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Consciência, processo educativo e afetividade

No documento _DISSERTAÇÃO Armando mestrado (páginas 62-69)

É a partir da totalidade e da unidade do desenvolvimento do trabalho como atividade vital humana que este trabalho se estrutura, considerando a consciência como objeto de estudo da psicologia, e, portanto, como possibilidade de construir um conhecimento sobre as condições de formação do ser humano no processo educativo. Essa totalidade se constitui com a atividade comunicativa, com a linguagem, com os signos e os processos de significação, com a produção dos sentidos que constituem a subjetividade e culminam com a vivência como unidade do especificamente psicológico.

Este trabalho considera a formação da consciência em relação à afetividade e sob determinadas condições de relacionamento social, especificamente sob as relações de dominação. Portanto, a compreensão que se busca neste trabalho está voltada para a formação afetivo-emocional dos indivíduos no processo educativo sob esta forma de relação social, e que implicações haverá para a formação da consciência nos indivíduos.

Vygotski (1996, p. 198-9) afirma que “[...] sem o pensamento em conceitos é

impossível a consciência do ser humano” (tradução nossa), e também que essa forma de pensamento marca uma mudança na forma da experiência humana em sua relação com o mundo, passa do nível da vivência ao nível do conhecimento.

Observa-se neste, que apesar de haver uma mudança, uma passagem de uma forma de experienciar o mundo - a vivência - para uma forma modificada que se dá por meio do conhecimento - a consciência -, essa mudança não implica o desaparecimento da vivência como forma constituinte dessa mesma consciência, se não que, a vivência permanece como qualidade da experiência que é determinante da consciência (VYGOTSKI, 2001, p. 24-5).

Assim, o desenvolvimento da consciência e do conhecimento estará sempre enredado pela afetividade como constituinte qualitativo destas formações psíquicas na apropriação do mundo humano. Devemos compreender, portanto, como a afetividade está sempre presente no desenvolvimento psíquico.

Vygotski (1996, p. 281-2; 298; 344) aponta que no recém-nascido existe a possibilidade de uma vida psíquica que, vinculada aos estados mais primitivos e instintivos, está ligada à percepção como sua forma de relação com o mundo. O que equivale dizer que a percepção se configura, nesse estágio de desenvolvimento, como a qualidade da consciência para o psiquismo. Ainda aponta para o afeto – qualidade sensível e significativa - como elo permanente que une todos os processos de desenvolvimento psíquico, desde esta forma primitiva de “consciência” – dada pela possibilidade perceptiva -, até o mais elevado grau de desenvolvimento da personalidade e da consciência no plano social.

Pode-se pensar, desta forma, que o afeto constitui-se no elo entre todos os componentes da vivência, caracterizando-a. Com isso, possibilita a compreensão da consciência como conhecimento emocionalmente constituído, porque há essa qualidade conjuntiva dos elementos constituintes do psiquismo.

É importante lembrar que uma das características básicas da teoria Histórico- Cultural é justamente pensar o homem como totalidade, como unidade indivisível de todos os processos de desenvolvimento. Esta unidade compreende desde os rudimentos mais primários da vida biológica até os níveis mais avançados da vida social. Assim é que na unidade psicológica se encontram a vivência, o afeto e a cognição. Beatón (2005, p. 12-3) sintetiza desta forma esta concepção de unidade:

Vygotski estabelece em Pensamento e Linguagem, entre outras coisas, duas idéias básicas: que há uma unidade complexa no psíquico e essa unidade complexa implica em unidade indissolúvel do afetivo e do cognitivo, da comunicação e da atividade e uma unidade da realidade histórica e social com os conteúdos psicológicos humanos, com os significados e ainda que não o explicite, nesta obra, com clareza, os últimos provêm e se formam a partir das vivências. (tradução nossa)

Essa qualidade que o conhecimento adquire e a constituição da consciência em relação à afetividade é de importância fundamental para o processo pedagógico, porque o conhecimento e a consciência que orientarão os indivíduos em suas relações estarão sempre mediados pelo caráter afetivo-emocional de sua constituição, e isso comprometerá a forma como se constituirão as necessidades psicológicas e as motivações ligadas à aprendizagem.

Assim, ao se pensar o desenvolvimento da consciência, desde a sua forma mais primitiva, como manifestação psíquica no recém-nascido, até a sua forma mais desenvolvida demonstrada pelas relações sociais, há que se considerar a qualidade afetiva como elemento formador dessa consciência.

