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O Desejo (Begierde) é o que movimenta o desenvolvimento da consciência de si em seu percurso espiritual. Hegel identifica o movimento do desejo como responsável força motriz81 pelo percurso da consciência de si, que, quando ainda somente consciência, se movimenta saindo de si, indo ao encontro de outro, superando a oposição deste, e, voltando a si, restabelece a identidade consigo mesma.

A consciência de si é um saber de si mesma, enquanto que a consciência é saber de um Outro. A consciência possuía como objeto o mundo externo e sensível, por outro lado a consciência de si tem a si mesma como objeto. Ter a consciência a si mesma como objeto significa efetivar-se como sujeito e como objeto concomitantemente, onde o Eu se põe para fora, no intuito de estudar a si mesmo. O próprio Eu torna-se conteúdo da relação entre sujeito e objeto, conforme Hegel. “O eu é o conteúdo da relação e o próprio relacionar-se. Ao mesmo tempo, é o eu que se opõe a um outro e o ultrapassa; para ele, esse outro é somente ele próprio”82. A consciência põe-se para fora de si, ou seja, cinde o próprio Eu em duas categorias, sujeito e objeto, embora ambos conectados por serem o próprio ser.

No entanto, essa saída de si revela como plano ulterior o projeto da consciência de voltar a si, à sua essência, isto é, retorna do mundo sensível donde estava envolvido para analisar a si própria. A consciência, perdida em meio ao mundo externo, deseja voltar a si, e esta reflexão, o ato de retorno a si, constitui uma das essências da consciência de si. “A reflexão do eu a partir do mundo sensível, do ser-Outro, é a essência da consciência de si, que, portanto, só é por meio desse retorno ou desse movimento”.83

A relação entre sujeito e objeto muda drasticamente. A consciência abandona a observação passiva do objeto, concebendo-o como mero ser-em-si, para passar a negá-lo, superar o ser-Outro. Nesse sentido, o que preconiza é a retomada de uma unidade da consciência consigo mesma, com o seu Si, perdido na exterioridade (Äusserlichkeit). A relação entre sujeito e objeto é mantida, porém, diferentemente do mundo passivo da consciência, a interação entre ambos torna-se conflituosa, porque a consciência reclama para

81 LIMA, Cirne. A dialética do senhor e do escravo e a idéia de revolução. In. Ética e Trabalho. Org.

BOMBASSARO, Luiz Carlos. Caxias do Sul: De Zorzi. p. 17.

82 “Ich is der Inhalt der Beziehung, und das Beziehen selbst; es ist es selbst gegen ein anderes, und greift

zugleich über dies andre über, das für es ebenso nur es selbst ist. FE, A verdade da certeza de si mesmo, HW 3, p. 137-8.

si a verdade de si e do próprio mundo.

Desta forma, o objeto aparece à consciência como um fenômeno (Erscheinung), um dado exterior (äusserlich) sem o conteúdo concreto da verdade. A verdade agora integra o sujeito e não o objeto, é a consciência que, conhecendo a si, conhecerá a verdade, cujo valor não estará mais no mundo sensível, mas nela mesma.

É o que exprime dizendo que, diante do eu, o mundo sensível, o Universo, não é mais que Fenômeno, manifestação (Erscheinung). A verdade do mundo já não está nele, mas em mim; a verdade é o Si da consciência de si.84

O mundo exterior perde sua condição de existência por si, pois com esta negação do ser-Outro, a consciência de si transformou o objeto num ser dependente de sua vontade, já que a verdade agora tem a determinação em seu ser. O Eu toma para si o conteúdo da verdade, negando o ser-Outro retornou a si, restabelecendo a unidade original entre consciência e Si. E o que motivou essa revolução em si mesma foi a manifestação do desejo, ou ainda, o desejo de negar a exterioridade (Äusserlichkeit) e unificar em si mesma a verdade de sujeito e objeto. A consciência executa a reforma que promove a relação entre sujeito e objeto na mesma unidade, de modo que possa por si própria determinar quaisquer conteúdos da verdade. Hegel considera isso como a propria manifestação da essência da consciência de si.

