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5.2 Teoria da vontade

5.2.3 Vontade livre em-e-para-si

Conforme já observado, o arbítrio possui por conteúdo/objeto um elemento dado, marcado pela exterioridade da natureza ou pelo que apraz ao arbítrio contingente da particularidade, inexistindo a auto-referencialidade e, portanto, trata-se de uma vontade finita. A vontade livre, por seu turno, exige que o conteúdo de seu querer seja idêntico a ela mesma, então, que a vontade livre queira a vontade livre (§ 27), a auto-referencialidade da liberdade. Neste contexto, imperioso observar como se dá a produção da vontade livre em-e- para-si a partir da vontade do arbítrio, o que deve ser observado a partir da exigência de purificação dos instintos (Reinigung der Triebe).

Sobre a purificação dos instintos, esclarece Hegel:

Na exigência da purificação dos instintos é ínsita a representação geral segundo a qual tais instintos sejam liberados da forma de sua determinidade natural imediata e do aspecto subjetivo e acidental do conteúdo, e venham reconduzidos a sua essência substancial.289

Esta libertação é um esforço da cultura, uma exigência que demonstra que os impulsos, em sua essência substancial, “são o sistema racional de determinação da vontade” (das vernünftige System der Willensbestimmung)290, com uma substancialidade ética que não é mais imediata e natural, mas espiritual e ascendida à forma do universal. É o trabalho da consciência de si, que na efetividade da razão ascende à universalidade, pela manifestação da Bildung. O trabalho cultural do homem é justamente esta evolução da consciência de si no âmbito racional, o único onde ela pode considerar-se plenamente livre. Deste modo, produz- se uma universalidade de pensamento. Nessa ordem de idéias, fundamental apresentar a designação de cultura.

288 “Der an und für sich seiende Wille ist wahrhaft unendlich, weil sein Gegenstand er selbst [...]” FD, Introdução, § 22, p. 74.

289 FD, §19, p. 70. 290 FD, §19, p. 70.

[...] a cultura é a libertação, o esforço de libertação superior, vale dizer: é o absoluto ponto de passagem em direção a substancialidade ética não mais imediata e natural, mas, ao invés, espiritual, infinitamente subjetiva, que é ao mesmo tempo ascendida à figura da universalidade.291

Por sua vez, esta libertação que compõe a definição de cultura indica um esforço pessoal individual. “No sujeito, esta liberação é o duro trabalho contra a mera subjetividade do comportamento, contra as exigências imediatas do desejo, assim como da vaidade subjetiva do sentimento e contra ao arbítrio do capricho.”292 É por este esforço de libertação, então, que a vontade se torna capaz e digna de ser a realidade da idéia.

No sistema racional de determinações o arbítrio encontra um posto de desenvolvimento, consentindo com uma universalidade ao não mais buscar apenas escolher o desejo a ser satisfeito. É uma universalidade que se dá a forma da razão, tratando-se de uma universalidade de pensamento através da reflexão aplicada aos instintos.

Quando a reflexão se aplica aos instintos – quando os representa e os calcula, faz confronto entre um e outro, depois confronta os seus meios, as conseqüências, etc, e, enfim os confronta com uma totalidade de satisfação, isto é, com a felicidade- confere a tal matéria a universalidade formal e, desta maneira exterior, purifica os instintos de sua rudeza e barbárie.293

É inevitável a constante preocupação com a formação humana para a liberdade, pois o indivíduo é assim concebido cultural, em processo de determinação de si. No entanto, em Hegel, esta determinação do Si é o próprio trabalho da consciência mediando o mundo, a universalidade, donde também seguirá por mediar a si mesma.

Então, a vontade, na imediaticidade que contribuiu para originar, revela-se como ativa ao abrir-se novamente à própria essência, o que se dá por intermédio de uma atividade da liberdade, responsável por empreender uma relação de negação com as determinações

291 “Die Bildung ist dahrer in ihrer absoluten Bestimmung die Befreiung und die Arbeit der höheren Befreiung,

nämlich der absolute Durchgangspunkt zu der, nicht mehr unmittelbaren, natürlichen, sondern geistigen, ebenso zur Gestalt der Allgemeinheit erhobenen[,] unendlich subjektiven Substantialität der Sittlichkeit”. FD, O

sistema das necessidades, HW 7, §187, p. 344-5.

