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As Religiões Afro-Brasileiras em Macapá: memória, imigração e hibridismos.

6. Candomblecistas: história de vida e trajetória religiosa.

6.1. Pai Salvino Omi Zanguê.

Salvino de Jesus da Silva, cujo nome de batismo é Sarvino do Espírito Santo, tata de inkice OmiZanguê, nasceu em 1950 ou 1952, em modesta casa de ribeirinhos localizada no município de Igarapé-Miri, mais exatamente no rio São Lourenço, Estado do Pará.

Da casa em que nasceu pai Salvino diz lembrar que era um enorme barracão com cobertura e paredes de palha de buçu, dividido por um quarto de aproximadamente trinta metros de comprimento, onde dormiam, praticamente, todos os moradores da casa, cerca de dez pessoas, em redes armadas ao lado umas das outras. Na memória deste pai de santo a cozinha da casa é reconstituída como um lugar onde se destacava um grande fogão a lenha, feito todo de barro, o qual ocupava quase toda a extensão deste cômodo da casa. Fogão este que era mantido aceso diariamente, prática muito comum naquela época, visto que os fogões eram utilizados, tanto para o preparo das refeições cozidas e moqueadas, quanto para servirem outras utilidades práticas dos caboclos da região, que costumavam pendurar sobre o fogo suas espingardas de caça, visando mantê-las aquecidas.

E, era na cozinha, bebendo uma mistura fervida de borra de café com garapa, que o pequeno Salvino iniciava os dias na casa do rio São Lourenço, ao lado dos avós maternos, o senhor Afrodísio Santos e a senhora Justina do Espírito Santo Pena. Por ser fruto de um relacionamento extraconjugal de sua mãe, a senhora Raimunda do Espírito Santo Brito - em um momento em que esteve separada do marido - o menino Salvino sofreu discriminação por parte da família, sobretudo do avô, que sempre o tratou com muita rispidez.

Da avó que também tinha o dom da pajelança, embora não desenvolvido, pai Salvino recorda o carinho com que ela o tratava. Dona Justina que era extremamente católica não quis desenvolver a mediunidade. Mas tinha os seus caruanas e não recusava dar passe, rezar ou fazer algum remédio para quem precisasse de seu auxílio.

Em Igarapé-Miri, o menino Salvino trabalhava no corte de cana, ajudando na pesca e venda de peixe juntamente com o avô. Lembra o esforço que era para estender redes de pesca de cem a duzentos metros de comprimento atravessando os rios, e que eram recolhidas com grandes quantidades de peixe, maparás, principalmente, e que os dois vendiam salgado ou moqueado na cidade.

Salvino relembra que com aproximadamente dez anos de idade foi obrigado a tomar uma atitude diante das constantes agressões que seu padrasto fazia contra a sua mãe. Então, no exato momento em que viu a mãe desfalecer, devido ter sido espancada covardemente pelo marido, Salvino diz ter se armado com a própria espingarda do padrasto para lhe dar um tiro. Segundo este pai de santo, ao cometer este ato impensado, teve muita sorte, pois a munição do tiro proferido era composta por pólvora seca, o que não causou grandes danos, dando, ainda, tempo para o padrasto fugir, atirando-se no rio, e abandonando definitivamente a esposa.

Depois desse episódio a mãe de Salvino foi obrigada a trabalhar, deslocando- se, inclusive, para Belém do Pará a procura de emprego. Na capital paraense foi doméstica e lavadeira, funções nas quais consumiu a saúde e os últimos anos de vida. Vindo a falecer vitimada por tuberculose, nos braços do filho Salvino, de quem teria recibo maior amparo. Lembra que foi antes de mudar para Belém, em companhia da mãe, que começaram a surgir as primeiras manifestações de mediunidade. Estas iniciaram com visões, pressentimentos e a sensação de ausência do corpo físico, coisas que o então menino, evidentemente, não compreendia.

