• Nenhum resultado encontrado

Processo 3: Processo n.º /15.0PBBJA, no âmbito do qual foi apresentada queixa porquanto

1. Consagração legal

O CRIME DE ABUSO DE CARTÃO DE GARANTIA E CRÉDITO E O CRIME DE BURLA INFORMÁTICA

5.Crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

O crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito foi introduzido no Código Penal Português na revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março - como um exemplo claro do movimento de neocriminalização presente no Código Penal -, dispondo, desde então, o artigo 225.º, n.º 1, que: “Quem, abusando da possibilidade, conferida pela posse de cartão de garantia ou de crédito, de levar o emitente a fazer um pagamento, causar prejuízo a este ou a terceiro é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Este tipo legal de crime tem por fonte próxima o § 266.ºb do Código Penal Alemão (Missbrauch von Schech- und Kreditkarten), introduzido no ano de 1986, pela Segunda Lei de Combate ao Crime Económico, mas afasta-se daquele no que respeita ao universo de potenciais agentes activos.

Com efeito, o tipo legal Alemão sanciona apenas condutas de abuso praticadas por titulares do cartão (crime específico/próprio), enquanto do tipo legal Português além de abranger a eventual responsabilidade daqueles alarga a responsabilização criminal a todos os terceiros que, por qualquer título, usem um cartão de garantia ou de crédito alheio e sem autorização do seu titular (crime comum)1.

A introdução do crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito no Código Penal em 1995 não foi pacífica, suscitando alguma controvérsia no âmbito da Comissão Revisora (assim como também sucedeu no Direito Alemão), quer quanto à dignidade penal da conduta, quer quanto ao seu enquadramento legal2.

A incriminação surgiu da proposta do Conselheiro Sousa e Brito com o objectivo de sanar uma lacuna de punibilidade do crime geral de burla (com o qual encontra o seu paralelismo), pois, não existia até então um claro enquadramento criminal de certos casos, nomeadamente os que se prendem com a utilização não autorizada de cartões de crédito3.

Como refere Damião da Cunha, «[d]e facto, pode ser difícil a afirmação do crime de burla (tendo por vítima a entidade emitente do cartão), sobretudo porque poderá ser difícil, se não impossível, a verificação do erro ou da astúcia, como, por outro lado, a actuação abusiva se dirigirá contra um terceiro (um comerciante associado) e não directamente face à entidade emitente, o que pode colocar dificuldades na determinação da conexão entre o acto de “burla” e o prejuízo patrimonial (cf. artigo 217.º)»4.

Todavia, como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque, o legislador nacional ao conformar o crime de abuso de cartão de garantia e de crédito como um crime comum, cria problemas de concurso aparente de normas, porquanto, as condutas de utilização por terceiro do cartão de

1 Neste sentido, Damião da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Jorge de

Figueiredo Dias [Dir.], Coimbra Editora, 1999, p. 373, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz..., Universidade Católica Editora, 2008, p. 620.

2 Veja-se as Actas n.ºs 39, 47, 48 e 52 da Comissão de Revisão, in Ministério da Justiça, Código Penal, Actas e

Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, 1993.

3 Neste sentido, Sousa e Brito, Acta n.º 39 da Comissão de Revisão, op. cit., 1993, p. 450. 4 Op. cit., 1999, p. 374.

O CRIME DE ABUSO DE CARTÃO DE GARANTIA E CRÉDITO E O CRIME DE BURLA INFORMÁTICA

5.Crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

garantia ou de crédito não autorizadas já se encontram tuteladas pela incriminação geral da burla (quando o enganado é uma pessoa) ou pela burla informática (quando se verifica manipulação informática)5.

Assim como refere Almeida Costa, «quando ocorra o emprego de processos informáticos, pode verificar-se uma de duas hipóteses. A primeira consistirá em o agente induzir outra pessoa num erro que a leva, através de uma operação informática, a causar prejuízo patrimoniais próprios ou alheios, detecta-se aqui o duplo nexo de imputação objectiva característico do modelo tradicional de burla e, portanto, o preenchimento do tipo legal do artigo 217.º, desde que satisfeitos os demais requisitos da figura. A segunda traduzir-se-á no facto de o sujeito activo produzir o dano patrimonial mediante a interferência directa num sistema informático, deparando-se com um iter criminis que não apresenta, de permeio, a intervenção de uma pessoa em estado de erro e, por conseguinte, não comporta o referido “duplo nexo de imputação objectiva”. Só esta última alternativa integra o delito de burla informática do n.º 1 do art.º 221.º»6.

Também A. Leones Dantas entende que crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito, tal como foi introduzido no Código Penal Português, cria sérias dificuldades de interpretação quando alarga o âmbito de aplicação daquele crime a terceiros e não só apenas ao seu titular, ao contrário do que sucede no correspondente crime previsto no Código Penal Alemão.

Segundo este Autor, a consagração do tipo legal de crime em causa, enquanto crime comum, «poderá ter desvirtuado a consistência estrutural daquele tipo de crime e talvez de forma desnecessária. Com efeito, nas situações de utilização do cartão por quem dele não seja titular, recaia afinal o prejuízo sobre o emitente ou sobre terceiro, sempre estaríamos num normal crime de burla, em que a utilização do cartão mais não foi do que o instrumento da indução em erro do terceiro»7.

Também assim, José António Barreiros defende a posição que, tal como no Direito Alemão, estamos perante um crime próprio e não face a um crime que possa ser cometido por qualquer pessoa no qual o agente do crime apenas pode ser o legitimo titular e possuidor de um cartão de crédito ou de garantia, estando, desta forma, excluídas do tipo legal as pessoas que tenham obtido a posse de tais cartões por forma ilegítima8.

Mas não parece ser o caso, pois, a própria Comissão Revisora expressamente considerou o crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito como um crime comum, justificando esta extensão a qualquer pessoa face ao bem jurídico protegido (património da entidade emissora

5 Op. cit., 2008, p. 620, baseando-se em Trechsel e Bk-Fiolka.

6 In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Jorge de Figueiredo Dias [Dir.], Coimbra

Editora, 1999, p. 330. Ou seja, no crime de burla informática o prejuízo patrimonial é consequência adequada da conduta do agente sem mediação do ofendido ou da pessoa enganada, o que se afasta da estrutura tradicional do crime de burla (simples).

7 A. Leones Dantas, A Revisão do Código Penal e os Crimes Patrimoniais, in “Jornadas de Direito Criminal, Revisão do

Código Penal”, Centro de Estudos Judiciários, 1998, pp. 517 e 518.

8 José António Barreiro, Crimes Contra o Património, Universidade Lusíada Editora, 1996, p. 214.

O CRIME DE ABUSO DE CARTÃO DE GARANTIA E CRÉDITO E O CRIME DE BURLA INFORMÁTICA

5.Crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

do cartão) e a forma como se consubstancia a infracção (abuso da garantia da entidade emissora)9.

Todavia, em nossa opinião, para obviar às dificuldades interpretativas suscitadas quanto ao agente do crime, o legislador poderia ter sido mais claro neste sentido se a norma em causa previsse a “detenção de cartão” em vez de “posse de cartão”.

Portanto, tendo em conta os princípios a seguir na interpretação da lei, previstos no art.º 9.º do Código Civil, e também tendo em conta o pensamento legislativo que levou à criação do tipo legal de crime em análise, uma vez ocorrendo correspondência deste com a letra da lei, independentemente do resultado, inclusive pela aplicação das regras do concurso de crime, não pode atribuir-se a este crime outra natureza senão a de crime comum.