292 “Diese Befreiung ist im Subjekt die harte Arbeit gegen die bloße Subjektivität des Behehnems, gegen die

Unmittelbarkeit der Begierde, sowie gegen die subjektive Eitelkeit der Empfindung und die Willkür des Beliebens” FD, O sistema das necessidades, HW 7, §187. p. 345.

293 “Die auf die Triebe sich beziehende Reflexion bringt, als sie vorstellend. Berechnend, sie untereinander und

dann mit ihren Mitteln, Folgen usf. Und mit einem Ganzen der Befriedigung – der Glückseligkeit – vergleichend, die formelle Allgemeinheit an diesen Stoff, und reiniget denselben auf diese äußerliche Weise von seiner Roheit und Barbarei”. FD, Introdução, HW 7, §20, p. 71.

naturais quando do ato de escolha do arbítrio, resultando disto um universal que é ao mesmo tempo um fim e um começo de mediação (Vermittlung) deste movimento. Em cada uma das figuras da vontade, a vontade livre em-e-para-si é mais opulente, em razão de ser um estágio em que o conceito aprofunda-se ainda mais em si. A própria vontade livre em-e-para-si, ao mesmo tempo que é um ponto final, também é um novo começo, colocando-se em uma situação de mediação, pois, para poder efetivar-se, precisará reposicionar em seu interior o percurso, realizando-o novamente na imediação indefinidamente, sendo este o processo que implica a transformação do mundo. Deste modo, após a determinação, o conceito retorna ao seu fundamento (Grund), de sorte que o conteúdo não é mais um limite, expondo um livre movimento de autodeterminação chamado por Hegel de infinidade do conceito.

Na vontade do arbítrio, a vontade quer um conteúdo particular, não a si mesma e, por isso, estabelece a dependência a um outro. A vontade livre em-e-para-si, ao contrário, quer apenas a si mesma, de sorte que a universalidade significa propriamente esta não-contradição entre a forma e o conteúdo, a própria vontade infinita. “Quando a vontade tem por conteúdo, objeto e fim a universalidade, isto é, a si mesma enquanto é a forma infinita, agora não é apenas vontade livre em si, mas também vontade livre para si: é a Idéia verdadeira da Liberdade.”294

A elevação da vontade ao universal se dá pela atividade do pensamento (Gedanke), pela reflexão. Trata-se de um pensamento que se põe e se atua na vontade, responsável por remover toda particularidade e determinação natural, ou seja, que perpetra a purificação. Um trabalho de reflexão que se desenvolve pela manifestação da consciência de si, na atividade do livre e recíproco reconhecimento, momento fenomenológico que possibilita a universalização das singularidades. É a tarefa da razão, a vontade livre em si e para si é a vontade racional, que se sabe como termo de um processo dialético. Sobre a acepção de universalidade, afirma Hegel: “A universalidade pura é precisamente isso, a remoção do caracter imediato e particularístico da determinação natural [...]”.295 Então, resta claro que a vontade livre em-e-para-si é inteligência pensante (denkende Intelligenz): “Eis o momento

294 “Indem er die Allgemeinheit, sich selbst, als die unendliche Form zu seinem Inhalte, Gegenstande und

Zweck hat, ist er nicht nur der an sich, sondern ebenso der für sich freie Wille – die wahrhafte Idee”. FD,

Introdução, HW 7, §21, p. 72.