O referido sacerdote diz lembrar que foi entre os doze e os treze anos de idade, numa manhã, quando o avô ordenou que ele fosse apanhar açaí, não entendia porquê, naquele dia não queria ir, pois sentia um medo desconhecido, que se aproximava do pânico. Mas, foi obrigado a obedecer ao avô, visto, que segundo suas palavras: “naquela época eu

era o primeiro que apanhava e o último que falava, não tinha direito a nada. Todo tempo eu tava errado, e ainda tava errado quando tava prestando atenção (risos)”.140

Na mata, ao começar a trabalhar, diz recordar que, depois de haver apanhado dois cachos de açaí, subiu em uma terceira açaizeira∗, do alto olhou para o pé da árvore de

açaí e teve a visão de uma mulher muito branca, com os cabelos longos que cobriam todo o corpo, parecia que ela flutuava. O susto foi tão grande que ele caiu da árvore. Mas sentiu que alguém o aparou e o levou para outro local, onde colocaram água em sua cabeça. A

água estava tão fria que dava a impressão de que o corpo todo se encolhia. Salvino conta que ouvia várias vozes, mas não conseguia identificar e nem tinha qualquer domínio de si.

Quando recobrou a consciência, encontrou os cachos de açaí que apanhara debulhados e o paneiro∗ cheio de açaí, já nas suas costas, a caminho de casa. Isso já por

volta das dezoito horas. A essas alturas, a família já estava bastante preocupada com a demora. Uma moça, que estava de resguardo pós-parto, assim que o avistou, foi ajudá-lo a retirar o paneiro das costas, quando ela tocou no paneiro Salvino diz ter incorporado. Lembra de ter experimentado uma sensação de grande escuridão, onde podia ouvir vozes de pessoas em volta, e de uma grande força que o assaltou, não permitindo que alguém se aproximasse. Passou cerca de oito dias nesse estado, o que obrigou a família a procurar um curador que pudesse ajudá-lo. Foi então que o levaram, amarrado e no fundo de uma canoa, ao encontro do curador João Bailão, um famoso pajé da região, morador da cidade de Igarapé-Miri.

O ritual usado pelo curador a fim de minorar o sofrimento do rapaz foi simples: ordenou que o levassem para dentro de sua casa, onde o colocaram sentado em um tronco de árvore, que havia na sala na qual o pajé atendia a clientela. Colocaram uma imagem de Nossa Senhora da Conceição na mão esquerda e um crucifixo bastante grande no pescoço. Salvino recorda que neste momento tinha a impressão de que a imagem da santa pesava em torno de cinqüenta á cem quilos deixando-lhe a mão extremamente cansada. A imagem de Cristo no pescoço, também, parecia tão pesada que a sua cabeça caia em seu peito. Ele conta que quando o sacerdote começou a rezar perdeu os sentidos, não lembra de mais nada. Sabe apenas que foi recolhido e iniciado na Pajelança. E que a iniciação foi a base de banhos de ervas, defumação, velas acesas e muita oração.

Salvino afirma que o conhecimento da Cura foi adquirido através dos próprios guias, sobretudo do “seu Tucunaré”, o seu mestre curador, que lhe passavam as doutrinas e os procedimentos a serem seguidos em todas as ocasiões. Porém, antes de receber a Pena e o Maracá que o autorizariam a abrir os trabalhos, indicando que já estava preparado para a missão, Salvino conta que foi submetido a dois testes, que foram impostos por seu mestre, que foi: curar uma senhora com a saúde bastante debilitada por um feitiço e promover a reconciliação de um casal que estava separado.

O referido sacerdote conta que durante o período em que esteve na companhia do senhor João Bailão, se preparando na Pajelança, teve momentos de dúvida, chegando a fugir para Belém. Só retornando para continuar o tratamento porque não conseguiu mais suportar a pressão das entidades espirituais.

