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3 O complexo da formação humana na ontologia do ser social de György Lukács

3.1 Formação do indivíduo: do desenvolvimento filogenético ao ontogenético

3.1.1 Indivíduo e sociedade

A partir do desenvolvimento material/histórico do complexo categorial exposto, o ser social desenvolve exponencialmente a vida social, a socialidade, em consequência, seu domínio sobre a realidade externa a si e a produção de coisas úteis na constituição contínua do mundo humano e das condições adequadas para sua existência. Nesse percurso, o homem desde suas primeiras formações sociais, ou seja, as mais primitivas, até o desenvolvimento e a consolidação da forma de complexo mais elaborada até nosso

atual momento histórico, que seja o capitalismo, ocupou-se em gerar valor de uso, à produção de coisas úteis à vida social e particular.

Desse modo, os valores de uso, os bens, representam uma forma de objetividade social que se distingue das outras categorias da economia somente porque, sendo a objetivação do metabolismo da sociedade com a natureza e constituindo um dado característico de todas as formações sociais, de todos os sistemas econômicos, não está sujeita – considerada na sua universalidade – a nenhuma mudança histórica; naturalmente que se modificam continuamente os modos fenomênicos, inclusive no interior da mesma formação. Em segundo lugar, o valor de uso, nesse quadro, é algo de objetivo. Deixando de lado o fato de que, com o desenvolvimento da socialidade do trabalho, aumenta sempre mais o número dos valores de uso que só de maneira imediata servem à imediata satisfação das necessidades – não se deve esquecer, por exemplo, que, quando um capitalista compra uma máquina, ele quer obter o valor de uso –, pode-se identificar com grande exatidão a utilidade que faz de um objeto um valor de uso também no período inicial do trabalho. O fato de essa utilidade possuir um caráter teleológico, de ser utilidade para determinados fins concretos, não supera essa objetividade. Desse modo, o valor de uso não é um simples resultado dos atos subjetivos, valorativos, mas, ao contrário, estes se limitam a tornar consciente a utilidade objetiva do valor de uso; é a constituição objetiva do valor de uso que demonstra a correção ou incorreção deles e não o inverso (LUKÁCS, 2013, p. 107-108).

Com o desenvolvimento histórico/social, o homem amplia a produção de valores de uso, aumenta potencialmente o surgimento de novas necessidades a serem satisfeitas. Conforme Lukács, “Na gênese ontológica do valor, devemos partir, pois de que no trabalho como produção de valores de uso (bens) a alternativa do que é útil ou inútil para a satisfação das necessidades está posta como problema de utilidade, como elemento ativo do ser social” (LUKÁCS, 2013, p. 111). O avanço das forças produtivas relaciona-se com esse processo humano, efetiva a produção a partir da divisão social do trabalho e a gerar valores econômicos (valores de troca).

Como poderiam, pois, seus pores de valor constituir valor econômico? O próprio valor está presente objetivamente e é exatamente a sua objetividade que determina – mesmo que objetivamente não com a certeza adequada e subjetivamente sem uma consciência adequada – os pores teleológicos singulares, orientados para o valor (LUKÁCS, 2013, p. 113).

Esse elemento desencadeia uma teia de complexidades em torno da categoria valor, fato que transforma toda a produção de coisas em mercadorias e objetiva, em si, a economia de tempo, apresentando-se como base para toda a economia. Com o avanço demonstrado, verifica-se a necessidade em regular os tempos de trabalho necessários ao desenvolvimento das práticas sociais em torno da geração de valor pelo trabalho, ao mesmo tempo que, na singularidade do campo individual, é necessário administrar o

tempo em aprendizado de conhecimentos que possibilitem compor essa nova estrutura social.

Economia de tempo, a isto se reduz afinal toda economia. Da mesma forma, a sociedade tem de distribuir apropriadamente o seu tempo para obter uma produção em conformidade com a totalidade de suas necessidades; do mesmo modo como o indivíduo singular tem de distribuir seu tempo de forma correta para adquirir conhecimentos em proporções apropriadas ou para desempenhar suficientemente as várias exigências de sua atividade. Economia de tempo, bem como distribuição planificada do tempo de trabalho entre os diferentes ramos de produção, continua sendo também a primeira lei econômica sobre a base da produção coletiva (MARX, 1939-1941, p. 89

apud LUKÁCS, 2013, p. 113).

O processo em questão deveria permitir ao ser social se efetivar no mundo, ampliar seu domínio sobre a natureza, reduzir o tempo necessário à produção e gozar de tempo livre para o desenvolvimento de toda a sua potencialidade humana. Pois essa é a essência da categoria trabalho enquanto categoria originária, capaz de humanizar o ser, promover o salto ontológico e a consequente emancipação do ser social em relação ao reino da necessidade. A esse respeito, diz Marx:

Se considerarmos a sociedade burguesa em seu conjunto, a própria sociedade,

i.e., o próprio homem em suas relações sociais, sempre aparece como

resultado último do processo de produção social. Tudo o que tem forma fixa, como o produto, etc., aparece somente como momento, momento evanescente nesse movimento. O próprio processo de produção imediato aparece aí apenas como momento. As próprias condições e objetivações do processo são igualmente momentos dele, em relações recíprocas, relações que eles tanto reproduzem quanto produzem de maneira nova. É seu próprio contínuo processo de movimento, em que eles renovam a si mesmos, bem como o mundo da riqueza que criam (MARX, 1939-1941, p. 600 apud LUKÁCS, 2013, p. 115).