295 “[...] der Allgemeinheit, welche eben dies ist, daß die Unmittelbarkeit der Natürlichkeit und die Partikularität”. FD, §21, p. 72.

em que se torna evidente que a vontade só é verdadeira vontade como inteligência pensante”.296

A vontade livre em-e-para-si tem o seu ser-aí (Dasein) em si mesma, o que remete ao próprio significado de objetividade, pois este designa o ato da vontade de ter a si própria como conteúdo, em um movimento de constituição de si, e, por isso, não sai de si mesma, é infinita. A consciência de si possui a si mesma como conteúdo, é sujeito e objeto, e ali constitui sua infinitude, é um ser-aí no mundo capaz de criar sua própria infinitude. É este o sentido da seguinte colocação de Hegel: “Na vontade livre, o verdadeiro infinito tem efetividade e presença – ela é em si-mesma esta Idéia presente em si”.297

Quanto ao objeto da vontade livre, é preciso atentar algumas passagens, em que Hegel coloca:

A vontade livre em-si-e-para-si, pois, não é mera possibilidade, disposição, potência (potentia), mas é o Realmente-infinito (infinitum actu), porque a existência do Conceito, isto é, o seu objeto exterior, é a interioridade mesma.298

Complementando o entendimento: “Pela vontade livre, então, o objeto não é um Outro, nem é uma limitação: no seu objeto, ao contrário, a vontade regressa a si.”299 Então, se a vontade livre em-e-para-si surge na exterioridade do objeto, significa que este objeto tornou-se interior ao movimento que faz manifestar o conceito: o objeto exterior é a própria interioridade. Portanto, a vontade encontra-se liberada de toda relação que lhe seja dependência exterior a si mesma, em um processo de determinação de si (não se pode olvidar que dentro deste processo há a relação entre a finitude e a infinitude). Torna-se efetiva, então, a universalidade concreta.

Ainda mais, a determinação da vontade é a vontade que é, em sua própria existência (enquanto entidade que está defronte a si mesma), aquilo que é o seu próprio conceito (§23).

296 “Hier ist der Punkt, auf welchem es erhellt, daß der Wille nur als denkende Intelligenz wahrhafter, freier

Wille ist”. FD, Introdução, HW 7, §21, p. 72.

297 “Im freien Willen hat das wahrhaft Unendliche Wirklichkeit und Gegenwart, - er selbst in diese in sich

gegenwärtige Idee”. FD, Introdução, HW 7, §22, p. 74.

298 “Der an und für sich seiende Wille ist wahrhaft unendlich, weil sein Gegenstand er selsbt, hiermit derselbe

für ihn nicht ein Anderes noch Schranke, sondern er darin vielmehr nur in sich zurückgekehrt ist. Er ist ferner nicht bloße Möglichkeit, Anlage, Vermögen (potentia), sondern das Wirklich-Unendliche (infinitum actu), weil das Dasein des Begriffs, oder seine gegenständliche Äußerlichkeit das Innerliche selbst ist”. FD, Introdução, HW 7, §22, p. 74.

299 “[...] hiermit derselbe für ihn nicht ein Anderes noch Schranke, sondern er darin vielmehr nur in sich

Então, o conceito não é algo de definitivo, de sorte que a vontade não possui uma finalidade última definitiva. “A vontade livre em-e-para-si é, ao mesmo tempo, algo de ‘posto’ e algo ‘que põe’”.300 Em outras palavras, é movimentada pela vontade da consciência, que medeia a si mesma enquanto age, um trabalho racional do homem na transformação do mundo à sua vontade.

Através destas colocações, constata-se que a vontade livre em-e-para-si está encerrada nela própria, contudo, é preciso atentar que, enquanto atividade, exterioriza no mundo o seu conteúdo e, por isso, esta vontade livre ao mesmo tempo que é algo de “posto”, também é algo “que põe”. Enquanto ato de “pôr”, a vontade quer garantir que está efetivamente concretizada na realidade imediata.

A universalidade, então, põe a singularidade (Einzelnheit), através de um ato em que a universalidade realiza seu movimento de retorno a si como vontade singular. Passando pela vontade singular, torna-se claro que Hegel propugna a responsabilidade individual em direção ao universal, pois a universalidade se faz através dos indivíduos e a atividade do conceito se realiza na vontade singular. A responsabilidade individual remete à efetivação da liberdade.