O desejo revela o projeto da consciência-de-si, que em seu caminho espiritual, busca encontrar para si a Verdade, que consigo trará junto a própria Idéia de Liberdade (Idee der Freiheit), a tal ponto que todas as necessidades fundamentais da existência poderão ser abaladas, tais como a sua condição de singularidade, universalidade, e a própria Vida. O fim é o próprio Desejo da consciência-de-si em alcançar a sua Verdade, a sua Liberdade substancial. “O desejo é esse movimento da consciência que não respeita o ser, mas o nega, [...] dele se apropria concretamente e o faz seu. Tal desejo supõe o caráter fenomênico do mundo, que só é um meio para Si”.85

O desejo lança a consciência para além da certeza sensível e da percepção ao negar estes dados. O desejo é negação que coloca a consciência-de-si como objeto de si mesma ao movimentar-se para um outro, negando as primeiras impressões e com isto sendo desejo desse outro. “A consciência tem de agora em diante, como consciência de si um duplo objeto

84 HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, p. 173. 85 HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, p. 173.

[...] o segundo objeto é justamente ela mesma, que é a essência verdadeira e que de início só está presente na oposição ao primeiro objeto”.86 A satisfação do desejo não se dá neste outro, pois nega ser no outro e volta a si, neste momento é desejo de si mesmo, superando o movimento desde a saída, negação de si, o encontro com o Outro até o chegar ao retornar em si, agora consciência-de-si que é essencialmente desejo. Esse Outro é a própria vida em geral, a universalidade que se põe diante da consciência-de-si.

[...] o ponto de partida da dedução é a oposição entre o saber de si e o saber de um Outro. A consciência era saber de um Outro, saber do mundo sensível em geral; ao contrário, a consciência de si é saber de si; exprime-se pela identidade do Eu=Eu – Ich bin Ich.87

A consciência pretende com a interação com este ser-outro conhecer a si própria. Esta capacidade induz a condição do Eu também como objeto, ou, em outras palavras, o Eu passa a ser sujeito e objeto simultaneamente, o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido. Tal máxima se revelará notável na dialética de reconhecimento, onde o conhecimento do Outro será desvelado como o conhecimento a si mesmo. Neste contexto, jamais se deve perder de vista a dupla tarefa de Hegel na Fenomenologia, qual seja, uma tarefa tanto pedagógica como cognitiva. Apreender esse ser-outro, portanto, surge como uma apreensão não só da universalidade, da vida em geral, mas também de si mesmo.

Na Filosofia do Espírito, trabalho de 1805, Hegel já havia escrito importantes asserções referentes ao desenvolvimento da consciência de si, dedicando inclusive uma seção ao estudo do reconhecimento.

O movimento começa então aqui não com o positivo a saber em outra e por induzi-la à autonegação de outra, mas o começo do movimento é, ao contrário de não se saber nela, e logo de ver em outra seu ser para si em outra, que eles são autônomos.88

A consciência-de-si é desejo de outro e de si, superando o outro, deixa o outro livre e a consciência-de-si independente deste. “A consciência-de-si que pura e simplesmente é para si, e que marca imediatamente seu objeto com o caráter de negativo; ou que é, de inicio,

86 “Das Bewußtsein hat als Selbstbewußtsein nummehr einen gedoppelten Gegenstand, den einen, den

unmittelbaren, den Gegenstand der sinnlichen Gewißheit und des Wahrnehmens, der aber für es mit dem

Charakter des Negativen bezeichnet ist, und den zweiten, nämlich sich selbst, welcher das wahre Wesen und zunächst nur erst im Gegensatze des ersten vorhanden ist.FE, A verdade da certeza de si mesmo, HW 3, p. 139.

