltando alguma coisa porque são cabeças, são pessoas que você vai mexer. Tem que ter muita firmeza no que vai fazer”57.

Comparando os rituais de uma obrigação de 14 anos, de um sacerdote da nação Ketu e uma preparação de ekede do Jeje Savalu é possível encontrar muitas semelhanças. A feitura de uma ekede tem os seguintes fundamentos associados a procedimentos preparatórios para a festa do orixá patrono do terreiro, Funderê (termo jeje equivalente ao ilê yorubá), no caso:

• Ebó de Egum; • Ebó de Exu; • Ebó de Danko; • Equilíbrio de Odu; • Corte para Exu; • Obi d’água;

• Matança para o carrego58 da sacerdotisa; • Confirmação da ekede;

• Matança para o orixá patrono da casa; • Festa para o orixá e saída da ekede.

Procedimentos de uma obrigação de quatorze anos do Ketu: • Ebó Egungun;

• Ebó Esú; • Sac. Esú (todos); • Odú;

• Ebó Abiku; • Bori;

• Orixá patrono e orixá da porta; • Festa do orixá patrono;

• Intoto, Cumieira e Tempo; • Aboro;

57 Mãe Nina, sacerdotisa do Funderê Ia Ejaredê – Macapá/AP.

58 Também chamado enredo de santo, são os orixás que acompanham o dono do ori. No Ketu são chamados de

• Orixá juntó; • Festa Orixá junto; • Iyaba;

• Terceiro orixá;

• Festa do terceiro orixá; • Tabuleiro.

Os ebós de Egum ou de Egungum são trabalhos realizados com o objetivo de afastar todo e qualquer espírito, que possa estar causando algum mal à pessoa em processo de iniciação ou dando obrigação no Candomblé. Os eguns são espíritos de pessoas falecidas, entidades vinculadas a Iku, a morte, e têm sua aproximação inaceitável aos orixás, com exceção de Iansã, a única que consegue ter controle sobre eles. Assim, é de se pensar que o Candomblé é incompatível com os cultos aos espíritos (caboclos) e aos encantados, mas veremos, no decorrer deste trabalho, que tal não ocorre, e que crenças e práticas, embora diferentes, convivem nos mesmos espaços .

O ebó de danko constitui-se de rezas destinadas a fortalecer a saúde do iniciando. Os cortes, matanças ou faris são a mesma coisa, fundamentos que envolvem os sacrifícios de animais. O equilíbrio de Odu tem a função de estabelecer uma equivalência e igualdade entre os lados positivo e negativo do “destino” da pessoa. O obi d’água serve para fortalecer o anjo da guarda do sujeito e prepara-lo para receber a entidade (vodum, orixá, inkice)59.

Dois outros candomblecistas também foram submetidos ao obi d’água na ocasião. Um ogã da casa e um outro sacerdote que estava “mudando” de águas e iria dar suas obrigações com a sacerdotisa. Esses dois ficaram recolhidos apenas três dias. E durante todo o ritual realizado na camarinha60 a sacerdotisa ficava instando-os a se concentrarem e pedirem equilíbrio e serenidade aos orixás.

O funderê onde se realizava a preparação da ekede é constituído de um barracão de alvenaria com cerca de 7m x 12m, localizado atrás da residência da sacerdotisa.

59 Disso tudo só me permitiram assistir as festas públicas e presenciar o obi d’água, sem entrar no camarim

porque é prerrogativa exclusiva de pessoas graduadas no santo. A sacerdotisa, proprietária do terreiro me autorizou a fazer isso com a condição que eu fosse de roupa branca. Disse que eu deveria ficar sentada, manter os olhos fechados, concentrada, e aproveitar para fazer os meus pedidos, se assim o desejasse. No momento do ritual a outra mãe-de-santo, responsável pelos trabalhos, permitiu, inclusive orientou que eu fotografasse os procedimentos fora da camarinha e deixou que gravasse as rezas, posicionada ao lado da porta da camarinha que ficou entreaberta o tempo todo. Essa senhora disse que eu poderia fazer o registro porque sabia que seria utilizado apenas no meu trabalho e que não mostraria as outras pessoas.

Chega-se a ele por um estreito corredor entre a casa e o muro. Logo na entrada, lado direito, encontra-se o assentamento (pepelê) de Ogum e do lado esquerdo, os pepelês de Agüé (Ossaim) e Tempo. Ao lado do segundo assentamento e de frente para a entrada da rua está a casa de Legba (Exu). Em frente ao barracão e ao longo do muro há uma plantação de alecrim-de-angola, folha-da-costa, abre-caminho, manjericão, espada-de-são-jorge, dinheiro-em-penca, comigo-ninguém-pode, mil-homens, cidreira, mucura-caá.

Internamente o barracão é divido pelo roncó ou camarinha e o rundeme61 no lado esquerdo. Do outro lado ficam alguns bancos de madeira e cadeiras para a assistência. Aos fundos está localizado o sabagi62 e em frente a ele estão posicionados os atabaques e a cadeira do orixá. Ainda aos fundos, no lado do sabagi ficam os vultos da Umbanda, pequenas imagens de caboclos e guias, que costumam ser retirados ou cobertos durante a realização das festas de Candomblé (queira ver ilustração 3).

61 Quarto onde ficam guardados os ibás.

62 Local onde é feita a raspagem dos iaôs. Neste terreiro especificamente é também a sala de consultas da