A liberdade concretiza-se, isto é, torna-se efetiva na imediação do ser, quando ela ‘põe’ o direito de todos os indivíduos de disporem social e politicamente de suas próprias vidas. Isto significa que este direito não é abstratamente subjetivo, encerrado na interioridade do querer de uma consciência, mas necessita de uma base sólida que possa assegurar a liberdade de todos.301

Portanto, a vontade exige uma imediaticidade que seja posta por ela mesma, em que a liberdade de todos seja assegurada. Até então, o conteúdo da vontade livre é abstrato, em razão do conceito abstrato da Idéia de vontade designar: “a vontade livre quer a vontade livre.”302 (der freie Wille, der den freien Willen will). A exteriorização deste conteúdo, ou seja, a realidade do conteúdo da vontade livre na imediaticidade empírica do mundo se constitui pelo direito (Recht), este, pois, sendo o concreto Dasein (ser-aí) da vontade livre em-e-para-si, a liberdade enquanto Idéia (Freiheit, als Idee) como concebe Hegel: “que um

300 ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 50. 301 ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 50. 302 FD, Introdução, HW 7, §27, p. 79.

ser-aí em geral seja o ser-aí da vontade livre, é isso que constitui o direito. Ele é, portanto, em princípio, a liberdade enquanto Idéia.”303

Pelo direito perfaz-se a determinação absoluta do espírito livre, a qual consiste em justamente haver a Idéia da Liberdade como seu próprio objeto, tanto no sentido que a própria Liberdade é o sistema racional do espírito mesmo, quanto no sentido que este sistema é realidade imediata (§27). Portanto, pelo direito a vontade livre expressa na realidade imediata seu conceito abstrato, traduzindo o sistema racional das determinações da vontade livre, onde é apreendido o movimento de autodeterminação. Deste modo, a liberdade que assim se efetiva possui um conteúdo e um ser-aí que não violam a auto-referencialidade, visto que Hegel vai para além da liberdade subjetiva - na qual o arbítrio aparece como um momento da liberdade individual pelo qual se realiza a livre escolha de um instinto-, e vai para além por apresentar a liberdade como uma Idéia. Significa que não é um desejo particular que produz o Espírito objetivo, mas a própria expressão objetiva e universal da Idéia de Liberdade, que apesar disso não exclui o direito da particularidade e a liberdade subjetiva. Portanto, é insuficiente falar de homens livres buscando fundamentos no direito natural ou em uma idéia formal, devendo este fundamento (Grund) ser buscado na Idéia de Liberdade que se efetiva na história através de um movimento de figuração, a exemplo das figuras do direito abstrato, moralidade subjetiva e eticidade, que não são produtos do arbítrio individual, mas sim vontades decidentes postas sobre o mundo pela consciência como Espírito através da história, é a vontade do próprio homem. Não há um direito natural que identifique esta condição, é o homem que deve criá-la. Este movimento de figuração espelha que a vontade livre em si e para si, na sua objetividade histórica e efetiva, representa uma limitação à vontade livre individual: a Idéia de Liberdade é a razão de ser da liberdade subjetiva. Chegando à Idéia da liberdade em si e para si, Hegel assinala o início da análise do processo de realização desta Idéia, que culmina na figura do Estado, na eticidade. Até alcançar a eticidade, que compõe o objeto do presente estudo, cumpre assinalar breves considerações acerca das duas figuras que a precedem: o direito abstrato e a moralidade.

Desde já, sublinha-se que, sob um olhar filosófico, observando no presente o que neste está voltado ao futuro, a eticidade é pressuposto do direito abstrato e da moralidade subjetiva. Deste modo, o direito abstrato não exclui a existência do Estado, mas o pressupõe,

303 “Dies, daß ein Dasein überhaupt, Dasein des freien Willens ist, ist das Recht. – Es ist somit überhaupt die

encontrando-se o Estado em potência de efetuação. Também a moralidade pressupõe o Estado, pois a ação moral é exercida no campo constituído pela eticidade, na órbita das relações culturais, sociais, econômicas e políticas. Contudo, segundo a ordem do movimento de figuração da Idéia da Liberdade e de realização do conceito, a eticidade não é colocada como precedente ao direito abstrato ou à moralidade, sendo gerada a partir da atualização em si da ação moral em uma ordem jurídica. Desta forma, a eticidade é um momento em que a consciência moral (Gewissen) é atualizada para constituir a substancialidade ética.