87 HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, p. 170.

88 HEGEL, G.W.F. La Philosophie de l’Esprit de la Realphilosophie. Tradução de Guy Planty-Bonjour. Paris:

desejo – vai fazer depois a experiência da independência desse objeto”.89

O suspender da consciência-de-si movido pelo desejo tem como objeto o outro,90 mas ao voltar a si mesma reflete sobre este outro, sobre a diversidade e increve-se como processo dado na vida. A consciência-de-si é desejo da vida, pois é nesta que se é possível a reflexão do processo de negar, suprassumir e tornar-se identidade de si consciente, consciência-de- si.91

O desejo, então, simboliza essa manifestação da consciência de si como ser-vivente, que se dá no mundo. O seu desejo de superar o ser-Outro revela nada mais do que esse sentido, o de a consciência não somente conhecer (erkennen) o mundo, mas agir (handeln) nele. Como foi dito, o desejo lança a consciência de si por sobre o objeto, o que, aparentemente, levaria o indivíduo a considerar como este objeto o próprio objeto do desejo. No entanto, esse movimento, ainda que providencial, revela o verdadeiro movimento da consciência, a de retornar a si própria. Em outras palavras, a consciência utiliza-se do objeto imediato para voltar a si.

O desejo da consciência, na verdade, é ela mesma. Negar o Outro é somente uma passagem necessária para esse fim. E este sentido corresponde à própria essência do capítulo dedicado à consciência de si. Em todos os movimentos de negações e aproximações com a exterioridade (Äusserlichkeit), o que se tem em fim, é, sempre, um desejo interior de retornar a si mesma, um fim de encontrar a identidade do sujeito com a sua consciência. A consciência de si não é a consciência teórica e observadora de outrora, mas a consciência que se dá na Vida, no existir aqui e agora. “O desejo se refere aos objetos do mundo; depois, a um objeto mais próximo de si mesmo, a Vida; enfim, a uma outra consciência de si, é o próprio desejo que se procura no outro, o desejo de reconhecimento do homem pelo homem”.92

89 “Das Selbstbewußtsein, welches schlechthin für sich ist, und seine Gegenstand unmittelbar mit dem

Charakter des negativen bezeichnet, oder zunächst Begierde ist, wird daher vielmehr die Erfahrung der Selbstandigkeit desselben mache”. FE, A verdade da certeza de si mesmo, HW 3, p. 139-140.

90 “Nós poderíamos mais simplesmente, mas menos cientificamente que Hegel, caracterizar o gênero: ele é, por

exemplo, o beijo que ele beija, como o sugere Hegel, a consciência de si se perde no gênero ou se identifica a ele, como essência do desejo”. PHILONENKO, Alexis. Commentaire de la “Phénoménologie de Hegel”: de la certitude sensible au savoir absolu. Paris: Librairie Philosophique, 2001. p. 72.

91“[...] o objeto se revelerará um ser não tão diferente em relação ao próprio conceito e tal unidade poderá ser

recuperada pelo saber, que perderá a sua parte consciencial e intelectualística, reconhecendo a unidade entre si e o mundo.” VINCI, Paolo. Conscienza Infelice e Anima Bella: Commentarios alla Fenomenologia dello Spirito di Hegel, p. 96.

No entanto, após negado o objeto, isto é, superado aquele desejo inicial, surge à consciência a necessidade de negar novo objeto. Este fato somente ilustra a verdadeira condição da consciência: não é o objeto em si que a consciência busca, mas o próprio desejo. O que Hegel pretende demonstrar é que a essência, a própria verdade dessa experiência, não está no objeto, que alterna a todo momento, ou na consciência, dependente do desejo, mas é a própria experiência. “Descubro portanto, no curso dessa experiência, que o desejo não se esgota jamais e que sua intenção refletida me conduz a uma alteridade essencial”.93

Não obstante, este processo permaneceria sempre no plano da finitude, onde a superação somente é possível quando o objeto é ,ele mesmo, um desejo, ou ainda, possui a si próprio a vontade de saciar seus desejos. Este fato somente pode ser possível se este objeto for também uma consciência de si, um Eu. Esta passagem é fundamental para se compreender toda a dialética do reconhecimento. A consciência de si busca sempre no objeto o seu desejo, no entanto, a negação do objeto possui por finalidade primordial uma afirmação de si mesmo, um retorno ao Si. E este retorno surge exatamente quando a consciência encontra, não um objeto, mas um Eu, uma consciência de si. Em outras palavras, o Eu que a consciência busca não era o seu Eu, mas um Outro, no que incute a verdadeira manifestação do Espírito, pelo Nós. Nas palavras de Hegel vemos toda a profundidade desta passagem.