Uma característica importante da consciência é o fato de que nela se desenvolve, com a linguagem, uma qualidade de atribuição de sentido um tanto diferente daquele sentido dado, quando a “consciência” ainda se encontra, predominantemente, caracterizada pelos processos perceptivos formados pelos órgãos sensíveis, que Leontiev (1978, p. 171) denomina “sentido biológico”.

Vygotski (1996, p. 379/380) aponta para o fato de que no recém-nascido a percepção não está constituída de sentido – e com isto ele está se referindo ao sentido semântico dado pelas relações significadas culturalmente -, porque os objetos de uma dada totalidade objetiva são percebidos como uma unidade indiscriminada, ainda não significada socialmente. Então, a criança ainda não atribui significados e a totalidade carece de uma constituição semântica. Em idade prematura, portanto, as vivências não são percebidas significativamente em relação a uma dada situação.

Com isso, aponta-se neste trabalho a compreensão de que a formação e o desenvolvimento da consciência da criança inicia-se com a participação dela na vida social, em uma determinada situação cultural, na qual estão presentes os significados sócio-culturais. Vygotski (1996, p. 282), assim se refere a este momento do desenvolvimento do psiquismo:

Dispomos, portanto, de dois momentos essenciais que caracterizam a peculiaridade da vida psíquica do recém nascido. O primeiro deles se refere à supremacia exclusiva de vivências não diferenciadas, não fracionadas, que representam, por assim dizer, uma fusão de atração, afeto e sensação. O segundo momento caracteriza a psique do recém nascido como algo que não separa sua existência nem suas vivências da percepção das coisas objetivas, que não distingue, todavia, os objetos sociais e físicos. (tradução nossa)

Com o desenvolvimento da percepção e dos processos cognitivos em um mundo de significados socialmente constituídos, as vivências adquirem sentido para o indivíduo por meio de possibilidade de discriminação e de análise, realizadas por meio da linguagem constituída por esses significados. Isto possibilita o reconhecimento de suas próprias vivências. Forma-se, assim, uma nova “estrutura de vivências” que permite ao indivíduo compreender o significado de suas próprias vivências e orientar-se conscientemente em relação a elas (VYGOTSKI, 1996, p. 379-80).

Assim, tanto a consciência como as vivências adquirem uma nova qualidade por meio do processo de desenvolvimento. A vivência deixa de se constituir exclusivamente por estados emocionais, afetivos e percepto-sensuais para se constituir com um significado semântico de origem social, como afirma Vygotski (1996, p. 383) : “A vivência possui uma

orientação biossocial, é algo intermediário, que significa a personalidade com o meio, revela o que significa o momento dado pelo meio para a personalidade”.

A consciência, por sua vez constituída pelo desenvolvimento da linguagem, pelo desenvolvimento cognitivo, pela possibilidade de efetuar uma discriminação significada dos objetos da realidade e do meio no qual se encontra o indivíduo, constitui-se também com as vivências, não somente como uma relação diretamente reflexa, reativa do organismo em relação aos estímulos ambientais. A consciência, a partir dos significados socialmente constituídos, adquire um caráter reflexivo e tem as próprias vivências como objeto de seu conhecimento. Segundo Vygotski (1996, p. 380):

Aos sete anos, forma-se na criança uma estrutura de vivências que lhe permite compreender o que significa “estou alegre”, “estou aborrecido”, “estou incomodado”, “sou bom”, “sou mau”; quer dizer, nela surge a orientação consciente de suas próprias vivências. (tradução nossa)

[...]

Igualmente, a criança de três anos descobre suas relações com outras pessoas, assim o de sete descobre o próprio fato de suas vivências. (tradução nossa)

Marx (1977, p. 37), quando teoriza sobre a consciência, sintetiza essa idéia de uma unidade do conhecimento significado e do conhecimento empírico, quando afirma que a consciência representa a própria vida dos homens, em sua concretude e realidade. O que significa compreender a formação da consciência como fenômeno que advém da experiência concreta, na vida real, na totalidade do existir humano.

Ressalta-se aqui, a importância do processo de vida real dos indivíduos como uma totalidade na produção do psiquismo que possibilita a relação do homem com o mundo e com os outros homens. Todas as ações pedagógico-educativas implicarão a formação afetivo- emocional da criança. Assim, produzirão qualidades no conhecimento e na consciência, que constituirão a personalidade dos indivíduos.