Algum tempo depois de concluído o tratamento, Salvino foi advertido pelo curador de que sua formação espiritual não estava completa, e que era necessário procurar alguém com mais conhecimentos que o auxiliasse a progredir. Sendo dispensado pelo mestre, Salvino retornou a Belém, onde entrou em contato com uma mãe-de-santo conhecida como Mundica Duzentos. Esta diagnosticou que ele precisava se iniciar no Tambor de Mina, e que ela mesmo poderia fazer a sua iniciação. Assim, ele passou a conhecer melhor as suas entidades espirituais, inclusive as pedras dos caboclos e dos orixás. A iniciação na Mina durou sete dias, quando ele foi preparado com um orixá que, hoje o conhece como Oxum. Mas que no Tambor de Mina recebe, segundo ele, a denominação de Princesa Naveoarim ou ainda, de Sinhá Abê.

Entretanto, de dona Mundica Duzentos Salvino ouviu a mesma advertência que ouvira de seu primeiro sacerdote, de que a formação espiritual ainda não se completara e que seria necessário o concurso de outros conhecimentos que a mesma não possuía, e que, inclusive, em Belém, na época poucos tinham.

Paralelo à introdução e o desenvolvimento dentro da religião, Salvino lutava para sobreviver e vencer na capital do Estado, onde ainda adolescente trabalhava fazendo venda de açaí nas embarcações e ribanceiras dos rios próximos. Pelas ruas da cidade o menino vendia frutas, verduras, doces e picolés. Durante algum tempo ele conseguiu se manter com a venda de tapioca que ele mesmo fazia. Depois foi contratado, como operário, em uma fábrica de refrigerantes “Laranjada Garoto”, onde recebia metade do salário de um adulto.

Considerando-se um rapaz empreendedor, Salvino narra que após sair do emprego na fábrica de refrigerantes, montou seu primeiro negócio, uma boate chamada “Sherloque Drink’s”, localizada na Rua Roberto Camelier, próximo à passagem conhecida como “Beco da Vivi”.

Segundo este sacerdote esse empreendimento do ramo das diversões noturnas funcionou em um prédio de dois andares, estilo bangalô, alugado. Até que o empresário resolveu desistir daquele negócio, investindo no ramo dos transportes, quando colocou dois táxis na Praça de Belém. Investimento que também não deu certo, segundo ele, por causa da rivalidade entre duas das suas principais entidades, a Cabocla Mariana e a Cabocla Maria Mineira, proprietárias dos referidos táxis, que acabaram quebrando uma o carro da outra.

Nesta época pai Salvino já trabalhava na Umbanda e na Mina e possuía casa aberta. Em 1978, ele recebeu em sua casa para tratamento de saúde, uma jovem muito

bonita, Francilene Antunes, e os dois iniciaram um romance que resultou em casamento e em três filhos.

Da primeira gravidez nasceu um menino com problemas cardíacos, e motivou a ida dos pais para o Rio de Janeiro na tentativa de encontrar solução para o caso, o que não foi possível e o pequeno Oxedson Josué faleceu.

Desolada com a morte do filho, Francilene (Lene, como ficou conhecida), decidiu permanecer no Rio de Janeiro. Enquanto Salvino continuava residindo em Belém, indo visitar a esposa regularmente. O casal teve mais duas filhas Shirlene e Daniele, e Salvino adotou um menino, filho de uma sobrinha, Piter Charlier, hoje conhecido como Alex, principal ogã e futuro sucessor do pai Salvino na comunidade iniciada por ele.

Pai Salvino afirma que o casamento com a Lene não deu certo. Os dois se separaram, mas mantém uma amizade muito forte e grande convivência, inclusive ela é uma das ebômis mais antigas do terreiro chefiado por ele.

Em uma das viagens para o Rio de Janeiro, Salvino conheceu pai João Pinheiro Ominidê, tata de inkice, que descobriu através dos búzios que o seu orixá era Oxum Apara. E que esta estava pedindo a sua feitura, e quem deveria prepará-lo seria o tateto Ominidê, pois a preparação no Candomblé seria a obrigação final de sua formação espiritual.

Iniciado no Candomblé, Pai Salvino veio para o Amapá no início da década de 1980, se estabeleceu na cidade, onde se tornou grande liderança. E desde então vem trabalhando para o fortalecimento das religiões afro-brasileiras, sobretudo o Candomblé, que segundo a sua opinião ainda enfrenta grande preconceito até mesmo por parte dos demais afro-religiosos.