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O Candomblé, a mestiçagem e hibridação cultural: uma brevíssima historiografia.

A Comunidade Candomblecista do Amapá: história e particularidades.

2. O Candomblé, a mestiçagem e hibridação cultural: uma brevíssima historiografia.

Roger Bastide, tomado como um dos cientistas sociais mais importantes dos estudos afro-religiosos no Brasil inicia a obra “O Candomblé da Bahia: rito nagô” salientando que não objetiva detectar as origens africanas ou sincréticas dos elementos constituintes das religiões que estuda.

Todavia, em diversas partes do trabalho o referido autor mostra que o Candomblé praticado no Brasil é poroso e absorvente de influências diversas, entre elas, as da necessidade de adaptação e de ajustes à realidade e ao meio local, como, por exemplo, o calendário de festas que cada terreiro elabora de acordo com as suas especificidades, e que não acompanha os ciclos africanos do calendário agrícola por estarem do outro lado do Equador, mesmo que, como no caso da Bahia, a realização das grandes festas procure seguir o princípio da estação das chuvas, tal qual na África.

A substituição de elementos ou ênfase em outros foi e é outro aspecto importante no processo de formação do Candomblé exemplificado pela troca da concepção de um ifá individual (eledá) para um Exu individual, ocasionando o abandono das práticas oraculares do opelê em favor dos jogos de búzios, e como conseqüência a absorção pelo babalorixá das funções anteriormente exclusivas do babalaô.49

Um outro caso que Bastide cita, a substituição do culto de Onilé existente pelo culto de Ogum introduzido por invasores em determinada região da África, me parece mais um caso de acréscimo e não de substituição, uma vez que os adoradores de Ogum antes de lhe prestar honrarias, homenageavam Onilé como o mais antigo na localidade.

Modificações e alterações também são comuns e podem ser processadas, tanto nos ritos, quanto nos mitos. Bastide mostra isso citando o caso de um terreiro baiano onde as mulheres de Oxum saíram-se vencedoras em contenda com os devotos de Xangô, modificando o mito da submissão da deusa ao esposo.

Portanto, modificações e alterações nos mitos processadas na Bahia dão continuidade a um processo iniciado ainda na África quando “a história dos homens

introduz-se na metafísica e com elas, toda a contingência das lutas políticas, das batalhas dos clãs, ou das ambições dos sacerdotes”50. Processo que provavelmente fundiu em uma só

49 Sacerdote de Ifá, o orixá da adivinhação.

entidades distintas com o mesmo nome em decorrência de alianças ou imposição política, e que Bastide toma para exemplo os xangôs: Xangô-carneiro que cospe fogo e o Xangô- cavaleiro, distribuidor de justiça, pertencentes a etnias diferentes.

Logo, creio que se pode concordar com Mintz e Price quando sugerem que a

orientação instrumental dos ritos incentivava a experimentação com novas técnicas e práticas de povos vizinhos, assim como a adoção delas; suspeitamos que a maioria das religiões da África ocidental e central era relativamente permeável ás influências estrangeiras e tendia a ser ‘agregativa’, e não’excludente’, em sua orientação para as outras culturas (MINTZ e PRICE: 2003:69)

Outro exemplo de fusão se deu com o polêmico Exu (iorubá), de caráter sexual menos pronunciado que o de Legbá (fom) uniu-se a este ainda na África, e muito mais no Brasil onde as condições propiciadas pelo regime escravista possibilitavam a reunião em um mesmo espaço físico de elementos pertencentes a grupos étnicos distintos.

A despeito de Bastide considerar os grupos religiosos de origem banto mais permeáveis a fatores externos, seu trabalho não consegue esconder que todo o conjunto das nações de Candomblé adaptaram-se, misturaram-se, modificaram-se, de tal forma que a hibridação foi o processo que acompanhou toda a construção do que se conhece hoje como essa religião.

Portanto, pensar em pureza em relação a qualquer nação, concepção que se fortaleceu a respeito das nações de origem nagô, é esquecer, passar por cima de elementos que indicam perfeitamente a capacidade de adaptação e sincretismo como característica inerente ao universo das religiões afro-brasileiras (e da cultura de maneira geral).

Por outro lado, Dantas mostra que a concepção de pureza da tradição nagô adotada por Bastide foi forjada ao longo de anos e a partir do trabalho de vários intelectuais entre os quais Nina Rodrigues, médico-legista cujo interesse maior no estudo sobre as práticas culturais dos negros era o que se considerava, na época, os aspectos patológicos da mestiçagem51.

A partir de uma visão evolucionista de raça, Nina Rodrigues escalonava a cultura religiosa situando os cultos afro (negros), como inferiores ao catolicismo (branco), a verdadeira religião no entendimento dele. E ainda, estabelecia diferenças dentre os cultos a partir da maior proximidade ou não com as raízes africanas, onde a mistura representava o

51 DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco – Usos e abusos da África no Brasil. Rio de

desconhecimento e a infidelidade a essas raízes. A mestiçagem era produtora de atraso mental e como conseqüência, do atraso cultural, portanto, sinal de inferioridade do crioulo e mestiço em relação aos brancos e mesmo aos africanos puros.