Para nós, portanto, já está presente o conceito de espírito. Para a consciência, o que vem-a-ser mais adiante, é a experiência do que é o espírito: essa substância absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição – a saber, das diversas consciências-de-si para si essentes – é a unidade das mesmas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu.94

A dialética do desejo, momento da dialética do reconhecimento, comprova a real necessidade de a consciência de si efetivar-se no plano da Vida, em meio à multiplicidade de indivíduos. A consciência de si suprassume seu estado inicial de imediatez, donde o que procura é somente o puro Eu, através da negação do Outro, do objeto. Porém, esta tarefa de negar o objeto permite à consciência compreender que seu desejo se dá no mundo em geral, meio a vários desejos, tão fortes e vivos como o dela. O desejo não relaciona somente com objetos, impulsos, fenômenos, com a natureza em geral, mas também com o próprio homem. No fim, o que a consciência de si busca em si mesma é uma outra

93 HYPPOLITE, Jean. Gênese da Fenomenologia do Espírito de Hegel, p. 177.

94 “Hiemit ist schon der Begriff des Geistes für uns vorhanden. Was für das Bewußtsein weiter wird, ist die

Erfahrung, was der Geist ist, diese absolute Substanz, welche in der vollkommenen Freiheit und Selbständigkeit ihres Gegensatzes, nämlich verschiedener für sich seiender Selbstbewußtsein, die Einheit derselben ist; Ich, das

consciência de si, e nesta outra a si mesma. A satisfação do desejo é, decerto, o retorno ao primeiro objeto imediato, ao Eu, mas é um retorno á segunda potência; não é mais a certeza, é uma verdade, o Eu posto no ser da vida e não mais o Eu se pressupondo.95

A manifestação da consciência de si é eminentemente prática, apresenta, aos olhos de Hegel, a manifestação existencial do indivíduo no plano da Vida, em sua angústia de saciar os desejos. Ao encontrar o seu desejo colidindo com o desejo de uma outra consciência de si, o que ela se verá forçada a travar, é a própria luta por sua independência, que no fundo subsiste como uma vontade de liberdade. Este pressuposto fundamenta o combate desesperado da luta por independência e dependência entre as consciências de si desejantes.

A luta, para Hegel, carrega esse traço essencial de atitude negadora, transformadora, uma força que esmaga e põe em risco toda a segurança, não somente física, mas também psicológica, existencial, da consciência de si. Em sua juventude, influenciado por seus estudos teológicos, Hegel via o amor como a melhor via para o reconhecimento recíproco. No entanto, faltava a este amor uma característica fundamental, uma força propulsora capaz de unir e separar sucessivamente, ao mesmo tempo em que reconhece, liberta.96 A luta, portanto, possibilita um reconhecimento objetivo, substancial, o que não acontece com o amor, por não ter essa ação negadora de ameaçar a consciência. Neste caso, a união ocorreria somente em plano subjetivo, sem a certeza que emerge do enfrentamento.

O desejo é menos o do amor que o do reconhecimento viril de uma consciência desejante por uma outra consciência desejante. Logo, o movimento do reconhecimento se manifestará pela oposição entre as consciências de si; com efeito, será preciso que cada consciência se mostre como ela deve ser, isto, como elevada acima da vida que a condiciona e da qual ainda é prisioneira.97

O enfrentamento exige o arriscar-se, a ousadia por parte da consciência de si. Diferentemente do amor, o enfrentamento é um reconhecimento que obriga à consciência a colocar a si mesma em condição de perigo, de possibilidade iminente de morte. A aproximação da morte realça o valor que Hegel dá ao conceito de Vida, já introduzido anteriormente, e que agora será abordado com análises mais detalhadas. Não há momento do Espírito sem Vida, não há desenvolvimento da consciência de si sem Vida, tampouco a

95 HYPPOLITE, Jean. Gênese da Fenomenologia do Espírito de Hegel, p. 178.

96 Cf. Die Positivitat der christlichen Religion (1795/1796), fragmento de um dos mais importantes textos de

Hegel antes mesmo de sua chegada à Frankfurt.

possibilidade da Liberdade realizada. Tudo pode ser projetado somente a partir deste dado primordial, o ser vivente. Por isso somente o enfrentamento pode, de fato, exercer o efetivo reconhecimento, porque ele ameaça o inexistir da própria Vida.