Pode-se compreender esse movimento de transformação da consciência pela presença inicial de estados psíquicos rudimentares, da existência de uma consciência que aparece como manifestação afetivo-emocional por meio dos processos sensitivos em uma unidade vivenciada pelo recém-nascido de forma indiscriminada (VYGOTSKI, 1996 p. 281- 2); transforma-se em conhecimento significado que vai além dos limites biológicos e abarca a totalidade da vida social humana como autoconsciência. Assim, o movimento de desenvolvimento da consciência continua com o desenvolvimento da percepção. Isto ocorre

na relação existente entre os órgãos sensitivos e a ação direta das propriedades materiais do mundo objetivo com o qual a criança se relaciona (PETROVSKI, 1986, p. 223-232).

Esse processo de desenvolvimento da percepção é caracterizado pela discriminação - pelos órgãos dos sentidos - das propriedades isoladas dos objetos; apresenta como princípio a atividade motora da criança num processo de estudo do mundo objetivo que se dirige para a constituição de imagens adequadas que o representam (PETROVSKI, 1986, p. 228; 234).

Da mesma maneira que nas sensações se expressa uma forma afetivo-emocional da experiência vivenciada pela criança, também a afetividade está presente no processo de desenvolvimento da percepção como componente da consciência da criança neste estágio.

A apresentação do mundo material à criança é realizada pelo adulto e acontece de diferentes formas e se constitui com qualidades objetivas e relacionais. Isso ocorre em uma dada situação. A forma e a situação configuram a qualidade da relação afetivo-emocional no processo de percepção, o que produz uma característica correspondente no objeto, que é afetivamente percebido, de forma que as imagens e representações do mundo objetivo e da relação que a criança tem com esse mundo são construídas afetivamente e, assim, essas imagens e representações formam uma parte do conhecimento e da consciência que se desenvolve na criança em determinada situação. Petrovski (1986, p. 230) apresenta este fato assim: “Fator de importância que influi no conteúdo da percepção são as condições

específicas em que se apresenta o objeto. Muitos casos têm sido descrito, nos quais a percepção do objeto sofreu deformações devido às condições específicas”.(tradução nossa)

Isso traz reflexões sobre como, no processo pedagógico-educativo, os objetos do conhecimento desse processo se transformarão em instrumentos de relação da criança com o mundo e que estes objetos-instrumento guardam as características afetivas e emocionais da situação e da forma como foram apresentados, constituindo-se como possibilidades e limitações qualitativas que a criança poderá estabelecer com o mundo humano, portanto, na dimensão própria de seu poder de relacionamento.

Petrovski (1986, p. 229) aponta a importância dos processos afetivos na constituição da percepção e da consciência. A afetividade nos permite compreender uma característica da constituição da subjetividade neste processo de conhecimento objetivo, ou seja, do desenvolvimento da apercepção como a qualidade que representa a totalidade do desenvolvimento psíquico em uma dada situação:

A percepção não depende somente do excitante, depende também do sujeito que percebe. Percebe não somente o olho isolado, não somente o ouvido por conta própria, senão uma pessoa concreta, e em sua percepção, em maior ou menor grau, se deixam ver as particularidades da personalidade daquele que percebe, a sua relação com o percebido, suas necessidades, interesses, paixões, desejos e sentimentos. Denomina-se apercepção à dependência da percepção do conteúdo da vida psíquica da pessoa, das características de sua personalidade. (tradução nossa)

Portanto, pode-se compreender como a atividade da criança, que ocorre em um mundo apresentado pelos indivíduos adultos em atividades sociais culturalmente desenvolvidas, vai caracterizar e constituir o desenvolvimento da consciência nos indivíduos. Deve-se compreender a atividade como processo, também, de mediação no desenvolvimento psíquico e humano. Assim, o processo de vida real dos homens se encontra caracterizado por suas atividades. É com esse conceito de atividade que se considera neste trabalho as inter- relações entre o desenvolvimento da consciência e da vivência.