Seguindo os passos de Nina Rodrigues, Artur Ramos propôs-se a rever o que considerava equívocos na obra do antecessor, a interpretação das diferenças pela raça, substituindo-a pela noção de cultura. Todavia, Artur Ramos acaba por corroborar a interpretação que associa raça a desenvolvimento intelectual e cultural, da mesma forma que reiterou a visão das práticas religiosas afro encontradas na Bahia como sinônimo de pureza e fidelidade às tradições africanas, modelo para a comparação com as práticas religiosas de outras regiões do Brasil.

Gilberto Freire, por sua vez, se utilizou da mestiçagem como resultante da fusão, combinação e mistura de diversas culturas para a diferenciação e distinção da região Nordeste, em especial a Bahia, onde a expressividade da presença africana foi muito acentuada. Entretanto, da mesma forma como Nina Rodrigues e Artur Ramos estabeleceram diferenciação entre as diversas tradições afro, Freire vai distinguir e posicionar em níveis diferentes as culturas afro da Bahia e do restante do Nordeste, sobretudo as do sertão, onde a influência ameríndia foi mais pronunciada, e ainda a de Pernambuco, onde a composição da população negra era predominantemente de origem banto.

A idéia de pureza da tradição africana, especificamente a nagô, na Bahia vai ser incorporada pelo segmento afro-brasileiro local, e acaba se propagando juntamente com o Candomblé para o restante do país.

Pares, contrariando a idéia prevalecente nos estudos afro-brasileiros, sustenta que os cultos às múltiplas divindades africanas não foi criação exclusiva das condições produzidas pela escravidão negra, mas o resultado de um sistema de crenças e práticas rituais já existentes na África, onde “a matriz jeje ou as tradições do culto aos voduns

tiveram um papel determinante no processo constitutivo desse modelo de Candomblé”. 52 Para a comprovação da hipótese, o pesquisador trabalhou a análise lingüística dos termos utilizados em jornais e documentos oficiais dos séculos XVIII e XIX, onde a presença das tradições jeje é desenhada com grande nitidez.

Portanto, aparentemente, paralelo ao processo de mestiçagem étnico-racial também ocorria um processo de mistura religiosa, onde práticas nagô e banto agregam-se às

52 PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas,

tradições jeje, contrariamente ao que se supunha até então, de o nagô ter sido a matriz principal na construção do Candomblé.

Entretanto, o referido autor salienta que, provavelmente, do mesmo modo que dentre a camada senhorial existiam atitudes divergentes em relação á repressão ou tolerância ao Candomblé, também dentro das congregações religiosas, se diferenciavam as estratégias de resistência e isolamento ou de abertura e inclusão social, talvez até como resposta às políticas provenientes do meio externo às comunidades. O interesse ou não de manter ritos, divindades e terminologia próprios de determinada origem, corresponderia a necessidades de identificação e diferenciação, que não eram estanques, mas que oscilavam em grande medida em razão de condições exteriores, como ocorre até hoje.

A adoção de novas crenças não ocorre meramente por questões e interesses objetivos, mas respondem a necessidades que muitas vezes provém do que há de mais íntimo e intangível no homem, as necessidades espirituais com suas interfaces psicológicas de aceitação e integração. Nesta perspectiva, o Candomblé responde bem a essa demanda em função do entendimento da pessoa enquanto composta de diversos elementos pertencente às esferas do celestial Orum e do terreno Ayê, em processo de construção e busca pela unidade e integração desses elementos.

Berkembrock explica que a concepção de pessoa que o Candomblé possui consiste na idéia de ser constituído por um corpo físico, ara, modelado na lama, no qual Olorum soprou o emi, a respiração, o hálito divino. Ligado ao ara e ao emi cada ser humano possui o ori, a inteligência, a consciência. Esses elementos que pertencem mais diretamente ao Ayê e ao plano da vida material são complementados e regidos pelas forças do Orum presentes e representadas pelos orixás, que a cada ser é dado um individual e outros coadjuvantes; a cada orixá, por sua vez, estão ligados um Erê, que faz a intermediação entre o orixá e o filho humano; e um Exu, que é responsável pela comunicação do plano humano com o plano divino, levando até os orixás as súplicas e agradecimentos dos fiéis.53

Daí que, no caso específico do Candomblé praticado em Macapá, podemos perceber na fala dos candomblecistas uma tensão entre o atendimento às necessidades da vida material e da vida espiritual como motivação para a adesão a essa religião e, ao mesmo tempo, justificando as mudanças, alterações e agregações que estão se processando, como veremos detalhadamente no andamento deste trabalho.

53 BERKEMBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no