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3 O complexo da formação humana na ontologia do ser social de György Lukács

3.1 Formação do indivíduo: do desenvolvimento filogenético ao ontogenético

3.1.3 Consciência e ideologia

A exposição lukácsiana procurou, até aqui, demonstrar diferenças decisivas que se encontram no interior do trabalho e no posterior desenvolvimento da práxis humana. Por um lado, Lukács tentou demarcar como o trabalho originário, fundador do ser social, se estabelece e desenvolve a partir do conjunto de pores teleológicos que são orientados à transformação da natureza e da produção de valores de uso para coisas que tenham como meta a satisfação de necessidades mediatas ou imediatas dos homens. Por outro lado, em nível mais elevado, Lukács se emprenha em demonstrar como, na constituição da vida social, o segundo elemento se ocupa da construção da possibilidade de influenciar a consciência de outros homens a seguirem a orientação de execução de pores teleológicos, para a obtenção de fins desejados fora do plano individual.

O âmbito da economia socialmente desdobrada contém pores de valor de ambos os tipos entrelaçados de modos diversos, porém, nesse complexo, também os do primeiro tipo, sem perder a sua essência originária, sofrem mudanças que os tornam diferentes. Através dele surgiu, no âmbito da economia, uma complexidade maior do valor e dos pores de valor (LUKÁCS, 2013, p. 118).

Essa colocação não significa que ocorreu uma interrupção na continuidade de desenvolvimento do ser social. O que há é um processo contínuo e ininterrupto de transformações na ordem e na estrutura que organizam a vida social e que geram consequências diretas na constituição do próprio ser. Por isso:

É claro que, de um lado, determinados tipos e determinadas regulamentações da práxis social que, no curso da história, chegaram a autonomizar-se são, por sua essência, simples formas de mediação e originalmente também surgiram a fim de regular melhor a reprodução social; pense-se no direito, no sentido mais amplo do termo (LUKÁCS, 2013, p. 118).

Como já apresentado, com o objetivo de cumprir, da melhor forma, seu papel, o direito, “tomado no sentido amplo do termo”, deve ter o caráter autônomo de uma mediação, além de ser necessário a ele “ter uma estrutura autônoma em relação à economia” (LUKÁCS, 2013, p. 118). Dessa forma, é possível novamente visualizar de maneira clara

tanto a fetichização idealista, que quer fazer da esfera do direito algo que repousa inteiramente em si mesma, quanto o materialismo vulgar, que quer fazer derivar mecanicamente esse complexo a partir da estrutura econômica e, terminam por não ver os autênticos problemas (LUKÁCS, 2013, p. 119).

O direito, nesse caso, figura como uma imagem distorcida da realidade material e econômica. Ou seja, na estrutura de uma sociedade de classe, por exemplo, ele se detém no fenômeno, jamais alcança a essência do problema. É exatamente aquilo que Marx traz na Crítica ao direito de Hegel, ou seja, do ponto de vista do direito, proprietários e trabalhadores estão em condição de igualdade civil, tratando-se, na realidade, da confrontação de dois direitos, mesmo que antagônicos, que sejam: o direito da compra da força do trabalho pelo capitalista e a venda dessa força de trabalho pelo trabalhador. Nesse caso, estão em confrontação dois direitos iguais, donde aquele que for socialmente mais forte vai se sobrepor ao outro. Todavia, a essência, que está alicerçada em bases econômicas e que permeia essa estrutura, jamais é tratada pelo direito, que se diga, a relação originária que torna o possuidor um proprietário e o trabalhador uma força de trabalho disponível no mercado econômico. Esse antagonismo primeiro, que é fruto da expropriação da riqueza socialmente produzida pela massa de proletários, o que coloca em condição de total desigualdade qualquer possibilidade de existência de direitos iguais, ao mesmo tempo, desmistifica essa autonomia do direito em relação à estrutura econômica e, por fim, confirma a afirmação crítica que Lukács realiza em relação às posições idealistas e do materialismo vulgar em relação ao papel social do direito. Dito isso Lukács coloca que:

É exatamente a dependência objetivamente social do âmbito do direito em relação à economia e, ao mesmo tempo, a sua heterogeneidade, assim produzida, nos confrontos com esta última que, na sua simultaneidade dialética, determina a peculiaridade e a objetividade social do valor (LUKÁCS, 2013, p. 119).

De outro lado, Lukács procurou demonstrar como o desenvolvimento dos pores econômicos tem relevância e, ao mesmo tempo, como eles não têm condição de se tornar práticos, “sem despertar e desenvolver nos homens singulares, nas suas relações recíprocas etc.”. É no transcurso descrito pelo filósofo húngaro que se verificam o

desencadeamento e o surgimento real e concreto do gênero humano, sendo que ele apresenta como esse processo gera o avanço das faculdades humanas e se estende para muito além da pura esfera econômica, porém, apesar de extrapolar essa esfera fundante, jamais pode pretender como nas representações idealistas, o abandono da totalidade do ser social (LUKÁCS, 2013, p. 119). Dessa maneira:

Toda utopia é determinada, em seu conteúdo e em sua orientação, pela sociedade que ela repudia; cada uma das suas contra imagens histórico- humanas refere-se a um determinado fenômeno hic et nunc histórico- socialmente existente. Não existe nenhum problema humano que não tenha sido, em última análise, desencadeado e que não se encontre profundamente determinado pela práxis real da vida social (LUKÁCS, 2013, p. 119).