Tanto as vivências, quanto a consciência têm, em sua gênese, uma relação direta com os elementos de sua vida real. Isto significa que no início a vivência e o seu constituinte primário - as sensações em uma estrutura que constituem um percepto - estão em uma relação exclusivamente material com a vida real. Com isto, afirma-se neste que a atividade psíquica refere-se, nesse estágio, a processos reativos em função de respostas desenvolvidas ao longo da história filogenética. Tanto é assim que nesse estágio inicial as vivências se confundem com o psíquico – nesse momento a relação psíquica aparece como sensação que o indivíduo tem de uma determinada condição, como experiência única – no plano orgânico, e sua atividade se restringe a reações motoras dirigidas às necessidades determinadas pela organização biológica. Esse é um estágio primário a partir do qual o indivíduo se desenvolve, com sua inserção no plano da vida social (VYGOTSKI, 1996, p. 282-3).

Em um segundo momento, a vivência e a consciência de um indivíduo que já está submetido à atividade com os “outros”, isto é, se encontra em uma determinada relação social, passam a adquirir as qualidades desta relação, e passam a expressar a forma que assumem como elementos de uma nova atividade que é, agora, coletiva e responde não mais às necessidades e interesses exclusivamente individuais, mas também às necessidades criadas pelas relações sociais e dirigidas também a elas.

Assim, a vivência, a consciência e a atividade se desenvolvem em um meio social e expressam as qualidades desse meio e sua forma de relação, expressam as possibilidades e limites que a organização dos meios de produção da vida social impõem como condições ideológicas de pertencimento a determinado grupo social.

Leontiev (1998, p. 68), ao explicar sobre o conceito de atividade, indica esta unidade entre a atividade e a afetividade, portanto, entre as fontes geradoras da consciência no processo vivencial dos indivíduos, no meio social. Assim, ele diz que, além das características essenciais da atividade, como processos de satisfação de necessidades do homem em sua relação com o mundo, afirma que existe um direcionamento dado pela objetividade da atividade que, inclui o objeto, direção e resultado da atividade que em seu conjunto governam a atividade em sua integralidade.

Essas três esferas da vida humana estão vinculadas pelos afetos – como elemento conjuntivo por sua qualidade, como dito antes - que o meio social proporciona. Assim, a consciência como conhecimento do mundo não deve se reduzir às informações necessárias para a atividade prática dos sujeitos nas esferas produtivas, políticas ou ético-morais, ou seja, a uma estrita racionalidade; a consciência como objeto de desenvolvimento no processo pedagógico-educacional necessita, na mesma proporção, de uma consideração sobre as qualidades afetivas e emocionais que se apresentam como qualidades do meio e da situação no processo de ensino.

Esta é a concepção contida neste trabalho: há que se considerar que, no processo pedagógico, a educação não se limita à informação técnica necessária ao conhecimento e à consciência. A educação, como processo de formação humana, “educa afetivamente” a consciência que o indivíduo tem de si em sua relação com o mundo, ou seja, imprime uma qualidade afetiva que, sendo elemento de conjunção entre a atividade do indivíduo e os seus constituintes cognitivos, configura-se como elemento orientador, indicando quais são os objetos que no processo de aprendizagem são motivadores e satisfazem, ou não, suas necessidades afetivas, e assim, determinam as possibilidades de relacionamento com objetos do conhecimento.

Vygotski (1996, p. 383) sintetiza esta complexa forma da relação humana em seu processo de desenvolvimento psíquico, indicando esta inextrincável existência entre a vivência e a atividade humana na formação da consciência como uma consciência emocionalmente formada, dizendo que:

[...] A verdadeira unidade dinâmica da consciência, unidade plena que constitui a base da consciência é a vivência. (tradução nossa)

A vivência possui uma orientação bio-social, é algo intermediário entre a personalidade e o meio, que significa a relação da personalidade com o meio, revela o que significa o momento dado do meio para a personalidade. A vivência determina de que modo influi sobre o desenvolvimento da criança um ou outro aspecto do meio. Em todo caso, na doutrina sobre a infância difícil este fato se confirma a cada

passo. Toda análise da criança difícil demonstra que o essencial não é a situação por si mesma em seus índices absolutos, se não o modo como a criança vive esta situação. (tradução nossa)

A desconsideração deste fato produz, invariavelmente, uma forma de relação estritamente orientada pela racionalidade técnica, que orientada aos interesses ideológicos do processo educativo vinculado ao sistema produtivo, reproduz as relações de domínio que engendram estes interesses e, assim, relegam ao acaso a formação afetiva, da personalidade e da consciência.

No documento _DISSERTAÇÃO Armando mestrado (páginas 62-69)