Lukács realiza uma comparação dessa posição marxiana à posição hegeliana, já apontada em outro momento, que trata da importância da durabilidade da ferramenta no processo de produção e satisfação das necessidades humanas. Em um primeiro momento, ele chama atenção para o aparente contraste – todavia, somente aparente – dessas duas posições. Hegel, em suas elaborações sobre o trabalho, deu destaque para a elaboração das ferramentas laborais como momento que é, em si, durável, no processo de desenvolvimento social. Também identificou e colocou em destaque a mediação fundamental para a superação da singularidade no trabalho, em direção ao momento da continuidade social da produção e satisfação. “Hegel oferece, portanto, uma primeira indicação a respeito do modo como o ato de trabalho pode tornar-se momento da reprodução social”. Ao contrário de Hegel, Marx toma o processo econômico em sua totalidade dinâmica, na qual, obrigatoriamente, o homem deve aparecer em seu início e

“fim, como o indicador e o resultado final do conjunto do processo”, mesmo que, devido às inúmeras situações que ocorrem nesse processo, ele possa aparentar estar ausente. “No entanto, apesar de toda aparência, mesmo tão fundamentada, ele constitui a essência real desse processo” (LUKÁCS, 2013, p. 116).

No trabalho, verifica-se a fundação da objetividade do valor econômico, que representa o metabolismo existente entre o homem e a sociedade, “no entanto, a realidade objetiva do seu caráter de valor vai além desse nexo elementar”. Já no trabalho originário, o que coloca valor no objeto produzido é sua utilidade em satisfazer necessidades humanas. Mesmo que, a princípio, essa produção esteja direcionada à satisfação, ela coloca em curso, independentemente do nível de consciência do produtor, o processo objetivo que, em si, é conduzido por uma intenção que está direcionada a favorecer o desenvolvimento superior do homem. “Assim se produz valor econômico, uma intensificação qualitativa diante do valor que já existia na atividade simples, produtora de valores de uso”. Desse movimento, constata-se o surgimento de um problema duplo e contraditório que envolve o valor de uso e o valor de troca. Em relação ao primeiro, Lukács diz que “o caráter de utilidade do valor sofre uma intensificação em direção ao universal, para o domínio de toda a vida humana”, esse fato ocorre de forma conjunta, no processo de abstração da utilidade, fenômeno que se dá conforme o valor de troca, “sempre mediado, elevado à universalidade e em si mesmo contraditório”. Torna-se, no desenvolvimento social, a mediação que orienta as trocas sociais entre os homens. Todavia é preciso ressaltar a predominante contradição do papel determinante do valor de uso para a vigência do valor de troca. Dessa forma, é possível compreender que o novo, aqui descrito, é um desenvolver contraditório e dialético das condições originárias, fundadas no trabalho desde sua gênese, o que afasta a possibilidade de ser uma “simples negação abstrata”. A esse respeito, diz Lukács que “a sociedade desdobrada da produção resulta num sistema imanente, que repousa em si mesmo, fechado em si mesmo, do econômico, no qual uma práxis real só é possível sobre a base da orientação para pores de fins e investigações dos meios imanentemente econômicos” (LUKÁCS, 2013, p. 116). Por isso, não se pode considerar um acaso, menos ainda um equívoco, o aparecimento do homo eeconomicus. Lukács entende que este contempla a expressão adequada e imediata do comportamento que o homem precisa ter diante da realidade de um mundo onde a produção de coisas necessárias à satisfação das necessidades humanas tornou-se social. Contudo esse é um comportamento que somente pode ser imediato (LUKÁCS, 2013, p. 117). Sendo assim:

Com efeito, tanto no capítulo sobre Marx como nas presentes considerações, fizemos questão de deixar claro que não podem existir atos econômicos – desde o trabalho originário até a produção social pura – em cuja base não se encontre uma intencionalidade ontologicamente imanente para o devir do homem, no sentido mais amplo do termo, ou seja, da gênese ao seu desdobramento (LUKÁCS, 2013, p. 117).

Essa constituição da esfera econômica tem caráter ontológico, o que auxilia na compreensão de sua inter-relação com vários outros complexos da práxis social, pois o campo econômico é onde se desdobra “a função ontologicamente primária, fundante”. Nesse sentido, “em tal prioridade ontológica não está contida nenhuma hierarquia de valor”. Por isso, quando se trata do ser, entende-se que “uma determinada forma do ser é a insuprimível base ontológica de outra, e a relação não pode ser nem inversa nem recíproca”. Essa constatação, por si só, demonstra que não há qualquer hierarquia de valor. Esse tipo de hierarquização somente ocorre na teologia ou no pensamento idealista com roupagem teológica, “a prioridade ontológica representa, ao mesmo tempo, uma valoração mais elevada” (LUKÁCS, 2013, p. 117).