Aqui está posta uma contraditoriedade. Trata-se de “um momento importante da interdependência”. Os resultados muito relevantes do desenvolvimento humano, em muitos casos, porém, nunca por acaso, têm sua origem nestas formas antitéticas e, mediadas por elas, passam, “em termos objetivamente sociais”, à condição de “fontes de inevitável conflito de valor” (LUKÁCS, 2013, p. 119). Sobre isso, Lukács diz que:

Exatamente porque o desenvolvimento econômico não é, em sua totalidade, um desenvolvimento teleologicamente posto, mas, apesar de ter os seus fundamentos nos pores teleológicos singulares dos homens singulares, consiste em cadeias causais espontaneamente necessárias, os modos fenomênicos delas, cada vez histórica e concretamente necessários, podem dar origem às mais agudas contraposições entre o progresso objetivamente econômico – e por isso objetivamente da humanidade – e suas consequências humanas (LUKÁCS, 2013, p. 119).

Lukács toma o direito como um relevante complexo, com o objetivo de expressar de que forma, no campo do desenvolvimento da práxis social, o homem, a partir da necessidade posta e existente na realidade, extrapola a esfera do metabolismo com a natureza e concretiza sua totalidade social no processo material de desenvolvimento do complexo do trabalho, no decurso da história. Esse movimento, é analisado por ele desde a dissolução do comunismo primitivo e o consequente desenvolvimento de outros complexos relacionados aos desdobramentos relacionados à esfera social e sua dinâmica geral. Isso quer dizer que a estrutura econômica desempenha papel fundamental no desenvolvimento da vida social, mesmo não tendo o privilégio único de fazê-lo, ou seja, no interior de tal processo há o desdobramento de complexos extraeconômicos, pois, como demonstrado por Lukács, a necessidade de cooperação entre homens gera a necessidade da divisão do trabalho, que, como consequência, faz operar os pores secundários. “Essa unicidade na diferenciação entre alternativas econômicas e alternativas não mais econômicas, humano-morais, nem

sempre é tão nítida como no caso do trabalho que é um simples metabolismo com a natureza” (LUKÁCS, 2013, p. 120). Essa unicidade demarca a possibilidade do desenvolvimento das sociedades de classes, sendo que os elementos ideológicos são parte do conjunto necessário para o funcionamento de tais sociedades. Assim sendo, pode-se verificar, ao longo da história, o papel das ideologias assumido por indíviduos ou conjuntos de indivíduos, de caráter teológico, como verificamos, em especial, na Idade Média; o desenvolvimento contínuo de modelos educacionais e sistemas de ensino de várias épocas, pretendendo alcançar a formação de determinado tipo de ser social que atenda à demanda da classe socialmente mais forte, que se impõe sobre a mais frágil; o complexo da política como campo que demarca o antagonismo de interesses econômicos e não econômicos (éticos, morais, sociais, etc.); valores antagônicos, pelo menos inicialmente, a propostas progressistas de desenvolvimento econômico/social; etc. Segundo Lukács, situações como estas podem ser verificadas, por exemplo:

Na antiga Roma, esse dilema entre valores já era enunciado com clareza por Lucano: Victrix causa diis placuit, sed victa Cantoni. E basta pensar na figura de Dom Quixote, em quem essa tensão entre a apaixonada rejeição da necessidade, objetivamente progressista, do desenvolvimento social e a identificação igualmente apaixonada à integridade moral do gênero humano, sob as formas do definitivamente ultrapassado, aparece concentrada na mesma figura como união da grotescamente insensata e sublime pureza de alma (LUKÁCS, 2013, p. 120-121).

Essa é uma contradição que está, desde a passagem do comunismo primitivo ao estabelecimento de sociedades de classe e, com elas, as elaborações de variadas formas de apreensão e compreensão da realidade até a manipulação, presente ao longo da história. É observável de maneira imediata o antagonismo existente entre as tomadas de posições econômicas e morais. As econômicas baseiam-se de forma mais ou menos sobre a forma de trabalho simples; já a moral desenrola-se a partir de algumas consequências da economia que provocam efeitos na vida social, o que parece prescrever, de forma dominante, a fundamentação de um antagonismo de valores. “Isso tem seu fundamento em que, enquanto o processo econômico-social se desenrola com uma unicidade casual-legalmente determinada, as reações a ele têm de provocar uma imediata – unicidade de valor” (LUKÁCS, 2013, p. 120).

Os elementos aqui tratados por Lukács remetem a uma questão determinante para o desenvolvimento de sua apreensão da totalidade da formação humana e onde

estão depositadas as possibilidades emancipatórias do ser social, ou seja, a possibilidade da alternativa.